Nesses tempos difíceis, cada um arruma seu jeito de suavizar em si os maus efeitos. Há quem faça exercícios, coma compulsivamente ou não faça nada mesmo, se entregue. Eu ouço música, leio, escrevo e trabalho. Não necessariamente nesta ordem, mas tal qual a fome em dia de apetite, as duas primeiras atividades ligam com voracidade minhas memórias de viagens ao desejo de descrevê-las. Pouco mais de dois anos depois, vivo a força da lembrança de um desses dias marcados feito cicatriz na memória. Dele sinto até os cheiros da chegada a Fatehpur Sikri – antiga capital do império mogol, de beleza espantosa – que tornou-se inapagável em minha mente.

Chegando à pequena cidade, não era, mas o que eu avistava parecia miragem. E como para mim todas as coisas devem ter que fazer sentido, destinei-lhe um olhar não resumido, um ato inconsistente que aquela vista majestosa jamais perdoaria. Ao contrário, o meu era de uma polidez e prudência recompensadas por uma das vistas mais superlativas que eu já experimentara, e de uma beleza e equilíbrio que minha capacidade de descrever inibem. Não era devaneio, senão tão concreta quanto não seria possível às ilusões.
A soberba estrutura de arenito apresentava uma simetria admirável, paredes enormes com esculturas detalhadas. Nenhum de seus espaços aparentava estar mal preenchido. Eu não estava ali para encontrar defeitos e, afinal, não acreditava que houvessem. Tomado pela admiração corri os olhos pelo topo, encerrado com pequenos e grandes chattris, cujas formas e desenhos iguais se repetiam podendo sugerir tédio, mas sequer um deles fora mal colocado, senão demonstravam que não havia qualquer linha se perdido no papel de quem os imaginou. Entre os desenhos geométricos da marcheteria também. Embora aos milhares, nenhum minúsculo pedaço de mármore branco ou preto fora erradamente assentado. E como se não bastasse, arrematava-se o portão por colunas altíssimas, esguias e elegantes, com invejável efeito sobre a observação do espectador. Assim foi minha primeira impressão do fabuloso Buland Darwaza – ou “Portão da Vitória” – de Fatehpur Sikri.

Logo que descemos do micro-ônibus lotado de nós e de outras sardinhas indianas, deparamo-nos com uma obra que me desafiava a razão. Talvez apenas olhares negligentes não experimentassem a sensação de hipnose. Sim, havia gente displicente, não tocada por sua grandeza, que subia os 42 degraus sem olhar para cima ou para a frente. E então, depois da travessia “perigosa” do portão, era engolida pela enorme boca para ser expelida no interior.
Quanto mais eu me aproximava, mais agradável e estimulante se tornava a ideia de reviver a experiência: atravessar pela segunda vez o maior portal do mundo, guarda da ainda mais impressionante cidade abandonada de Fatehpur Sikri.

Para além de elegante e de exemplo eterno da magnífica arquitetura mogol, o monumento é um dos mais representativos da genialidade de Akbar, de tal maneira que chegar novamente ali tornara-se um presente, sobretudo depois de um dia de viagem. Não que o caminho fosse transtorno. Ao contrário, fora de saborear cada quilômetro de retas e curvas, de povoados e descampados entre Jaipur e a “Cidade da Vitória”, mas nada se igualava ao poder daquele portal. Comprometedor de minha razão e equilíbrio, lugar onde toda a Índia mogol parecia caber, embora natural minha admiração, era inesperada a sensação de cruzá-lo para chegar ao imenso pátio interno. Permanecemos mais de uma hora visitando a Jama Masjid, o Buland Darwaza, a Tumba de Salim Chishti, o Diwan-i-am e o Diwan-i-Khas. E para um apreciador da arte e arquitetura, Fatehpur Sikri consagrava-se para mim num local imperdível, cujo estilo hindo-islâmico consagrava-se num conjunto de notáveis exemplos onde se percebem a personalidade do grande imperador.
Nada na Índia é banal, e qualquer visitante estrangeiro perceberá isso bem antes de visitar Fatehpur Sikri. Mas terá sido ali que se reconhecerá ordinário diante de tamanha grandeza. Terminada a visita, em sabia que estivera num lugar fabuloso a menos para conhecer no mundo.