ÍNDIA – Fathepur Sikri – Para dizer apenas um pouco

Beyond The Missouri Sky, por Charlie Haden e Pat Metheny

Nesses tempos difíceis, cada um arruma seu jeito de suavizar em si os maus efeitos. Há quem faça exercícios, coma compulsivamente ou não faça nada mesmo, se entregue. Eu ouço música, leio, escrevo e trabalho. Não necessariamente nesta ordem, mas tal qual a fome em dia de apetite, as duas primeiras atividades ligam com voracidade minhas memórias de viagens ao desejo de descrevê-las. Pouco mais de dois anos depois, vivo a força da lembrança de um desses dias marcados feito cicatriz na memória. Dele sinto até os cheiros da chegada a Fatehpur Sikri – antiga capital do império mogol, de beleza espantosa – que tornou-se inapagável em minha mente.

Chegando à pequena cidade, não era, mas o que eu avistava parecia miragem. E como para mim todas as coisas devem ter que fazer sentido, destinei-lhe um olhar não resumido, um ato inconsistente que aquela vista majestosa jamais perdoaria. Ao contrário, o meu era de uma polidez e prudência recompensadas por uma das vistas mais superlativas que eu já experimentara, e de uma beleza e equilíbrio que minha capacidade de descrever inibem. Não era devaneio, senão tão concreta quanto não seria possível às ilusões.

A soberba estrutura de arenito apresentava uma simetria admirável, paredes enormes com esculturas detalhadas. Nenhum de seus espaços aparentava estar mal preenchido. Eu não estava ali para encontrar defeitos e, afinal, não acreditava que houvessem. Tomado pela admiração corri os olhos pelo topo, encerrado com pequenos e grandes chattris, cujas formas e desenhos iguais se repetiam podendo sugerir tédio, mas sequer um deles fora mal colocado, senão demonstravam que não havia qualquer linha se perdido no papel de quem os imaginou. Entre os desenhos geométricos da marcheteria também. Embora aos milhares, nenhum minúsculo pedaço de mármore branco ou preto fora erradamente assentado. E como se não bastasse, arrematava-se o portão por colunas altíssimas, esguias e elegantes, com invejável efeito sobre a observação do espectador. Assim foi minha primeira impressão do fabuloso Buland Darwaza – ou “Portão da Vitória” – de Fatehpur Sikri.

Logo que descemos do micro-ônibus lotado de nós e de outras sardinhas indianas, deparamo-nos com uma obra que me desafiava a razão. Talvez apenas olhares negligentes não experimentassem a sensação de hipnose. Sim, havia gente displicente, não tocada por sua grandeza, que subia os 42 degraus sem olhar para cima ou para a frente. E então, depois da travessia “perigosa” do portão, era engolida pela enorme boca para ser expelida no interior.

Quanto mais eu me aproximava, mais agradável e estimulante se tornava a ideia de reviver a experiência: atravessar pela segunda vez o maior portal do mundo, guarda da ainda mais impressionante cidade abandonada de Fatehpur Sikri.

Para além de elegante e de exemplo eterno da magnífica arquitetura mogol, o monumento é um dos mais representativos da genialidade de Akbar, de tal maneira que chegar novamente ali tornara-se um presente, sobretudo depois de um dia de viagem. Não que o caminho fosse transtorno. Ao contrário, fora de saborear cada quilômetro de retas e curvas, de povoados e descampados entre Jaipur e a “Cidade da Vitória”, mas nada se igualava ao poder daquele portal. Comprometedor de minha razão e equilíbrio, lugar onde toda a Índia mogol parecia caber, embora natural minha admiração, era inesperada a sensação de cruzá-lo para chegar ao imenso pátio interno. Permanecemos mais de uma hora visitando a Jama Masjid, o Buland Darwaza, a Tumba de Salim Chishti, o Diwan-i-am e o Diwan-i-Khas. E para um apreciador da arte e arquitetura, Fatehpur Sikri consagrava-se para mim num local imperdível, cujo estilo hindo-islâmico consagrava-se num conjunto de notáveis exemplos onde se percebem a personalidade do grande imperador.

