TURQUIA, Geórgia e Armênia

IntroduçãoA chuva no Rio e o Sol da Turquia

Ouça TRAVELS (de Pat Metheny), enquanto lê

São nove da manhã.  Abril já vai em meio, mas chove como em fevereiro. As águas que deveriam fechar o Verão em março varam o Outono e arrasam a cidade. Tudo com tal força que parecem querer alargar seu período. Eu deveria estar no trabalho, não em casa, mas estou involuntariamente ilhado e preocupado com o aguaceiro e suas consequências. Contudo, a despeito deste Abril de águas a mil, da cidade encharcada e das tragédias previstas, penso no contraponto aos dias ensolarados que nos esperam na Turquia. Em julho, o sol estará a pleno, o céu azul, árido de nuvens naquele lugar onde a Europa encontra a Ásia.

Com naturalidade olho para o mapa-múndi e encontro o ponto onde em breve estaremos.  O cérebro – com força quase física – faz grudar os olhos no planisfério por mais tempo de que preciso.  Observo-o, enquanto tamborilo os dedos na escrivaninha, e renovo o prazer de viajar no mapa sem saber se a mente é quem me usa ou se sou eu quem me satisfaço dela.

Sorrio, feliz, quando noto que o cérebro ainda é uma fortaleza saudável, a despeito da idade. E que guarda as recordações da vida, entre elas as da infância, que recupero agora com emoção. Lembro-me bem de que costumava viajar assim quando moleque, com a imaginação me levando a visitar países deslizando os dedos sobre eles no mapa, e me recordando dos que já “conhecia” – através dos livros e revistas, até em músicas – e dos que sonhava um dia conhecer, percorrendo desse jeito mil caminhos, mundos sem limites ou fronteiras. Então, se sou hoje um pouco do que fui, viajar parece algo unido a mim umbilicalmente e, provavelmente, também escrever e fotografar, se bem me lembro do quanto gostava de fazê-los ainda tão jovem, daqueles prazeres naturais que nasceram comigo, porque nunca alguém me disse que eu tinha que escrever, viajar e fotografar.

Penso agora em Istambul, nesta senhora cidade com muitos séculos de idade, assim como nas vezes em que nela estive. Fazem sete anos desde a última, contudo a cidade ainda vive em mim como se não houvesse o tempo. A sensação de retornar à urbe – que amei logo na primeira visita – tem o mesmo sabor do entusiasmo inaugural, embora pela quinta vez.


A preliminar foi no século passado durante um inverno tenebroso e sob um feriado religioso em que tudo se encerrava. Lúgubre, cinzenta e nada turística. Mesmo assim, quando nos “encontramos”, foi como se ela me dissesse: “quero ficar no seu corpo feito tatuagem…”. Espero jamais esquecer, morrer comigo a lembrança da sucessão de impactos formidáveis que experimentei.

Desta vez, embora já tão familiar, minha volta a Istambul, esta diáspora feliz e desejada à “minha” cidade não de origem, mas como se fosse natal, me revolve a forte correlação emocional entre mim e Istambul. Desta vez, contudo, há motivação muito especial e em prazer encantador: apresentá-la à namorada, guiá-la não mais por seu sonho de conhecer, mas de explorar a cidade pela qual que vim a saber tem forte atração.

Por que sou tão feliz em Istambul? Por que ela me parece tatuada na mente? Às vezes me pergunto se eu seria feliz assim sem tê-la conhecido? Sou outro, tantos anos depois, e não a vejo com o olhar poético de outrora, mas ela ainda é um fermento intelectual e me faz sentir saudades, como as que sinto de Damasco, hoje impossível, contudo, a mais encantadora capital do mundo árabe.

Espero logo o dia chegar para revisitar Istambul, mas que só até ali o tempo passe corrido, e de então em diante, seja lentíssimo, porque tenho apenas uma vida e quero ainda muitas oportunidades de voltar e voltar a Istambul para passear e celebrar a vida. Me apraz pensar que será sempre assim, que verei Istambul com familiaridade, embora sem negligência, e ela não deixando de seduzir, embora eu, ali, seja uma vaga presença.

