“The Moon Is a Harsh Mistress” (Jimmy Webb) do disco Beyond The Missouri Sky.
Pat Metheny (violão eletro-acústico) e Charlie Haden (contra-baixo acústico)
O ano terminava e a manhã ia em meio quando o avião tocou o solo de Assuã. O terceiro dia de nossa jornada no Egito amanheceu adorável, luminoso e começou bem cedo, de madrugada na cidade do Cairo. Embora estivéssemos em terra, eu ainda voava em divagações por um cruzeiro imaginário no Rio Nilo, a viagem fluvial mais desejada do mundo a partir do século 19 e, para nós, a parte mais ansiada da peregrinação pelo Egito e Marrocos. Logo embarcaríamos em três dias de navegação, desceríamos o Nilo, parando às suas margens para visitas aos templos de Luxor e Karnak, às tumbas do Vale dos Reis e ao Templo da Rainha Hatshepsut, aos Colossos de Memnon, aos templos de Horus – em Edfu – e de Kom Ombo e, naquela tarde, à grande represa de Assuã, aos Templos de Philae e ao Obelisco Inacabado.

Sob o sol do meio dia chegamos ao centro da cidade, no local onde aportam as embarcações, próximo à ilha Elephantina, uma cidade-bairro com pouco mais de um quilômetro de comprimento que divide o Nilo em dois canais, ilha de rochas de granito e encostas escarpadas. No topo, casas pequenas, palmeiras agitadas, exemplos de arquitetura mourisca, ruínas monumentais e um minarete apontado para o céu que parece obra natural, nascida na terra.

Enciclopédia Global
Quatro meses depois daquela luminosa manhã, começo a escrever sobre este encantador momento de nossa viagem ao Egito. Isolado socialmente, exerço meu “fique em casa”, pratico um “sacrifício” necessário a contragosto, “preso” no meu cárcere privado e sentindo imensa falta dos toques, beijos e abraços cotidianos. Ao mesmo tempo assisto o mundo inteiro fechar-se, viver um estado de pré-apocalipse, absorver à força a sombria realidade das mortes crescentes se aproximando de todos, não importam a raça, o lugar, aqui ou em terra estrangeira, qualquer buraco na terra onde a gente possa se enfiar, que esta vida invisível – o vírus – continuará sua caça, a missão de infectar a humanidade, vidas anônimas ou não, às vezes famílias inteiras, e despedaçar boa parte delas. Enquanto recebo notícias, procuro em vão por prognósticos confiáveis e me pergunto: Quando tudo isso passará?
Meus cenários de “viagens” agora não são os daquela jornada ao teto da África, senão a portas fechadas, janelas abertas, estendendo-se ocasionalmente pouco além das fronteiras de onde moro. Com todo esse tempo sombrio que me sobra, boa parte dedico aos meus corriqueiros prazeres, entre eles escrever. E o faço agora com produtividade incomum, mesmo com sérias preocupações me ocupando a mente, cercando de incertezas meu futuro.

