ÍNDIA – Introdução. De volta à Índia

O bom, o mau, o bonito e o feio

Dezembro estará terminando e nove anos terão se passado desde o primeiro encontro. Perto da meia noite, quando pousarmos no aeroporto Indira Gandhi, na imensa, pavorosamente caótica e arrebatadoramente sedutora megalópole, verei aquelas luzes compridas, suas auras esticadas ao redor das lâmpadas de um céu leitoso, riscos cintilantes de luz refletidos na atmosfera mais suja do mundo. O efeito é mágico, mas sinistro. Gosto dela mesmo assim. E se não fosse Delhi, não seria Índia.

Chegarei sem os medos da primeira vez, a Índia já não será mais “complicada, desafiadora e arrasadora”, mas carregarei outra responsabilidade: ter influenciado meus três companheiros para esta viagem. Haverão de achar a Índia tão fascinante, arrebatadora e inspiradora? Cairão de amores minha namorada, irmão e cunhada? Enxergarão a mesma beleza e grandeza? Reconhecerão perfeição mesmo com toda a aparente imperfeição indiana?  

Não sei se estava escrito nas estrelas ou se foi coisa dos gênios bonachões da tradição islâmica indiana, mas a paixão foi na primeira hora da primeira manhã. E em dezembro, quando a reencontrar, tudo o que é seu me completará, tornará melhor e maior. Das suas cores, seus sons e cheiros às coisas de Shiva, de Krishna, de Buda e Mahatma Gandhi. O meu país, a minha história de amor com um destino, o meu prazer em revisitá-lo e a minha crença de que será assim até o fim da vida.

Deixarei meus pensamentos para quando o avião tocar o solo e sentir de novo a dinâmica e a força do país,com a esperança de que conquiste, em vez de arrasar, seus novos visitantes. Esta viagem, minha terceira à Índia, foi moldada nas duas anteriores,condensada numa só, ampliada e revisitada para contemplar lugares em que nãoestive. Depois de carinhosamente desejada, intensamente pesquisada eexaustivamente programada, concluímos que a melhor e mais econômica maneira dechegar a Delhi seria voando pela EthiopianAirlines, com uma noite em Addis Abeba e, no dia seguinte, um voo noturno de6 horas a Delhi. Uma estada de trêsdias na capital, onde passaremos o Reveillone exploraremos o que for possível de seu fabuloso patrimônio e, depois então,por via aérea, terrestre e ferroviária, outras 15 cidades: Jaisalmer, Johdpur, Udaipur, Nagda, Jaipur, Amber, Ranakpur, Abhaneri, Agra,Fatehpur Sikri, Jhansi, Orchha, Khajuraho, Sikandra e Varanasi. Ao finaldo itinerário, possivelmente já entregues e gastos pelos prazeres intensos daviagem, voltaremos ao Brasil depois de 19 dias na Índia, de uma longa viagem de prazeres.

Começo agora a escrever e fecho os olhos. Penso e sinto bater outravez meu coração pela Índia. Dizem que é assim com as boas viagens, que nãoterminam jamais, que grudam na mente e vivem a nos rondar feito almas penadas. Paraos mais românticos, viram um caso de amor, e tal qual as paixões, sentem-se as mesmasemoções intangíveis, voltam a tocar o coração ao serem revividas. E quando terminam, começa o desejo insaciável de voltar.

Sinto-me assim ao voltar a escrever esta nova série sobre a Índia e revolvo a mente trazendo experiências encantadoras que se expressam em meus sentidos. Gostaria de saber contar tudo. E com o mesmo poder de transmitir ao leitor a intensidade com que me afetaram quando as vivi.  Será tão difícil descrevê-las que temo não passar da superfície. Ainda assim, caro leitor, tentarei. Afinal, esse é o fascínio de escrever. Então, deixe-me guiá-lo por esta jornada visual através desta série de posts fartamente ilustrados. Com “De volta à Índia”, tentarei descrever cada momento e compartilhar com você o privilégio de tê-los vivido.

Contarei tudo aqui. Estou com pressa de chegar! Namastê, Índia!

A seguir

Devolta à Índia – Capítulo 1 – Chegamos em Delhi


ÍNDIA – A viagem se aproxima e enquanto espero, reflito

Que o leitor me perdoe a ousadia da confidência, mas viajo como turista. E tenho aversão às pretensiosas diferenciações entre turistas e viajantes. Sou turista clichê, um clichê ambulante, que não procura disfarçar tal condição. Estou ainda mais feliz com esta viagem, por que desta vez será na companhia de três pessoas especiais e queridas – namorada, irmão e cunhada -, experientes viajantes que sabem viajar, agem como turistas e se adaptam bem aos desafios. São turistas, sim, mas de olhos compreensivos, ponderados e receptivos, condições ideais para alguém gostar da Índia. Eu mesmo viajo mais sereno, sem o deslumbramento da primeira vez, com a maturidade conferida pela segunda e o forte desejo de que seja fenomenal esta terceira também para eles, que a Índia os penetre sem pedir licença, e como a mim, os torne quase doutores indianistas.

