VIAJAR, essa impermanência

FALTAM tantos posts sobre a Índia, e mais ainda sobre Istambul, Capadócia, Geórgia e Armênia, mas já estou aqui de novo, feliz nesta minha impermanência de viajar e escrever sobre viagens.

Há viajantes que afirmam “Sou feliz porque viajo”. Não posso mesmo discordar, porque para mim as viagens são muito excitantes, encantadoras e renovadoras. E para alguns, até autorrealizadoras. Contudo, não creio na equação simples acerca do que seja a “felicidade”, e embora não trate como uma afirmação falsa, discordo do significado absoluto, grandioso, raro, especial, quase exclusivo que muitos atribuem às viagens. Menos ainda que elas tenham o caráter mais humano que lhes concedem alguns, uma prerrogativa que a mim parece desmerecer outros meios para o encontro com a felicidade. A afirmação não chega ao esnobismo clássico de viajantes afetados, que distinguem e classificam de maneira rasa “viajantes” e os “turistas”. Quem assim age, refletidamente ou não, pode sugerir um sentimento de superioridade. E ninguém neste particular – e certamente não eu – deve pensar que todas as pessoas tenham as mesmas perspectivas da vida e sobre a felicidade, o que significaria viver um papel ilusório da realidade tão heterogênea da humanidade.

Há discussões de elevada reputação e inquestionável conteúdo técnico acerca do que seja a felicidade e também de como encontrá-la. Para Aristóteles, por exemplo, ela está no caminho do bem. Por outro lado, há quem acredite que resulta do somatório de outras inúmeras atitudes e circunstâncias. Bingo! O médico Carlos José de Andrade, oncologista do INCA (Instituto Nacional do Câncer), mestre em gestão de tecnologias em saúde, encontra evidências no fato de que a felicidade é um fator decorrente da manutenção da saúde e da prevenção de doenças, baseando-se no conceito de que “A principal missão de vida é ser feliz”. Bingo! outra vez. E se cada um de nós compreender que todos somos agraciados com o mesmo conjunto de “forças” internas que nos permite encontrar a felicidade, não temos por que não desenvolvê-las e partirmos em sua busca.

William Shakespeare dizia que os pequenos acontecimentos diários são o que tornam a vida espetacular. Nesses pequenos acontecimentos na vida do escritor e poeta inglês, concluo que era a maneira como ele encontrava a felicidade. Já os budistas não posso crer que errem quando afirmam que a “felicidade é a busca do desapego” e usam a meditação para alcançá-la, o que, de fato, faz bem a qualquer um, mesmo que não para o seu encontro, embora arrisquem-se, assim, a esbarrarem nela. Mas, e aqueles que são mais felizes comprando algo em vez de viajando? Devem ser simplesmente desqualificados? Não parece difícil compreender sua alegria genuína, até porque eu mesmo não creio em apenas um único meio de ser feliz, coisa que mesmo “especialistas” discordam. Para os consumistas, por exemplo, as viagens são eventos de emoções fugazes, enquanto os da posse, são perenes. Neste particular – ter ou ser, viajar ou comprar -, uma entre as melhores definições do que penso a respeito é “Ser feliz é exatamente achar a distância certa entre o que se tem e o que se quer ter”, segundo Stephen Kanitz. Tenho a convicção de que não quero mais querer algo além do que já tenho, porque o que já possuo é mais do que preciso, embora menos do que mereça.

Dos autores de livros de autoajuda também não tenho do que divergir. Pregam eles que “ser feliz é estar bem consigo mesmo”. A verdade é que agora que me sento para escrever, reflito – sem espanto ou estranheza – que o encanto de viajar, e de ser feliz, depende muito mais do estado de espírito e da personalidade do viajante do que do destino em si, tampouco do ato de deslocar-se. E assim como há tantos meios de se encontrar a felicidade, às vezes é preciso conquistá-la, mesmo já tendo se deparado com ela. Para muitos, é uma fina camada de poeira num lugar onde repousa, para outros, algo escondido num poço profundo de um lugar perdido. Encontra-se ou não. E assim como ela não passa na porta da gente todo dia (e quando o faz, é discreta, silenciosa), as vicissitudes e os mal-feitos de nossa existência, ao contrário, passam defronte de nós com barulho e chamando a atenção.