São tantas a lembranças que me ocorrem que dariam um livro, além daqueles que já escrevi e espero um dia publicar. Parece não haver limite para a mente trazer de volta sabores e prazeres vividos em muitas outras viagens, algumas das quais eu pensava já terem sido apagadas da memória. Mas algumas parecem se regenerar, me pregando peças. São, por vezes, recordações tão escondidas quanto incomuns e inusitadas, que surgindo do nada, até do simples olhar para um objeto.
Neste meu escritório doméstico, lugar onde escrevo, sou rodeado de lembranças físicas de minhas viagens. Boa parte encontra-se numa estante, junto a guias turísticos, souvenirs e livros de relatos, cuidadosamente arranjados como se fossem um cenário. Dois pequenos globos terrestres, fotografias, um mapa-múndi e objetos decorativos de lugares onde estive completam este ambiente inteiramente voltado ao tema. Até mesmo um vidro de álcool gel, que embora não sendo um artigo trazido de fora, tampouco necessariamente relacionado a viagens, acaba de me trazer da mente uma passagem de uma grande viagem à Índia, encerrada um ano antes desta que agora relato. Repousa o frasco ao lado de meu notebook, e evoca tal qual um fantasma a sua vida passada, o trecho que a seguir relatarei.
É claro que pode parecer estranho um pequeno frasco de álcool 70 fazer alguém recordar-se da Índia, mas não a mim, ainda que seja curiosa e divertida. Ora, direis, que bobagem! Mas ocorrências iguais costumam acometer outros escritores que revelam agirem da mesma maneira, alguns com a compreensão de seus leitores.
Corria uma jornada encantadora na mesma data desta que agora relato, doze meses antes. Estávamos na Índia, na minha adorável Índia, e vivíamos passando o mesmo álcool gel nas mãos, o que hoje compulsiva e compulsoriamente faço, embora por motivos diferentes. A finalidade era a prevenção, não de um vírus, senão de bactérias com grande poder de contaminação, causadoras de severas complicações gastrointestinais que nós mesmos não escapamos de ter.
Estávamos na Chandni Chowk, avenida principal de Old Delhi, diante de um curioso “Caixa Automático de Água Mineral” – uma carrocinha como as nossas de pipoca, com as mesmas três rodas e impulsionada por força humana. Estacionada numa calçada, servia o precioso líquido em copos que não cheguei a avistar. Bastava o consumidor inserir moedas no local apropriado para ter liberado o líquido. E não fornecia apenas água, também uma nebulosa mistura de sumos de laranja e limão, frutas que depois de espremidas – aparentemente na hora – eram adicionadas de gelo e servidas em garrafinhas reutilizadas de Crush guardadas em dois engradados sobre o chão sujo debaixo da carrocinha.
Na minha adorável Índia, contudo, um cartaz que anuncie “água mineral” não deve necessariamente ser levado a sério, pois informação e verdade não andam escrupulosamente juntas naquela parte do subcontinente. Nem mesmo num estabelecimento que ostente orgulhosamente a chancela da prefeitura: Aproved by North Delhi Municipal Corporation, “garantia” de segurança complementada pela sigla R.O. Mineral Water ATM, do inglês Automatic Teller Machine, e R.O. – literalmente “Osmose Reversa” -, sistema de ultrafiltração que nem mesmo um indiano acreditaria funcionar naquelas instalações.

A bebida aparentava ser refrescante, e de fato era possível imaginar vidas salvas durante o tórrido Verão indiano, contudo nada convidativa naquele frio Inverno em Delhi, nem mesmo com o preço extremamente atraente de 6 centavos per glass, segundo informava o cartaz. As garrafas, frutas, água e toda a carrocinha aparentavam padrões de higiene tão duvidosos quanto perigosos, até mesmo para indianos. E ainda que sejamos viajantes experientes tentados a provar comida de rua, também somos cuidadosos para evitarmos contratempos inexoráveis, a fim de não corrompermos nossa saúde em viagens. Já perdemos coisas incríveis por causa disso, mas em se tratando alimentos, na Índia usam-se as mãos para comer, e elas são o hall de entrada para nosso desengonçado e tortuoso intestino. Já havíamos antes provado deliciosos samosas na rua, ali mesmo em Sajahanabad, distrito de Old Delhi, servidos embrulhados em folhas rasgadas do Hindustan Times, razão porque não devíamos nos exceder.

Instintivamente levei as mãos a um novo coma alcoólico, sanitizando-as com álcool gel de bolso, mesmo sabendo que meu mundo intestinal é perfeito e resistente, o que me favorece em viagens, mas o respeito e não o testo além de seus limites, o que tem me protegido de consequências desagradáveis, muito embora de ter boas experiências.
Diante daquela carrocinha eu podia ver até mais do que o visível: bactérias “caminhando” livres, leves e soltas pelos domínios do carrinho, saindo de dentro das garrafas vazias, onde os micróbios se abrigavam à espera da entrada em ação, como bestas horríveis, embora minúsculas, à espreita de nossas barrigas.
Mas, voltemos ao Egito.
Assuã
Havia qualquer coisa de especial naquela manhã. E adianto que mesmo forte o que eu sentia, não seria fácil definir. Os pensamentos eram todos para o cruzeiro de 3 dias[1] e para o rio Nilo, de modo que nada mais me cabia na mente. Curioso, eu procurava seus sinais durante o percurso do aeroporto à embarcação, mas não havia resquício de água. O Saara dominava, já não estávamos mais às “portas do deserto” – como no Cairo – senão dentro dele, sem as pirâmides, o escarcéu da capital, o trânsito e barulho, todas aquelas deliciosas referências que deixamos para trás, enquanto agora contemplávamos a areia, a vastidão e a quietude do deserto, apagando de vez dos ouvidos o ritmo do Cairo. Assuã prometia uma experiência mais relaxada, mesmo que numa cidade turística, cuja marca cultural é a distintiva sociedade núbia.
[1] “Cruzeiro de três dias” é um pouco impróprio, porque na verdade são apenas dois dias de navegação com uma parada de uma noite em Edfu, sendo as outras duas a bordo, em Aswan e Luxor.

