MARROCOS – Eternamente e ainda depois

Concerto para Piano No. 23

Uma manhã de domingo à primavera, um sol magnífico, um dia desses que se podem chamar de “macios”, quando tudo é bom, funciona e cai bem. Lá fora e aqui dentro. Um olhar neutro pela janela e outro para a estante de livros. Neutro, mas não insensível. E embora a abertura esteja hermeticamente fechada ao ar e ruídos, a vista penetra e perde-se dentro de mim e da casa.

A melodia de Mozart toca na caixinha de som e me segue os passos. Enquanto busco um café, ela vai minguando nos ouvidos à medida que me afasto, mas não morre. Volto e olho para o mapa-múndi preso à parede. Detenho-me nele, mais uma vez exercendo o simples, eterno grande prazer de viajar num mapa. Olhando assim, o mundo até me parece pequeno, mas a carta é um vasto mural onde tenho a sensação de que mesmo num vislumbre, encontro mais lugares desejados do que eu daria conta visitar. Perco-me neles e depois aponto o olhar atenciosamente para o Marrocos e nada mais me prende ali. Sento-me à escrivaninha e navego na Internet, tomo as primeiras ondas de nossa road trip pelo país do Magreb[1]. Componho, nas teclas do notebook – e inspirado por Wolfgang – as notas iniciais desta viagem, que mesmo antes de sairmos já gruda em mim.

Meses depois, no escritório, observo pela janela a serra da Tijuca e avisto os extravagantes picos da Pedra da Gávea, da Tijuca e do Bico-de-Papagaio. Reconheço a sorte e o privilégio de ter vistas assim desde minha mesa de trabalho e em casa, de tal maneira que digo sempre: “ah, que sorte essas minhas janelas!” Em breve eu estaria a viajar com quem tanto amo, admiro e aprecio a companhia. Que belo e inspirador motivo para escrever.

Ao meu irmão, cunhada e companheira dedico este post.

Ali e assim continuei a anotar as palavras e frases que acentuavam meu entusiasmo criador para a narrativa desta viagem. Um fragmento do que leio, em especial me atrai: “Não há nada além do vazio, e isso é beleza”[1]. Ditas por Paul Bowles em “O céu que nos protege”, referem-se ao mesmo percurso rodoviário que faríamos entre Casablanca e Marrakech.

Ah, as minhas janelas…

A mente transborda-se de lembranças das minhas outras idas ao Marrocos, imagens descem da memória como água em cachoeira, sinto sensações na pele e prazeres na mente enquanto rememoro cada uma das surpresas sucedidas desde o oceano às dunas, todas tão inesquecíveis e bem marcadas que nem eu imaginava estarem guardadas com tal fidelidade e transparência. Reajo aos estranhos costumes, às cidades modernas com ares europeus, às outras antigas e paradas no tempo, aos tetos de madeira entalhados e delicadamente pintados das madrassas, aos intrincados mosaicos cerâmicos e à natureza, não só a das montanhas do Alto Atlas – com seus picos nevados – mas às da planície do pré-deserto, o Saara[2].

Não me dou conta e já estou às portas dos confins do profundo Marrocos. Vejo-me admirando os palmeirais, avistando camelos sem rumo no deserto, plantações impecáveis de verduras, tudo sob um céu azul pleno e dolorido nos olhos. Não me contenho e sento-me num tapete dentro de uma loja especializada num souk e gosto de deslizar a ponta dos dedos sobre a lã. Depois, chego a sentir o cheiro das especiarias vendidas a granel e o sabor da comida. Foram tantas as vezes que estive no país que minha imaginação já não precisa mais inventar um Marrocos, sua integridade e originalidade estão comigo em tudo: terra, arte, ar, sabor e cheiros.