Viajar, escrever e refletir sobre minhas viagens e acerca do que elas me proporcionam, não me autoriza pensar que viajar seja melhor que qualquer outro meio de ser feliz, sobretudo porque conheço um monte de gente que arrepia só de pensar em viajar e não me parecem infelizes. Não cometo a irresponsabilidade de definir o tema com alegações simplistas, porque ele é aberto às interpretações e muito vulnerável a críticas, embora seja delicioso para os viajantes explicarem como as viagens influenciam suas vidas, sobretudo para aqueles que as compartilham em relatos num blog ou em livros. Viajar é bom, e por muitos motivos, nem que seja para descobrir que voltar para a vida cotidiana é melhor do que ter partido para a jornada. Então, se me fosse possível escolher a melhor definição, seria: “Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade”.[1]

Viajar para comer, amar, explorar e voltar pra casa

Viajar é bom. Para conhecer de tudo o que há na Terra um pouco, também para crescer, recolocar a mente onde se deseja, aprender e compartilhar. A novos lugares ou sempre aos mesmos, para viver dos episódios mais banais aos que deixam marcas, sendo um globetrotter ou estreante, no Inverno ou no Verão, simples passeio nas proximidades de casa ou volta ao mundo, por lugares remotos ou entre os mais lotados de turistas, nos sentirmos descobridores como Colombo ou turistas acidentais sem propósito de “exploração”.

Alguns chamam “inquietude” o que acomete aos viajantes e exemplificam com aqueles que mal refeitos de uma viagem vêm-se planejando a próxima. Segundo o psicólogo Carl Jung, é o que “indica insatisfação que leva à busca e descoberta de novos horizontes”. Ou, então, uma “fuga de si mesmo”. De ambas as definições discordo, e vivamente. Não porque eu seja versado no assunto, mas porque enquanto não estou a viajar, vivo igual satisfação e me parece assustador pensar numa viagem da qual jamais voltarei. Meu destino predileto? Minha casa. E embora as viagens me façam muito feliz, não é quando estou a deambular o mundo, senão em casa, onde levo uma vida “normal” (ainda que muitas vezes preparando uma nova viagem), que me sinto melhor e plenamente realizado, porque adoro sentir a distância e o desabrigo, para quando voltar, estar bem sob meu próprio teto.[2] A impermanência dura apenas enquanto viajo, e seus valores e significados tornam-se maiores quando retorno.

“Viajar? Para viajar basta existir”, disse o poeta[3]. Então, se é fácil e não requer prática e habilidade, se para sairmos de casa precisamos só do desejo e de disposição, contudo, para viajar com “arte” – olhando para o destino com a vista desembaçada, a mente aberta – necessitamos de aprendizado e dedicação. 

Viajar, contudo, para concluir, tem sido natural aos humanos desde o Neandertal, porque o homem se desloca por natureza, é um homo viator[4]. E a humanidade já viajava na Odisseia, de Homero, nas Histórias de Heródoto, da Antiguidade até inícios do século XIX -, quando eram motivadas por fins práticos, comerciais ou promovidas pelo Estado, desde o século XVI, com as explorações geográficas e as expedições coloniais que as seguiram, a despeito de que ali não se viajava por turismo. De missões diplomáticas e religiosas às conquistas de territórios, desde a Antiga Pérsia do rei Dario às religiosas das Cruzadas, das de Édipo até a Delfos – para consultar o oráculo – às caravanas comerciais relatadas no Livro das Maravilhas, de Marco Polo, das descobertas de caminhos marítimos até às de desafios levados a cabo por conquistadores de montanhas, desbravadores de florestas, de povos indígenas – como a Marcha para o Oeste, do Marechal Rondon -, dos aventureiros como Hans Staden aos eruditos como Michel de Montaigne, enfim, muito já se viajava, embora a atividade tenha se tornado turística apenas no fim do século XVIII, com a invenção dos navios a vapor, das estradas de ferro e das hospedagens, quando tudo era “exótico” e remoto para além das próprias cidades. Foi, então, que olhares romântico-comerciais passaram para os viajantes a ideia de que viajar era uma “aventura” para “exploradores”.  Mas… e escrever sobre viagens?

Escrever para entreter, não impressionar

À parte as complexidades dos temas sobre o porquê viajamos e acerca da felicidade, descrever viagens é um dos lados menos comuns aos viajantes. Felizes ou infelizes. Em todos os demais pormenores, quase sempre há coincidências e, aqui deste meu lado, o desejo de contá-las é espontâneo, tanto maior quanto menos explorado, mais diferente o lugar que descrevo, o que se constitui um grande impulsionador da criatividade agindo como motivação. Escrever parece ter nascido comigo, o que percebi desde que me senti dominado pelas palavras. Faz muito tempo que não escrevo naquele caderno velho de papel, onde anotava minhas coisas, mas a era digital só veio a incentivar e fortalecer o gosto. A cada nova viagem ele se manifesta e me domina, de tal modo que assim que começo a escrever uma introdução a qualquer relato de uma viagem, embora não termine ali, os pensamentos fervilham enquanto as letras vão se combinando na mente e depois no teclado. É tão grande o prazer quanto o dessabor da ausência das palavras. É coisa maior que o prazer de apontar minha Nikon para fotografar, e talvez seja assim porque escrevo com emoção, como num ato de reconhecimento pelo que “recebi” da viagem.