Nas ruas, se parece com qualquer outra cidade do Egito. E os turistas não escapam às regras: egípcios entrincheirados estão sempre preparados para o ataque. Às vezes pessoas legais, comerciantes simpáticos, bem-humorados, com abordagens divertidas. Nos bazares, lojas bacanas e outras tão corrompidas pelo turismo que só vendem badulaques produzidos na China. Boas são aquelas que sobreviveram ao turismo de massa e conservaram a originalidade, entre elas, as de artigos de fabricação ou tradição núbia, como a cestaria bonita que parece não ter mudado desde os dias de Ramsés, que não fosse o tamanho, teria gasto uns trocados com elas. Também há cafés, mesquitas, charretes e tuk-tuks, vida e barulho.

Quase tudo é coberto do chão às paredes pela fina camada de poeira egípcia, que às vezes também se aloja seca em nossas gargantas. Parte da gente tem fisionomia árabe, outra etíope, sudanesa e núbia. Também vimos cães vadios, animais que amamos, embora não aparentassem ser tão sofridos quanto os indianos, acampados junto aos vendedores ao lado de mercadorias e diante do local de ancoragem dos navios. Alguns tinham até os olhos brilhantes, expressivos, pelos lustrosos, traços robustos, mas corpo sujo de poeira.
Os barcos e os cruzeiros
Às centenas, embarcações de cruzeiro sobeme descem o Nilo – de Luxor a Assuã ou no sentido inverso – todas parecidas no estilo, embora não nos padrões de luxo. Algumas carregam-se de excessos, tentam sobressair à beleza natural, aos templos faraônicos, mas nenhuma me pareceu sequer evocando as imagens românticas dos dias idílicos que se passava à deriva no luxo e conforto, sob a atmosfera romântica e charmosa dos vapores do século 19, origem dos cruzeiros pelo Nilo, quando era a única maneira de conhecer os mais destacados templos antigos do Egito. Embora digam existir um ou dois destes barcos a vapor tradicionais, não avistei nenhum, senão navios padronizados, contemporâneos, além de dahabyas. E como nem sempre é possível conciliar tradição com praticidade, apesar da originalidade ter-se perdido com as mudanças do tempo, um cruzeiro pelo Nilo permanece agradável, confortável e uma prática maneiras de conhecer as principais atrações do Egito antigo.

Já a paisagem não. Ela é igual para todos, embarcados em navios comerciais, padronizados ou não, simples ou luxuosos, românticos ou indiferentes. Avista-se de qualquer barco a mesma faixa de “terra” verde entre a água e a areia, a linha de costa variada e cheia de vida, com cenas rurais e bucólicas, apesar de deserto: vacas ociosas, burros nem tanto, latidos de cachorros, crianças mergulhando ou correndo às margens de pequenas praias, praticando as mais variadas brincadeiras e algazarras infantis. Do navio, ouvem-se murmúrios, vozes, o vento, cantos de pássaros e latidos e avista-se uma robusta coleção de ruínas milenares. E entre a quietude da beleza natural, das colinas, vales e plantações, percebe-se o movimento de vilas e de grandes cidades, tudo sob o abrigo da vastidão do céu africano, cujo azul ali abraça a Terra, tem ar puro e dócil no frescor do Inverno. Durante a navegação, o agradável silêncio às vezes é quebrado por vozes dos condutores de feluccas e dahabiyas deslizando placidamente e desviando das marolas e rastros dos navios. Ao anoitecer, ouvem-se os chamados à oração. Chegam de minaretes nem sempre avistáveis, pela distância, ou pelas sombras na noite.