Vagueio naquelas ruas estreitas, sinuosas, vazias de gentes e vozes

Vagueio por uma rua qualquer, igual às muitas que há no Marrocos. Rua sem fim, estreita, sinuosa, vazia de gentes e de vozes, um cânion de paredes altas chapiscadas e pintadas. Sinto uma inquietação sem propósito, como se ao fim de cada curva um perigo me esperasse. Sem sentido, porque não há nada nem ninguém a me olhar de esguelha por um vidro de janela.

Chamado pela força do Marrocos, movo-me num voo excitante até pousar em Casablanca, não pela primeira vez, mas, ah!…o litoral Atlântico… Dali, o rigor do planejamento segue a longa viagem desde a borda do mar até o pré-deserto. Devo parar ou seguir o curso do imaginário? Não tenho a insensibilidade da apatia, então deixo em aberto o que a mente quiser, porque, afinal, imaginar-me viajando e perder-me por países e lugares, não dar raízes aos desejos e não pertencer sequer a mim costuma ser quase tão bom quanto o viajar de fato. Flanar assim também é viagem. Você que me lê, me entende, sobretudo quando o faço pelo mundo islâmico. Deixo, então, que a fantasia siga seu curso lógico pelos 1.200 km de asfalto até Marrakech. A estrada é boa, um belo contraste entre o preto do asfalto e o ocre da terra. Passo por Rabat, Chefchaouen, Meknes e Fez antes de entrar no pré-Saara. Não fosse o silêncio, eu pensaria já viver cada quilômetro do roteiro, como se já rolasse a vida turístico-mundana, embora a realidade presencial só mesmo em dezembro, quando o inverno chegasse ao Marrocos e a imaginação desse lugar à visita.

Perdendo-me deliciosamente por este pedaço de bom caminho do oriente islâmico, revejo a harmonia dos desenhos ornamentais, da arquitetura árabe, da combinação magistral da geometria com as cores e traços dos mosaicos cerâmicos. Como os admiro! São engenhosas formas que mesmo repetidas não me cansam o olhar. Sua desmesura imensa dão-me sempre o sentimento de que fitá-las é sempre viver o prazer do fascínio, da admiração, seja num estuque, entalhe, mosaico ou grade de ferro.

Nas ruas vejo homens vestidos com gelabas de capuzes pontudos, cuja aparência fazem-nos parecerem sábios místicos da Idade Média, embora gente comum. As mulheres usam lenços coloridos, e sabendo ou não, tornam-se belos contrapontos à sisudez dos cinzas masculinos. Imagino que lá as nossas queridas e insuperáveis companheiras de viagem também não resistirão, haverão de adornarem suas belezas tal qual o jeito marroquino, com belas pashiminas e lenços de seda ou boa lã de camelo e carneiro comprados no frenesi do coração secular do souk de Fez, como se não bastassem as trazidas da Índia um ano antes, em cuja pose “desinteressada” capto com um olhar apaixonado e a lente de minha câmera.

A visita virtual começa pela moderna Casablanca e já antes do passeio inaugural da primeira manhã, me vejo tomando um café espresso na Marilyz Delice, boulangerie e pâtisserie instalada numa loja em bonito prédio no estilo Art déco, bem às portas de nosso hotel. Ora, já não era mais um sonho!, senão a viagem por um Marrocos visível e audível, a realidade transcendendo a imaginação, a magia do início da jornada pela agradável capital à beira do Atlântico, a realidade, a viagem tornando real o sonho.

Em Casablanca, muito embora evoque imagens hollywoodianas do filme homônimo mais romântico de todos os tempos, não se ouve sequer um sussurro do romantismo que o filme sugere. É bem aí que começa o problema para quem procura cenários do filme de Hunphrey Bogart e Ingrid Bergman. Melhor, então, saber que sequer um segundo do filme foi rodado na cidade, tampouco no país, senão todo num estúdio de Hollywood, a 10.000 quilômetros de distância. As lembranças da história de amor passada em Casablanca, contudo, ficaram e ainda inspiram. De fato, há um Rick’s Café na cidade, inspirado no do filme, feito para turistas por uma estrangeira, instalado numa mansão e projetado para lembrar o clássico do cinema de 1942. Dizem que fizeram um bom trabalho, mas não pude constatar, pois embora eu tenha tentado reservar uma mesa para quatro, sequer me deram resposta aos dois e-mails que enviei pelo canal do site.