Todos sabem, não sou religioso, místico, peregrino nem viajo em busca de qualquer coisa que se relacione com espiritualidade. Não tenho espírito. E se tenho, não o sinto, porque ele insiste em não se manifestar. Felizmente, graças a Deus. Tampouco viajo para encontrar sentido na vida, pois já conheço o meu e ele me satisfaz. Também não para encontrar qualquer coisa no além. Não acredito nele e sou feliz por não ter avida mediada por crenças. Tenho mesmo alguma aversão a muitas delas. Talvez porque aceite a finitude da vida sem desespero, como algo inexorável, embora eu vá a contragosto. E por não acreditar em vida depois da morte. Convenhamos, é muito mais duro viver a vida quem reconhece que ela termina aqui, que não terá bônus ao seu fim.

Não vou à Índia atrás do “interior de mim mesmo”, para “encontrar o sagrado”, para meditar, senão para por vezes refletir. Muito menos para dedicar-me aos estudos do hinduísmo védico e de coisas afins. Ao contrário, na Índia sou menos eu do que em qualquer outro lugar do planeta, embora em nenhum outro eu seja levado às reflexões sobre a vida, nem reavalie certas questões como a necessidade de maior frugalidade nela. Cresço muito intelectualmente e torno-me ainda menos compreensivo com tudo o que seja místico. São temas que não me interessam em particular.

Não me atraio a viajar à Índia a fim de me enfurnar num ashram-boutique, participar de workshops diários e papos-cabeça com gurus estrelados, tentando inutilmente – a despeito de sua sabedoria- apontar-me o caminho da “salvação”. Isso é coisa que começou no final dos anos 60, quando grande quantidade de ocidentais chegavam carregados de uma revolução cultural que valorizava a magia, o exotismo e os mistérios orientais. Entre eles, John Lennon e os Beatles. Foram à procura da salvação,mas também de uma temporada fumando seus baseados com alguma liberdade. Sairam de lá sem saber se se libertaram, como provavelmente todos os novos nômades que praticaram seu escapismo disfarçado de fome espiritual,exercendo um novo tipo de atividade turística – o “turismo espiritual” – lá explorado por gurus e levado a cabo em ashrams pelo país afora. Evoluiu tanto que hoje é quase uma commoditie indiana do ramo turístico, a espiritualidade tornada mercadoria. Para quem não curte alimentação natureba, alinhamento de chacras, medicinas alternativas, coisas místicas para a cura de enfermidades físicas e mentais ou em qualquer coisa que não se comprove cientificamente,praticar turismo assim é desastroso. Gosto de estar na Índia para ver indianos,não ocidentais místicos deslumbrados.

Então, temas como autoajuda e misticismo não me chamam à Índia, penso como Catherine Clément, autora de “A Viagem de Théo”, que nos recorda acerca da banalização dessas coisas indianas: Quando se sentem perdidos, os ocidentais adoram mascarar a alma: então, vêm a correr para a Índia, para locais de retiro concebidos para eles, com êxtases coletivos e devoção desenfreada, e os indianos fazem com isso bom dinheiro. São excelentes comerciantes. Até inventaram uma palavra bem divertida para definir esse comércio particular: Karma Cola[1].

Desde moleque desconfio desses “poderes” cujos “resultados” são meros “efeitos placebo”, a fé subtraindo razão. Não critico ou julgo quem viaja com tais objetivos, mas me estranha que se emocionem tanto. É um espanto. Também não na “bondade” e “proteção” divinas – especialmente na Índia – quanto me  deparo com seres humanos sofredores, sem pedaços do corpo, pontas dos dedos, pernas ou olhos, rostos imundos, deformados, famintos, miseráveis, sem qualquer conforto físico, doentes dormindo nas ruas entre lixo, baratas e ratos, com hanseníase e outras enfermidades já há muito erradicadas pela ciência. Na verdade, toda vez que vou à Índia, volto ainda menos espiritualizado pelos casos de estupro e por tal desvalorização da mulher. Sou da ciência. Tanto que não me aproximo sequer da pseudociência. Mas admiro a yoga e a meditação, dois dos muitos patrimônios que a Índia passou para a humanidade, mas daí ver misticismo em ambas é um devaneio.