Próximo às cidades, barcos de madeira com dois homens encostam no casco dos navios e os amarram, para em inglês, espanhol e italiano, oferecerem mercadorias, tecidos estampados em diferentes cores e padronagens que depois de embrulhados são jogados para as mãos dos passageiros navio acima, implorando para embarcá-las definitivamente. Ao que parece, por suas certeiras tentativas, os egípcios devem praticar arremesso de mercadorias à distância desde os tempos de Tutankamon. Nada de escaravelhos, estatuetas, obeliscos, papiros, deuses de bronze ou relíquias de dinastias faraônicas passadas, pesados demais para o arremesso com segurança, correm o risco de quebrarem uma vidraça ou permanecerem num jazigo eterno no fundo do rio.

O frio do Inverno não animava à apreciação da paisagem, mesmo sendo tão aberta quanto a que se avista do deck superior do navio. Era o motivo por que se encontrava quase sempre vazio, ainda que devesse ser muito agradável alguns momentos passados ali sob temperaturas mais amenas. A maior parte dos passageiros dedicava-se a uma soneca após o almoço e antes da saída para a sessão vespertina de atrações faraônicas. Arrisquei-me três ou quatro vezes a explorá-lo, subindo o lance de escadas para o exterior, depois de enrolar um lenço palestino em volta do pescoço. Contudo, ao abrir a porta, a brisa congelante só me dava ímpetos de voltar pro meu aconchego.
Certa vez encontrei um passageiro encolhido numa espreguiçadeira. Imóvel, tinha a cabeça pendida para o lado e aparentava estar adormecido. Ou, Deus me livre, morto, tal qual um personagem de “Morte sobre o Nilo”. Quase me aproximei para lhe perguntar como suportava a sensação térmica, mas Rá – o deus egípcio do sol – que além de lhe destinar raios exclusivos, segurou-me. Encostei-me no guarda-corpo disfarçando a intenção de apreciar a vista e percebi seus olhos abertos, embora imóveis, congelados na paisagem. Poderia ser um daqueles falecimentos com olhos arregalados, e só pensaria assim quem já houvesse lido Agatha Christie, mas, felizmente, não, o sujeito estava vivo da silva e provou-o me acenando com a cabeça num cumprimento que compartilhei do mesmo modo. Em silêncio, seguimos navegando o Nilo, cada qual com suas contemplações, embora observando a mesma paisagem, mas cada qual vagando em pensamentos distintos. Não sei por onde iam os dele, mas eu fantasiava o tráfego fluvial da época faraônica, iates reais feitos de junco, com nobres da corte conduzidos por escravos remando, uns barcos de serviço e de pesca, outros a vela transportando gente, animais, gêneros ou materiais para algum templo. Meu bom senso recomendou não importunar o mágico momento de solidão do passageiro, mas por muito pouco não iniciei uma conversa. Resolvi em boa hora afastar-me e explorar o restante do deck.