 Abro as portas da imaginação e despencam da mente as imagens de romãs abertas à metade esperando serem espremidas; de senhores com testas franzidas e copos de raki à mão, concentrados em seus tabuleiros de gamão; de pombos frenéticos incentivados por vendedores de milho; do enorme espaço público defronte à entrada da Mesquita Nova, à beira-mar de Eminönü; das barracas e carrinhos de comida com vendedores à espera de compradores; de copos de chá, folhas de uva recheadas, doces de nozes, kebabs de cordeiro e frango girando no espeto, castanhas defumadas e assadas, sanduíches de peixe laminado; de pequenas ondas salpicando de água salgada as paredes do mar e as balsas o Corno de Ouro; da ponte de Galata e dos pescadores cuidando de suas varas de pesca, olhando por cima o Bósforo correndo em direção à Ásia; de mil minaretes espetando o céu, das meias cúpulas das mesquitas e madraças desenhadas há séculos por Mimar Sinann e, depois,  já na Capadócia, onde nunca estive além do desejo, passar por formações rochosas e cânions surreais, rochas contorcidas, falos rochosos apelidados de “chaminés de fada”, cogumelos gigantes de pedra em vales erodidos, cavernas artificiais com habitações trogloditas e igrejas primitivas em Göreme.

Decido, então, entregar-me ao prazer da escrita. Antes, espio pela janela e enxergo a chuva torrencial intensificar-se. A ventania é de se ouvir e as árvores de se ver tombarem. Nada inspirador. O aguaceiro, contudo, me traz lembranças de viagens chuvosas: doze dias inteiros em Portugal e outros tantos na Andaluzia sob uma chuva renitente. Aparentemente, para muitos, não há diferença entre jornadas ensolaradas ou chuvosas, já que ambas nascem e se desenrolam inspiradas no mesmo propósito, e prosseguem assim, independentemente do clima. Mas como são diferentes! Já eu assim não vejo a mesma beleza nas paisagens sem os raios de sol.

O relógio corre lento e estou longe de fazer as malas, embora pense compulsivamente em escrever o relato desta viagem. Os olhos estão aqui, mas a mente perambula por Istambul enquanto, na impossibilidade de seguir ao trabalho, aceito o ócio como oportunidade. Ponho-me a exercitar o prazer da escrita, já que é dia de não fazer nada e de curtir a falta de tarefas e preocupações. Então, para mim, que aprecio a leitura de relatos de viagens e a escrita, estes foram os motivos acidentais para tornar-me um escritor.

Claro que já tive problemas com minhas veleidades criativas e meus bloqueios intelectuais. Ao escrever hoje, sou mais resiliente, percebo que “Lutar com palavras é a luta mais vã…”, como disse Drumond de Andrade. Mas tenho paixão por elas, e sei que meu problema não se encontra nelas, senão em meus limites intelectuais e culturais. O esforço, já deve ter notado o leitor que me acompanha há mais de uma década, vem com a colheita de benefícios do exercício: ter escrito quatro livros, os quais espero publicar um dia, algumas crônicas e artigos para meu blog e noutros sítios na Internet, além de duas matérias para uma revista de viagens, com a busca do prazer, que cresce na medida em que o aprendizado avança. Foi assim comigo, razão porque reescrevi cinco vezes meu primeiro livro – “Bom dia, Addis. Adeus, Etiópia” – até o ponto em que especialistas o considerassem publicável. Mas continuo tendo inveja – saudável, é claro – dos escritores de verdade. Ela é quem aumenta o apetite pela leitura de relatos de viagens.

Estou no escritório de minha morada sentado diante do notebook. Cercado de livros, estantes, guias de viagens e recordações. Arrumo-os com capricho, fazendo cenários com os livros e objetos a eles e aos destinos relacionados. É meu espaço, minha mala de sonhos de viagens, de todas que um dia foram imaginadas e muitas que tornaram-se realidade. Há muito por trás dessas coisas. São uma ponte para o passado, tanto quanto um impulso para o futuro.

Me rodeiam dois pequenos globos terrestres, blocos de anotações, uma caneca com lápis e canetas que apanhei de hotéis no mundo, um abajur réplica de um Tiffany e um relógio bem moderno com termômetro. Estes dois últimos são os únicos bens que não se relacionam com as viagens. Decoram e servem. No mapa-múndi, acima dos olhos, pinos marcam 65 países. Olho para alguns mais detidamente e me lembro das experiências vividas em cada qual. Não coleciono países, contudo, muito me apraz contar os que já estive e revisitei. A câmera fotográfica também fica por aqui. Vejo-a desgastada por anos de uso, com cicatrizes dos maus tratos por que passou e com marcas de fricção e atrito. Com ela, eu trouxe para casa milhares de pedaços de muitos destinos, souvenirs fotográficos que revelam tanto a minha curiosidade quanto meu jeito de olhar, e hoje ilustram meus livros, este blog e minhas redes sociais. Entregam-me boas lembranças todas estas coisas e, já que ilhado estou, sento-me sabendo que escreverei.

