Que o leitor me perdoe a ousadia da confidência, mas viajo como turista. E tenho aversão às pretensiosas diferenciações entre turistas e viajantes. Sou turista clichê, um clichê ambulante, que não procura disfarçar tal condição. Estou ainda mais feliz com esta viagem, por que desta vez será na companhia de três pessoas especiais e queridas – namorada, irmão e cunhada -, experientes viajantes que sabem viajar, agem como turistas e se adaptam bem aos desafios. São turistas, sim, mas de olhos compreensivos, ponderados e receptivos, condições ideais para alguém gostar da Índia. Eu mesmo viajo mais sereno, sem o deslumbramento da primeira vez, com a maturidade conferida pela segunda e o forte desejo de que seja fenomenal esta terceira também para eles, que a Índia os penetre sem pedir licença, e como a mim, os torne quase doutores indianistas.
Todos sabem, não sou religioso, místico, peregrino nem viajo em busca de qualquer coisa que se relacione com espiritualidade. Não tenho espírito. E se tenho, não o sinto, porque ele insiste em não se manifestar. Felizmente, graças a Deus. Tampouco viajo para encontrar sentido na vida, pois já conheço o meu e ele me satisfaz. Também não para encontrar qualquer coisa no além. Não acredito nele e sou feliz por não ter avida mediada por crenças. Tenho mesmo alguma aversão a muitas delas. Talvez porque aceite a finitude da vida sem desespero, como algo inexorável, embora eu vá a contragosto. E por não acreditar em vida depois da morte. Convenhamos, é muito mais duro viver a vida quem reconhece que ela termina aqui, que não terá bônus ao seu fim.
Não vou à
Índia atrás do “interior de mim mesmo”, para “encontrar o sagrado”, para meditar,
senão para por vezes refletir. Muito menos para dedicar-me aos estudos do
hinduísmo védico e de coisas afins. Ao contrário, na Índia sou menos eu
do que em qualquer outro lugar do planeta, embora em nenhum outro eu seja levado às reflexões sobre a
vida, nem reavalie certas questões como a necessidade de maior frugalidade nela.
Cresço muito intelectualmente e torno-me ainda menos compreensivo com tudo o que
seja místico. São temas que não me interessam em particular.
Não me atraio a viajar à Índia a fim de me enfurnar num ashram-boutique, participar de workshops diários e papos-cabeça com gurus estrelados, tentando inutilmente – a despeito de sua sabedoria- apontar-me o caminho da “salvação”. Isso é coisa que começou no final dos anos 60, quando grande quantidade de ocidentais chegavam carregados de uma revolução cultural que valorizava a magia, o exotismo e os mistérios orientais. Entre eles, John Lennon e os Beatles. Foram à procura da salvação,mas também de uma temporada fumando seus baseados com alguma liberdade. Sairam de lá sem saber se se libertaram, como provavelmente todos os novos nômades que praticaram seu escapismo disfarçado de fome espiritual,exercendo um novo tipo de atividade turística – o “turismo espiritual” – lá explorado por gurus e levado a cabo em ashrams pelo país afora. Evoluiu tanto que hoje é quase uma commoditie indiana do ramo turístico, a espiritualidade tornada mercadoria. Para quem não curte alimentação natureba, alinhamento de chacras, medicinas alternativas, coisas místicas para a cura de enfermidades físicas e mentais ou em qualquer coisa que não se comprove cientificamente,praticar turismo assim é desastroso. Gosto de estar na Índia para ver indianos,não ocidentais místicos deslumbrados.
Então, temas como autoajuda e misticismo não me chamam à Índia, penso como Catherine Clément, autora de “A Viagem de Théo”, que nos recorda acerca da banalização dessas coisas indianas: Quando se sentem perdidos, os ocidentais adoram mascarar a alma: então, vêm a correr para a Índia, para locais de retiro concebidos para eles, com êxtases coletivos e devoção desenfreada, e os indianos fazem com isso bom dinheiro. São excelentes comerciantes. Até inventaram uma palavra bem divertida para definir esse comércio particular: Karma Cola[1].
Desde moleque desconfio desses “poderes” cujos “resultados” são meros “efeitos placebo”, a fé subtraindo razão. Não critico ou julgo quem viaja com tais objetivos, mas me estranha que se emocionem tanto. É um espanto. Também não na “bondade” e “proteção” divinas – especialmente na Índia – quanto me deparo com seres humanos sofredores, sem pedaços do corpo, pontas dos dedos, pernas ou olhos, rostos imundos, deformados, famintos, miseráveis, sem qualquer conforto físico, doentes dormindo nas ruas entre lixo, baratas e ratos, com hanseníase e outras enfermidades já há muito erradicadas pela ciência. Na verdade, toda vez que vou à Índia, volto ainda menos espiritualizado pelos casos de estupro e por tal desvalorização da mulher. Sou da ciência. Tanto que não me aproximo sequer da pseudociência. Mas admiro a yoga e a meditação, dois dos muitos patrimônios que a Índia passou para a humanidade, mas daí ver misticismo em ambas é um devaneio.