O lugar era acolhedor, tinha uma bem ambientada piscina com espreguiçadeiras ao redor e a céu aberto, toalhas listradas enroladas caprichosamente aguardando eventuais passageiros banhistas, provavelmente cidadãos do Alasca, e também um conjunto de mesas e sofás formando um confortável lounge. Um lugar para ser lotado de gente nas noites mais quentes. Por fim, havia um bar com bancos simetricamente afastados ao redor do balcão quadrado e protegidos do sol pela cobertura de lona. Sobre o balcão, xícaras de porcelana branca emborcadas em pires esperavam por infusões de chá de hibisco. Imaginava o quanto seria apreciável o tea time por ali e, à noite, num dos sofás, apreciando uma taça de vinho e conversando com recém conhecidos sobre as descobertas do dia. Curiosidade havia no vinho produzido na terra de Tutankamon, e não havia outra opção além das que viessem de algum terroir local, já então apreciadas por Ramsés III e Cleópatra. Assim o fizemos todas as noites, mas à mesa do restaurante.
A navegação
Navegar é preciso, mas o que menos se faz. A maior parte do tempo fica-se atracado para a exploração – guiada ou não – do que há em terra. Quero dizer, areia. Nosso navio era um pequeno hotel flutuante, padrão 3 estrelas tentando alcançar a quarta, cujas 60 cabines tinham 22 metros quadrados cada, limpas e razoavelmente bem equipadas, com banheiros espaçosos e bons chuveiros, água fervente e bancada de pia bastante para suportar as coisas de um casal. O restaurante era amplo e servia refeições em estilo buffet, generosos, razoavelmente variados, com opções para satisfazer a maioria dos paladares e restrições. Havia saladas, legumes cozidos, pratos quentes e frios, vegetarianos e não, um destaque de carne em cada refeição, dos quais recordo-me de um tagine de carne e de um delicioso assado de pernil fatiado na hora. Para sobremesas, frutas e doces confeitados variados, cujas pretensões de sabor ficavam devendo às visuais. Nossa mesa foi a mesma durante toda a estada e compartilhada com um agradável casal de médicos de São Paulo, além de seus dois filhos adolescentes, também extremamente simpáticos, o que tornou nossos momentos de refeição ainda melhores, para além de divertidas companhias durante os passeios.
Com eles compartilhamos algumas garrafas de vinho egípcio e ótimas conversas. Éramos os oito únicos brasileiros a bordo, e à mesa mais numerosa sentava-se uma família indiana, também a mais efusiva, em cuja noite que comemorei meu aniversário foram os mais calorosos. Tive direito a bolo, velas efervescentes, cantorias em árabe, danças e toda a equipe do restaurante fazendo seu melhor para que meu momento fosse inesquecível. E foi. Com alguma timidez, entrei na dança e posei para fotos e filmagens celulares.
Naquele primeiro dia de cruzeiro, após o almoço, com a energia restaurada, depois de apresentados ao guia que Allah e a operadora nos confiaram, chatíssimo por sinal, de modo algum lembrava seu colega do Cairo, o saudoso Mohamed. Foi difícil aturá-lo nos três dias, embora o conhecimento de um guia especializado seja sempre extremamente útil e revelador, mas com aquele, descobrimos logo na primeira atração de Assuã que faríamos tudo para termos meia hora felizes e silenciosas sem aquele guia tagarela e afetado nos impedindo de fazer o que quiséssemos, circulássemos e fotografássemos. Ele não se conformava com menos de 15 minutos de atenção, então discorria por toda a história antiga do Egito, da primeira à última dinastia faraônica, como se fosse o professor em sala de aula e nós seus alunos na véspera de exame final.

Fomos à grande barragem, um ícone no Egito, obra importantíssima que mudou a face do país, mas, para nós que temos Itaipú ou quem já esteve na Hoover Dam, não é coisa de surpreender, mesmo que interessante seja saber como mudou o país, a vida dos egípcios, aumentou a área de terras cultiváveis por meio de irrigação e controlou suas terríveis e históricas inundações.

Entramos depois numa pequena embarcação que nos levou ao belo e atmosférico Templo de Philae. Dedicado à deusa Ísis, fica numa ilha para onde foi movido depois de seu sítio original ter sido parcialmente inundado pelas águas da barragem. Ali assistimos ao sol se pôr, que antes de finalmente ir para o Japão tingiu a ilha de laranja. Aproveitamos a luz quente e bonita, saturada nas superfícies do templo, acentuando os dourados e contrastando com o céu de azul ainda intenso.