Ah, o litoral Atlântico…

A avenida marginal litorânea é comprida, larga, clara e bem calçada, tem restaurantes e cafés, espaçados, gente caminhando, simplesmente observando o mar ou assistindo ao pôr do sol. Paramos diante da Mesquita Hassan II, obra de arte arquitetônica monumental à beira do Atlântico e, mais tarde, caminhamos pelo Bairro de Habous – um dos mais antigos da cidade – passando diante do Palácio Real, que não se visita.

O sol foi se pondo e voltamos para o hotel. A noite foi bem dormida. Na manhã seguinte pegamos a estrada em direção a Rabat, e no caminho visitamos, Chellah  – um sítio arqueológico da romana Sala Colônia, necrópole medieval de uma dinastia berbere – além da Kasbah dos Udayas.

Ao meu irmão, cunhada e companheira dedico este post.

[1] O Magreb é a região ocidental do norte do continente africano. A palavra tem origem árabe e significa “onde o Sol se põe”. Países do Magreb: Marrocos, Tunísia, Argélia, Mauritânia, Saara Ocidental (território controlado pelo Marrocos).

[2] Paul Bowles, autor de “O céu que nos protege” (The sheltering sky), levado para o cinema por Bernardo Bertolucci com muita dignidade, em 1990, em algum momento de sua autobiografia.

[3] ODeserto do Saara” é a maior redundância do mundo: ṣaḥārā é a transcrição em alfabeto latino da palavra árabe صحارى, que significa ‘desertos‘. O resultado, se você traduzir, é algo como ‘deserto dos desertos‘, ou simplesmente ‘deserto deserto‘.

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A seguir

Do mar à montanha: Casablanca a Marrakech (com fotos!)

17 comentários em “MARROCOS – Eternamente e ainda depois

  1. Uma viagem fantástica e com pessoas maravilhosas! Texto impecável e brilhante! Eu tive a sorte de te encontrar, sinto muito orgulho, felicidade e amor por você. BEIJOS .

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  2. Texto belíssimo. Imagino que a sorte não seja apenas sua, mas também dos seus companheiros de viagem, por ter a sua companhia e seu conhecimento.
    Caminhar pelas ruas, observar o mar e o pôr do sol, parar diante da mesquita e ficar admirando-a. Tudo parece ser fascinante.
    Imagino a cultura e a culinária. As cores, aromas, sabores, o movimento nas ruas, tudo isso me fascina, e ler o seu post desperta ainda mais o interesse.

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  3. Bela crônica, Arnaldo, para descrever um belo país e uma viagem inesquecível. Que lugar encantador o Marrocos. E que grupo legal o nosso! Muito obrigado pela dedicatória e por eternizar nossas lembranças com tanta elegância.

    Mariana e Alcides

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  4. Belíssimas fotos, texto e curiosidades. Lê-lo ao som de tão boa música é uma experiência muito agradável. Parabéns! 👏👏👏

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  5. Que texto! Consegui enxergar o Marrocos com outros olhos graças à sua maestria com as palavras. Como boa viajante que sou, tenho certeza que esse blog foi um grande achado e que terei leituras muito agradáveis pela frente. Ps: “o céu que nos protege” é um clássico. Muito bom encontrar quem também admira a obra. Grande abraço.

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  6. Creio que viajar é isso. “Saber” conhecer, sentir o ar, os cheiros, caminhos e ruelas inimagináveis de mistérios. Quanta sensibilidade contida em quem escreveu, com o encantamento de poder também nos transportar. Conheci Marrocos e Marrakech, há muitos anos atrás, e nem de longe, vivi ou analisei situações como as descritas aqui. Ficaram os ecos da melodia do piano de Casablanca, tão distante dali e tão presente na sua magia…na sua história.

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