Há tempos eu não passava uma manhã de segunda em casa. Uma segunda só minha, contemplando com olhar ora vago, ora penetrante, todos os objetos com os quais estou familiarizado. Viajando nas minhas memórias e nessas coisas carregadas de significados e lembranças, vão elas praticando suas verdades. Já não sou mais aquele moleque sentado à janela de minha casa, por onde eu imaginava o mundo e assistia a vida passar, no entanto, olho para trás e sinto o mesmo prazer quando imagino uma viagem e posso ir além, viajar sem estar na jornada. Contudo, pensar no passado é bom, mas tem muito mais charme olhar a vida à frente.

Começo a ler e a escrever sobre uma jornada sempre antes de iniciá-la, e quase sempre o faço no mesmo ambiente de casa, neste meu museu pessoal de viagens, onde cada coisa ou peça exposta funciona como nota de um lugar, inspira-me e torna o ambiente perfeito ao propósito de descrevê-las e planejá-las. Escrevo agora a introdução a este relato de viagem, cujo estilo – já conhece o leitor frequente, mas não o que aqui vem ler-me pela primeira vez – não é o de contar como foram os hotéis, quanto custaram os preços de ingressos, mostrar meu look do dia, fazer-me parecer mais importante que o destino, nem horários de funcionamento das atrações, a menos que estejam inseridos no contexto de relato. Claro que fico ao dispor de eventuais consultas neste sentido, e com prazer, mas guias turísticos já há de montão e espetaculares. Relatos de viagens é que são poucos.

Ouço Travels, obra-prima composta e tocada por Pat Metheny usando uma guitarra elétrica semi-acústica. Dá-me inspiração, ao contrário de sempre, quando a obstinação e a paciência têm predominado no meu ato de escrever. Talvez depois eu ouça Rapsódia Húngara, de Franz Liszt, como costumava fazer com meu pai, enquanto lia na sala de casa e ficávamos os dois sequestrados, ele pela leitura, eu pela música. E assim, nesta toada sentimental de boas lembranças, nesta área íntima de minha casa, lugar onde melhor se desnuda minha mente e sem qualquer vergonha que a intimidade permite, onde transito no tempo e sinto brotar do território físico as primeiras imagens e lembranças imateriais dos lugares onde estive, as paisagens e experiências que a memória descarrega adquirem outra perspectiva, findam por dar origem às palavras com que conto minhas micro-histórias de viagens.

Agora – sobre esta à Turquia e ao Cáucaso – Istambul é só um pretexto para o texto introdutório, porque minha vontade é de fazer um livro inteiro, do prefácio ao epílogo. E se há tantos lugares no mundo entre os que me apraz descrever, Istambul, cidade à qual regresso sempre como se fosse a primeira vez, está entre as primeiras. E se eu não fosse o que sou, teria me tornado escritor, passaria aqui todos os dias a fazer o que faço com tal prazer: planejar uma viagem e escrever sobre ela.

 Julho chegará e seis meses de planejamento, economia e preparação para a viagem terão se passado. As malas estarão prontas e também a cabeça. Este relato, que resulta desta viagem a Istambul, é uma revisão da cidade, onde estive a primeira vez em Março de 2000. Nada mais pretendo que refletir sua atmosfera incomparável, embora saiba que mal conseguirei arranhar a superfície do intento, senão mostrar um vislumbre de séculos de culturas e história, rabiscar sua  silhueta majestosa. Sinto nova emoção, não apenas a de revê-la, mas mostrá-la à namorada, com a qual, juntos, passaremos muitas horas em cinco dias vagando pela cidade, explorando seus bairros históricos e capturando seus traços mais notáveis e particulares. Com este relato, presto meu singelo tributo a Istambul.

A seguirCapítulo 1 – Merhaba, Istambul! [1]

[1] Alô, Istambul!