Visitamos também o Obelisco inacabado – atração curiosa, ainda que a menos atraente de todo o roteiro – obra encomendada pela faraó Hatshepsut, que se concluída teria sido o maior obelisco do mundo antigo, com 42 metros de altura. Mas uma rachadura no meio encerrou o sonho, deixando-o deitado e inacabado, atrações que terão um merecido relato no próximo capítulo.
O navio zarparia à noite, então havia tempo para uma visita à tradicional (e turística) loja de perfumes e essências naturais aromáticas. A visita converteu-se numa agradável experiência sensorial, levada a cabo numa sala cercada de estantes com toda a sorte de óleos essenciais e comandada por um profissional, numa cerimônia de apresentação dos deliciosos aromas, entre eles os que afirmam terem propriedades medicinais e os que se usam no corpo e no ambiente. Voltamos a bordo já com o sol posto, cansados de um dia que começara de madrugada no Cairo, mas felizes com o primeiro intenso dia do tão esperado cruzeiro.
O rio Nilo
Muito mais que apreciar sua grandeza, me apetece falar dele. É tentação, não só porque escrevo relatos de viagens, mas por tratar-se do que dá vida ao deserto, cria oásis e incentiva o nascimento de aldeias, vilas e cidades, ter promovido o surgimento das civilizações faraônicas, que a despeito de dos 4000 anos que se passaram, permanecem “vivas” às suas margens. Um rio que torna o Egito atemporal e imutável.
Naquela nossa primeira noite no Nilo, observei pela ampla janela da cabine suas águas correndo, seus ruídos no casco do navio e o rio exibindo um brilho diferente, refletido das luzes de nossa embarcação. Logo adiante, a outra margem era escuridão, o Saara continuando a marcar sua presença implacável, mesmo no escuro, e evocando ora pensamentos românticos, ora históricos. Eu não me recordava de nenhum país que dependesse tão completamente de um rio, nem de outro lugar cujas águas trouxessem tantas consequências à existência humana.
O cansaço me fez adormecer mais cedo do que o costume, embora o momento fosse mais propício a mentes porem-se em ação. Eu tentava mover-me pelas relembranças do que vimos no dia, mas o sono me venceu, deixando a cabeça repleta de temas para sonhos efusivos. Dormimos em lençóis confortáveis e limpos, imagino que de algodão egípcio, e com as cortinas propositalmente semicerradas, a fim de que acordássemos com o nascer do Sol. Pouco antes de fechar os olhos lembrei-me de Heródoto – o filósofo-viajante grego, que disse “Quem não viu o Egito não viu o mundo”. Sua máxima levou-me a pensar que quem não viu o Nilo, não viu o Egito.
Subimos âncora e partimos rio abaixo.
Nota do editor:
Não foi erro a mera menção, sem delongas, de Agatha Christie neste relato de cruzeiro pelo Nilo. Mas este é um fato tão corriqueiro, linearmente usado na blogosfera de viagem, que resolvi privar o leitor de mais um lugar-comum. Além do que a escritora não representa a totalidade de personalidades do universo literário inspiradas pelo Egito ou pelo Nilo. Quer na ficção, quer nos romances, outros escritores, igualmente proeminentes, produziram novelas, contos e artigos, entre os quais destaco o romancista francês Gustave Flaubert, a enfermeira inglesa e editora de jornais Florence Nightingale, Mark Twain, Pierre Loti, Rudyard Kipling, Arthur Conan Doyle – criador de Sherlock Holmes – e George Bernard Shaw.
Adorei o presente para minha quarentena! Minutos de sonhos! Parabéns! Bjs, Regina
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FANTÁSTICO!
Sinto muito orgulho, admiração e uma felicidade imensa de ter compartilhado esses momentos “mágicos” com você.
Parabéns pelo lindo texto, como sempre!!!!
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Comemorar o aniversário navegando pelo Nilo deve ser ter sido realmente inesquecível, assim como outros momentos da viagem.
Certa de que quando esse isolamento passar, e irá passar, virão novas viagens e sabores tão especiais quanto o Egito e a India.
O texto é lindo e muito bem escrito.
A música é uma ótima escolha; é linda, é quase uma carícia. Bom, acho que vou ler de novo, e ouví-la de novo.
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Delicioso viajar por sua narrativa. Muito obrigada.
A descrição do anoitecer me fez lembrar a lua, intensamente linda e profundamente misteriosa, que
todos nós admiramos em Ilhéus, no casamento do seu irmão.
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Um texto lindo, poético, que mais do que descrever o que se vê, permite entrever o que se sonha. Muito obrigado por este post! Na verdade, foram 3 presentes: o relato, por si, extraordinário; encontrar lembranças tão queridas da Índia; ver a Dra. Lilah relembrando o dia mais feliz da minha vida. Obrigado!
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Arnaldo, ‘Quem leu seu texto, viveu sua viagem’.
Em plena quarentena, distanciamento social ou qualquer outra forma que possamos chamar o ‘ficar em casa’, posso dizer que estive no Egito.
‘Quem não viu o Nilo, não viu o Egito’ descreve muito mais que uma viagem a um lugar mágico, curioso e encantador. O sentimento depositado nas descrições dos lugares visitados, a emoção com que nos fala das experiências e, sobretudo, a beleza com que capta sua vontade de compartilhar a alegria da (re) descoberta, somados, resultam nesse texto riquíssimo ilustrado com o talento do também fotógrafo.
Obrigada por esse presente. Continue viajando, escrevendo, fotografando e nos encantando.
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