Nada na Índia é banal, e qualquer visitante estrangeiro perceberá isso bem antes de visitar Fatehpur Sikri. Mas terá sido ali que se reconhecerá ordinário diante de tamanha grandeza. Terminada a visita, em sabia que estivera num lugar fabuloso a menos para conhecer no mundo.

12 comentários em “ÍNDIA – Fathepur Sikri – Para dizer apenas um pouco

  1. Confesso que desconhecia esse local, talvez porque a India não tenha despertado em mim ate agora uma curiosidade maior que saber a respeito de Agra e o Taj Mahal, mas a sua descrição a respeito do que viu despertou em mim a curiosidade de saber mais a respeito do local e acabei fazendo uma pesquisa a respeito dela para saber mais informações, por isto demorei um pouco para escrever.

    Realmente o lugar é maravilhoso e sua historia apesar de “curta” já que a cidade foi abandonada depois de 14 anos, eh bem poética e deve esta repleta de mistérios, que talvez o guia deva ter comentado com voces.

    As fotos estão lindas, mas acredito que haja mais, e fiquei curioso para ver as outras..

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  2. Narrativa sensacional, que nos transporta para os locais visitados, com muita magia – e por que não dizer, de mistérios?. Eu, que não conhecia, passei a interessar-me e sentir as mesmas sensações de quem o fez. Trata-se realmente de uma alucinante viagem…não conseguindo determinar se foi para o passado ou em direção ao futuro. Extasiante.

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  3. Relato brilhante e à altura do local descrito. Como sempre, fico viajando através do seu olhar. Eu não conhecia nada sobre essa cidade abandonada. E, Fathepur Sikri, construída para ser a capital do império mongol, realmente impressiona, seja pela beleza da arquitetura mogol, seja pelo seu portal magnífico, seu tamanho e pelo estado de conservação das construções. É inacreditável que ela tenha sido abandonada apenas 14 anos depois. E lendo o seu texto e vendo as fotos, consigo sentir todo o seu fascínio. Não dá mais para pensar na Índia sem pensar em Dehli, Agra e agora em Fathepur Sikri. Obrigada Arnaldo por me fazer viajar para esse lugar fabuloso.

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  4. Não são muitos os visitantes que observam o local apresentado com um olhar tão especial e detalhista. Você, realmente, aprecia e percebe a grandiosidade das obras. A sua observação acho q chega a causar um certo êxtase. Percebe-se por sua rica descrição. Sou admiradora da sua escrita. Faz-nos imaginar a grande beleza e perfeição dessas obras monumentais. Leva-nos à grande vontade de conhecer.

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  5. Está aí um lugar do qual a saudade só não é maior do que o desejo de voltar. Parabéns pelo belíssimo e sensível texto, para além do óbvio!

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  6. Lembro exatamente da sensação de estar em Fathepur Sikri, foi um daqueles momentos de tanta felicidade, que parecia um sonho! Eu sou suspeita para falar da India, foi um lugar que me marcou demais. Belíssimo texto, representa bem como foi nosso dia e como é a visita.

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  7. Tal como dito por cada um dos seus leitores, a sensação de teletransporte ao ler seus textos é natural e automática – até para aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de visitar essas maravilhas! Basta preparar o ambiente, colocar a música escolhida e pronto: estás prestes a viajar sem sequer sair do lugar! Parabéns por esse dom da escrita, que cativa de um forma tão singular. FATHEPUR SIKRI acaba de entrar para a lista das futuras descobertas! Abraços

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  8. Ao som dessa música linda, viajei de novo. Parabéns pelo seu dom da escrita. Lugares lindos!
    Um sonho! Até a próxima. Regina Ribeiro.

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  9. Puro encanto. Assim defino cada postagem sua, amigo Arnaldo.Sempre com o poder mágico de nos levar aos mais incríveis lugares, mas com o cuidado de nos fazer perceber detalhes que tornam a leitura realmente ‘puro encanto’. Ainda não fui, mas qdo isso acontecer, será a segunda vez. Muito obrigada!!!

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