
Lembro-me bem daquela manhã. O navio chegava ao porto sob um sol suave enquanto um vento delicado soprava o deck do Costa Mágica. O relógio marcava 7 horas, e embora longe o Verão, já se sentia morna a brisa, como um prenúncio de calor agradável para o resto do dia, um prêmio para quem está com o Saara rondando. O enorme transatlântico – na época, o maior de cruzeiros com bandeira europeia – finalizava a manobra de atracação. Parte dos passageiros adiava o desjejum e acompanhava o “evento”. Afinal, eram 103 mil toneladas de aço encostando no concreto do porto à borda do Mediterrâneo, próximo ao delta do Rio Nilo. Alternávamos o olhar entre o casco e a cidade e sentíamos doer nos olhos o céu azul, nas narinas o cheiro de areia e outros odores coadjuvantes do Saara, e na pele um vento delicado. Uma beleza de cenário para ver e sentir.
O navio encostou com segurança e precisão, de modo que todos corremos para o café-da-manhã. Duas horas depois já nos encontrávamos na Biblioteca de Alexandria, moderníssima, com milhares de títulos de livros e 3000 manuscritos e mapas antigos.
Reconheço o Egito como um destino indispensável a um viajante, e ainda que eu tenha estado em Alexandria anos antes, assim que cheguei ao Cairo considerava o país como inédito para mim. Embora a visita a Alexandria tenha sido atraente e proveitosa, o Egito era país com o qual eu sonhara desde a infância, e ao deixarmos o porto não me senti satisfeito, pois eram as pirâmides, o Vale dos Reis e o Rio Nilo que povoavam meus sonhos. Então, eu precisava retornar.
Quase chego a sentir-me tolo revelando ao leitor que o Egito me atrai desde moleque, porque não estou só: todos os relatos de viagens que li sobre o país mencionavam que seus autores pensavam no Egito desde a infância. E muito mesmo antes de mim. Curiosos, exploradores, escritores, viajantes e fotógrafos desbravaram o Egito consagrando um sonho de infância. Quando adultos, gente como Napoleão Bonaparte deu curso à sua curiosidade, neste caso através de uma invasão de pouco sucesso militar, mas que resultou em descobertas científicas e acúmulos culturais extraordinários. Tantos que dali em diante o país passou de “lugar exótico e curioso” à “egiptomania”[1]. Já o Marrocos, para onde iremos depois do Egito, é o tipo de país que a gente visita e sabe que voltará. Tanto que fez-me querer retornar pela quarta vez. Ambos destinos são irreparáveis, mas para quem escreve relatos de viagens, estão entre os terrenos mais férteis em inspiração e conteúdo.

Pouparei o leitor de me estender aqui nos detalhes do roteiro ao monte de cidades e lugares que visitaremos nos dois países, o que deixarei para contar-lhe em capítulos. Agora, dou-me por bem relatando nossa chegada ao Cairo.
Cairo – Um breve gosto do Oriente
Numa olhada pela janela começava nossa jornada pela terra dos faraós. Dois dias antes estávamos a comemorar o Natal em casa, e entre abraços, comidas e presentes, pensávamos na viagem. Agora, prestes o avião a aterrar na terra dos faraós, às duas e meia da manhã, hora que, convenhamos, não é lá das mais adequadas de se pousar em lugar nenhum, era a ansiedade, não o sono, o que melhor eu sentia, não sem juizo, depois de três aeroportos, dois aviões e duas dezenas de horas, pousar no Cairo era um prêmio pelas mais de dez horas de intervalo de conexão, ainda que tornasse possível o repouso num hotel com vista pro mar nas proximidades do aeroporto Fiumicino, além de um delicioso almoço com vista para barcos de pesca ancorados diante de nós.
Enquanto a aeronave desce e prepara-se para o pouso e meus olhos procuram as maravilhas icônicas do Egito, as três pirâmides. Contudo, apesar de 130 desses monumentos espalhadas pelo país, não avisto qualquer, sequer a sombra de suas mais famosas: Quéops, Quéfrem e Miquerinos, embora eu saiba que estejam por ali. A uma dezena de minutos de tocar o solo, já a mente liberada da vida doméstica, deparo-me com o mar de luzes urbanas da enorme metrópole, com milhares de prédios suburbanos cercando a pista, próximos entre si, todos do mesmo tom monocromático do deserto, de cuja areia saariana parecem terem sido feitas suas alvenarias e revestimentos, edificações populares de uma arquitetura invariável e monótona.
Lembro-me bem da rigorosa decisão de viajarmos ao Egito devido às questões de segurança, relacionadas com atentados contra turistas e agitações políticas. A indústria turística alcançou seu ponto mais baixo com o ataque de 2015 a um voo vindo de Sharm el Sheikh, onde mais de 200 pessoas morreram. A violência continuou com uma bomba destruindo um ônibus de turismo perto das pirâmides de Gizé em dezembro de 2018, matando quatro e ferindo quatorze pessoas e, em maio, algumas manifestações políticas que severamente contidas passaram a devolver a confiança de que era seguro viajar ao Egito.