Vou como turista mesmo. E sem vergonha ou culpa de sê-lo. Não tão alienado quanto da primeira vez, mas ainda com meu olhar estrangeiro e unilateral sobre uma cultura alheia e “exótica”, embora sem preconceitos. Sou zero místico. E abaixo de zero, crente. Mas a Índia é tão magnífica, tem tanto potencial de atrair turistas místicos que um destes que for lá procurar, seja lá o que for, encontrará. Coisas da mente humana. Felizmente, em outros âmbitos também: cultural, material, folclórico, arquitetônico, turístico, culinário…

Não creio sequer num Deus, que dirá nos 300 milhões de divindades hindus[2], embora eu me esforce para compreender seus significados e simbolismos. Da assustadora Kali – a deusa negra, dançarina dos crematórios, de cuja boca pende uma protuberante língua vermelha sedenta de sangue, com sua guirlanda de crânios ao redor do pescoço e um cinto feito de mãos decepadas – que para complicar ainda mais minha “compreensão”, é a personificação de outras deusas cujos nomes são Devi, Durga, Parvati, Uma, Sati e Padma. E o tal do Ganesha? Que dizer da “história” desta deidade – corpo de menino, cabeça de elefante – um dos mais comuns e populares do hinduísmo, filho de outros dois deuses – Shiva e Parvati? De Shiva, deus de destruição, o que prefere a morte à vida, algo que me soa estranho, ao mesmo templo sublime. Mas o que há de certo ou de errado nisso tudo? Especialmente acerca desse povo tão estranho e sublime com quem em poucos dias estaremos convivendo? Só consigo ver tudo como uma bela manifestação cultural, rico folclore de um povo de imaginação fértil, cultura de cinco milênios, além de algo que me ajuda a compreender a resiliência do indiano e sua altíssima capacidade de resignação.

O prazer da frugalidade

Não quero dizer que a recessão recente e duradoura não tenha me afetado, mas continuo reconhecendo-me um privilegiado que pode viajar, a quem nada falta e que vive muito bem. Havia tempo eu não tinha necessidade de orçar e rastrear gastos, e não sabia o que era não dormir porque não teria no mês seguinte recursos bastantes para pagar todas as contas. Quero exprimir que nossa abordagem mais “frugal” desta viagem – tanto no planejamento quanto no andamento – tem sido extremamente positiva nesta fase da minha vida. E me traz novos valores e sabores. Havia muito tempo que eu não tinha que poupar para viajar, racionalizar, deixar de comer fora e comprar coisas para concretizar uma viagem. Dormir em lugares mais baratos (ainda que longe de inconfortáveis ou espartanos), comer nos mais simples, reduzir o peso da bagagem, racionalizar o uso das roupas e de produtos, comprar quase nada, concentrar-me no que é realmente importante (como ter experiências mais marcantes), faz a Índia parecer ainda mais notável. Especialmente numa viagem para o país mais frugal que conheço. Ainda que a “frugalidade” a que me refiro seja discreta, apenas uma redução dos excessos, a eliminação do que não importa, o desprezo pelo desperdício, que concentre foco em novos valores, mesmo assim, discreta, é uma frugalidade boa, que evoca o suficiente, escancara o fato de que posso ter perdido a medida dos valores entre ter e ser, ter mais respeito pelas coisas fundamentais, como uso de água, luz, gás, comida, entre outros.

Pessoalmente, acho muito gratificante tudo isso, estar contente com as coisas do jeito que estão no momento, ter ainda melhor consciência de que sou um privilegiado que olha mais para os outros que para dentro de mim mesmo!


[1] Na segunda metade da década de 60, o Ocidente adotou a Índia como seu mais novo balneário espiritual. Os Beatles se lançaram aos pés do Maharishi Mahesh Yogi e hordas de jovens americanos, ingleses, franceses e de outros países ocidentais seguiram o exemplo de seus ídolos, invadindo a Índia em busca da libertação do tédio e do desespero de um mundo cada vez mais materialista. Karma Cola é o título de um livro hilariante e ao mesmo tempo deprimente apresenta flashes dessa invasão, revelando a profunda incompreensão do Oriente pelos ocidentais que lá buscam a salvação da alma.

[2] 330 milhões de deuses na Índia! Sim, deuses e deusas com múltiplas cabeças e braços. Que tipo de religião maluca é o hinduísmo? Na verdade, não é o que parece. Enquanto os hindus acreditam que Deus está em tudo, tudo é manifestação da única fonte e criadora da realidade – Brahman. Portanto, toda coisa viva e não viva é vista como sagrada. Cada um dos muitos deuses e deusas do hinduísmo também representa aspectos individuais de Brahman. Por exemplo, Ganesh é adorado por dar boa sorte e remover obstáculos. O hinduísmo não prescreve nenhum caminho definido, em vez disso, os seguidores podem adorar a qual divindade que a cada vez sentirem necessidade.