Vou como turista mesmo. E sem vergonha
ou culpa de sê-lo. Não tão alienado quanto da primeira vez, mas ainda com meu olhar
estrangeiro e unilateral sobre uma cultura alheia e “exótica”, embora sem preconceitos.
Sou zero místico. E abaixo de zero, crente.
Mas a Índia é tão magnífica, tem tanto potencial de atrair turistas místicos
que um destes que for lá procurar, seja lá o que for, encontrará. Coisas da
mente humana. Felizmente, em outros âmbitos também: cultural, material,
folclórico, arquitetônico, turístico, culinário…
Não creio sequer num Deus, que dirá nos 300 milhões de divindades hindus[2], embora eu me esforce para compreender seus significados e simbolismos. Da assustadora Kali – a deusa negra, dançarina dos crematórios, de cuja boca pende uma protuberante língua vermelha sedenta de sangue, com sua guirlanda de crânios ao redor do pescoço e um cinto feito de mãos decepadas – que para complicar ainda mais minha “compreensão”, é a personificação de outras deusas cujos nomes são Devi, Durga, Parvati, Uma, Sati e Padma. E o tal do Ganesha? Que dizer da “história” desta deidade – corpo de menino, cabeça de elefante – um dos mais comuns e populares do hinduísmo, filho de outros dois deuses – Shiva e Parvati? De Shiva, deus de destruição, o que prefere a morte à vida, algo que me soa estranho, ao mesmo templo sublime. Mas o que há de certo ou de errado nisso tudo? Especialmente acerca desse povo tão estranho e sublime com quem em poucos dias estaremos convivendo? Só consigo ver tudo como uma bela manifestação cultural, rico folclore de um povo de imaginação fértil, cultura de cinco milênios, além de algo que me ajuda a compreender a resiliência do indiano e sua altíssima capacidade de resignação.
O prazer da frugalidade
Não quero dizer que a
recessão recente e duradoura não tenha me afetado, mas continuo reconhecendo-me
um privilegiado que pode viajar, a quem nada falta e que vive muito bem. Havia
tempo eu não tinha necessidade de orçar e rastrear gastos, e não sabia o que era
não dormir porque não teria no mês seguinte recursos bastantes para pagar todas
as contas. Quero exprimir que nossa abordagem mais “frugal” desta viagem –
tanto no planejamento quanto no andamento – tem sido extremamente positiva nesta
fase da minha vida. E me traz novos valores e sabores. Havia muito tempo que eu
não tinha que poupar para viajar, racionalizar, deixar de comer fora e comprar
coisas para concretizar uma viagem. Dormir em lugares mais baratos (ainda que
longe de inconfortáveis ou espartanos), comer nos mais simples, reduzir o peso
da bagagem, racionalizar o uso das roupas e de produtos, comprar quase nada,
concentrar-me no que é realmente importante (como ter experiências mais marcantes),
faz a Índia parecer ainda mais notável. Especialmente numa viagem para o país
mais frugal que conheço. Ainda que a “frugalidade” a que me refiro seja
discreta, apenas uma redução dos excessos, a eliminação do que não importa, o desprezo
pelo desperdício, que concentre foco em novos valores, mesmo assim, discreta, é
uma frugalidade boa, que evoca o suficiente, escancara o fato de que posso ter perdido
a medida dos valores entre ter e ser, ter mais respeito pelas coisas fundamentais,
como uso de água, luz, gás, comida, entre outros.
Pessoalmente, acho muito
gratificante tudo isso, estar contente com as coisas do jeito que estão no
momento, ter ainda melhor consciência de que sou um privilegiado que olha mais
para os outros que para dentro de mim mesmo!
[1] Na segunda metade da década
de 60, o Ocidente adotou a Índia como seu mais novo balneário espiritual. Os
Beatles se lançaram aos pés do Maharishi Mahesh Yogi e hordas de jovens
americanos, ingleses, franceses e de outros países ocidentais seguiram o exemplo
de seus ídolos, invadindo a Índia em busca da libertação do tédio e do
desespero de um mundo cada vez mais materialista. Karma Cola é o título de um
livro hilariante e ao mesmo tempo deprimente apresenta flashes dessa invasão,
revelando a profunda incompreensão do Oriente pelos ocidentais que lá buscam a
salvação da alma.
[2] 330 milhões de deuses na
Índia! Sim, deuses e deusas com múltiplas cabeças e braços. Que tipo de
religião maluca é o hinduísmo? Na verdade, não é o que parece. Enquanto os
hindus acreditam que Deus está em tudo, tudo é manifestação da única fonte e
criadora da realidade – Brahman. Portanto, toda coisa viva e não viva é vista
como sagrada. Cada um dos muitos deuses e deusas do hinduísmo também representa
aspectos individuais de Brahman. Por exemplo, Ganesh é adorado por dar boa
sorte e remover obstáculos. O hinduísmo não prescreve nenhum caminho definido,
em vez disso, os seguidores podem adorar a qual divindade que a cada vez sentirem
necessidade.
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