A tripulação anuncia o pouso. Em italiano, inglês e árabe egípcio. O idioma local soa bem nos meus ouvidos, com sua bonita sequência de notas densas, ásperas e arranhadas nos “erres” guturais. Estamos ansiosos por esta jornada por terras com cinco mil anos de história, de faraós, pirâmides e túmulos, templos esculpidos na rocha, esfinges, ruínas, cidadelas, mesquitas, mercados, deuses, mitos e tesouros, tantos que ainda há muitos enterrados por descobrir.
O momento da chegada é sempre marcante, quer pelo alívio, quer por assinalar o cruzamento da fronteira entre o sonho e a realidade. Ajusto-me à nova situação e administro as incertezas com o desconhecido, os instigantes choques culturais, por ter há pouco deixado o cotidiano para nos tornarmos turistas em ação.
Sinto o toque do avião no solo e ele se aproxima do bonito, novíssimo terminal internacional do Cairo. Assim que é permitido, solto o cinto de segurança e me levanto da poltrona. Estico a coluna e retiro as malas do compartimento. De pé, no corredor, aguardo com calma – se assim posso chamar este inexorável momento de inquietude – que a gente à minha frente comece sua marcha à saída do avião. Giro o corpo no próprio eixo e aceno para meus companheiros de viagem; recebo os seus de volta. As portas se abrem e meu corpo ainda pesado começa a empurrar a mala de rodinhas. Colados uns aos outros, todos buscam com urgência a mesma porta, a saída para o alívio, pois cruzá-la significa pôr fim ao “aborrecimento” de voar. Me despeço dos comissários de bordo como se o fizesse do avião, e logo à saída encontramos nosso receptivo para nos ajudar com as formalidades do aeroporto. Decorreram sem qualquer intercorrência, devo dizer. Ponto para o Egito. Do desembarque aos vistos, do recolhimento das malas à passagem pela fiscalização da Alfândega, eventos que embora já nos fossem bastante familiares, foram aqui luxuosamente auxiliados pelo homem da operadora local que contratamos. Um belo visto de papel-moeda colado no passaporte selou nossa entrada no país. E cartões SIM para celulares comprados no saguão do aeroporto encerraram nossa relação com o lugar.
Já no hotel, situado no centro do Cairo e nas proximidades da Praça Tahrir – não particularmente próximo das Pirâmides de Gizé, lugar de preferência de nove entre dez turistas – mas escolha consciente e ponderada devido ao fato de que a maior parte das atrações que visitaríamos no Cairo estavam bem mais próximas do centro da cidade do que das pirâmides, e que os deslocamentos entre Gizé e o centro da cidade costumam tomar muito tempo útil do turista.
O gentil profissional despediu-se após preceder ao nosso check-in, compartilhar sua gratidão por nossa visita e combinar para as 12 horas da mesma manhã o encontro com nosso guia no lobby do hotel, e então subimos às nossas habitações no trigésimo andar. Vista daquela altura, de madrugada a capital do Egito é bem iluminada. O belo, amplo panorama aéreo defronte ao Rio Nilo confiro numa olhada rápida através da janela do hotelão, cuja vista instigante estimula a imaginá-la depois do Sol nascer. Sinto um breve, mas delicioso gosto de Oriente, contudo, deixo de admirar a paisagem porque a meta é dormir pelo menos de cinco a seis horas – entre as quatro e as nove ou dez da manhã – a fim de completarmos o tanque do nosso bom estado físico e mental.
A Lua é Nova. Não é Crescente nem Meia, é Nova. O céu é escuro e toda a noite cabe no meu quarto, mas logo o Sol virá e fecho as janelas e cortinas para evitar sua inconveniência àquela altura. Vou à porta e penduro o do not disturb na massaneta e vamos para onde planejávamos desde que saímos: à cama.
Não é incomum que nessas horas em que repouso a cabeça sobre o travesseiro uma canção soe na minha mente. Nesta madrugada, são notas e versos que cantarolou: And I think to myself what a wonderful world…
Penso no mundo e no quanto ele é maravilhoso. Me sinto bem com o privilégio que é poder viajar e fico imaginando o que veremos lá fora, imagens que sem saber habitariam meus sonhos. Logo adormeço “pregado” à cama. Daqui a pouco eu volto para contar o dia.
A seguir (com fotos e filmes, prometo!):
Cairo – A primeira manhã – Um cartão postal visto à janela
[1] A “descoberta” (científica) do Egito, entre o final do século 18 e o início do século 19, provocou uma onda de interesse por todas as coisas egípcias, da Europa aos Estados Unidos, fascínio que inspirou uma onda de turismo ao país, e se manifestou na arquitetura, arte e cultura ocidentais através de uma variedade de desenhos e motivos inspirados na terra dos faraós. Passou-se a chamar esse entusiasmo de egiptomania.