Se viajar é uma característica humana desde o Neandertal, como gênero literário é bem mais tardio, embora uma de suas mais eloquentes manifestações. De Heródoto, Homero, Virgílio e Ibn Battuta a Julio Verne e Paul Theroux. E apesar de que contar histórias seja arte que eu já domine, é nestes que me inspiro. E no começo, num breve texto como este, com o qual apresento uma viagem aos leitores, quando sinto os maiores arrepios. Embora escrever ficção deva ser muito mais difícil do que contos de viagens, há autores tão excepcionais que os fazem parecer fantasias, romances, poesia. E talvez por isso apenas autores excepcionais tornem-se populares.  

Descrever jornadas também tem suas dificuldades, porque embora trate-se de relatos de coisas vistas, não imaginadas, os clichês são armadilhas, o cunho comercial uma tolice e a superficialidade o túmulo da credibilidade. Ao contrário, para transmitir seu, fascínio ou não, por um lugar, por um país, as sensações com as descobertas, com um povo, um encontro, a cultura ou a culinária, é preciso personalidade, imparcialidade, autonomia e credibilidade. E para além disso, um bom estado da mente, a sensibilidade aguçada, fazer escavações em si mesmo, arrancar angústias, prazeres, tensões, decepções, felicidades e amarguras vividas numa jornada, e então tocar o leitor, trazer a ele a sensação de estar lá, sentir como sua a descrição da poeira, do brilho, do frio e calor. Só os bons conseguem mostrar os detalhes melhor que o conjunto, como o toque de uma brisa e o cheiro que ela traz, o que não é coisa banal e nem há muitos assim. Incomuns são os que conseguem tornar o leitor um acompanhante do escritor na jornada, mais ainda torná-lo, sem que perceba, personagem de um romance, qualidade tão excepcional e rara que se reflete com brilho na escrita.

Não sei ao certo, mas penso ter sido de Manuel Bandeira o meu gosto por escrever, depois da leitura. Todo texto meu escrevo como se fosse transformar em livro, numa narrativa refinada de viagens com reflexões bem-humoradas, mas também momentos de introspecção e extroversão, movido pela experiência e pela satisfação da jornada. Desde moleque eu me sentia destinado a tornar-me um escritor, embora um viajante eu nem desconfiasse. Tanto tempo depois, dou o braço a torcer, viajo bem melhor do que escrevo, e de mim não sairão grandes obras. Sobra-me, então, o prazer de compartilhar aqui neste blog a tentativa de inspirar o leitor, um desejo escondido de que alguma coisa especial eu lhe transmita, que embora eu muitas vezes não o conheça, rogo que lhe aconteça.

Escrever um relato ou uma crônica de viagem não deve ser produzir um folheto turístico, anúncio de hotel, resenha de companhia aérea, senão uma provocação, convocação, algo tão bem escrito que não use adjetivos previsíveis, exclamações abundantes, lugares comuns como “charmosos” e “mágicos” e nem feito para destacar aquele quarto ou piscina cinco estrelas porque hospedou-se ali de graça. Relato de viagem é outra coisa. E embora possa conter referências e resenhas de hotéis, de restaurantes e tudo mais, deve aprofundar-se mesmo é no destino, não no autor, e no conteúdo, orientando, indicando, incentivando, cativando, motivando e inspirando o leitor sem, contudo, guiá-lo.

Então, sempre e para sempre, estaremos juntos, eu, viajar e escrever.  Histórias de viagem ao Egito e ao Marrocos já foram contadas muitas vezes, mas em breve aqui, teremos mais uma, a minha versão. O destino virá e minha história ficará. Boa viagem!

Em breve: A próxima viagem: Egito e Marrocos


[1] Carlos Drummond de Andrade

[2] Amyr Klink

[3] Fernando Pessoa

[4] Homo viator, expressão latina para “homem viajante”, definição que condensa a “insatisfação” intrínseca ao ser humano, que o faz deambular em busca do novo.

3 comentários em “VIAJAR, essa impermanência

  1. Estou sem palavras. Texto excelente. Falo como leitora que já acompanha o seu blog há algum tempo. Sua forma de escrever não só me desperta o interesse, mas me encanta, me inspira, me emociona. Suas experiência, sua sensibilidade e seu olhar nada óbvio distingue os seus posts de viagem de todos os outros que já li. Parabéns!

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  2. Bom dia, meu caro, Arnaldo.
    Hoje, amanheci ao som de sua página, “Mapa do mundo”, de Pat Metheny, e fiquei com saudades das fotos maravilhosas, dos países exóticos, do angulo certo, das histórias suas e de sua vida, das aventuras por lugares que eu sequer sabia que existia, mas, além de tudo, de seus textos, aliás, de suas obras literárias, pois textos escrevo eu.
    Lendo e vendo as fotos, eu viaja. Ía longe, a lugares distantes, e depois, farto, achava que seria desnecessário conhecê-los, pois já os tinha feito através de sua arte.
    Não nos deixe órfãos. Viaje, viva, e, por favor, conte-nos tudo!
    Grande abraço e muita luz, amigo.
    João Silva

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