No centro velho da cidade, a Torre do Relógio da Praça Sardar é um marco, e além de mostrar as horas com precisão britânica, o belo relógio espia do alto um labirinto de ruas estreitas, calmas e surpreendentemente alheias à efervescência vulcânica ao redor da torre que o abriga. A cidade se espalha para além dali, mas todo mundo parece morar naquele quadrado, porque é mesmo extraordinário, porque todos querem ficar por ali numa agitação que nunca termina.

Protéticos, barbeiros, costureiros e vendedores instalados na praça aguardam com paciência indiana por seus clientes. Mulheres também, talvez em maior número, a maioria sentada no chão, vendendo roupas coloridas amontoadas em pequenas pilhas sobre lonas encardidas. Bancas de frutas e frituras nos convidam a saborosas, mas imprudentes experiências gustativas. Ela – a torre e seu relógio inglês -, além das ruas e das pessoas que a circundam, é vigiada mais distante pela imponente, altiva fortaleza de Mehrangarh, que soberba no alto da colina, a tudo regula.

Enquanto circulo e observo, cruzo com olhares bons e curiosos, interesseiros e interessantes. Mulheres cintilam em saris coloridos, emprestam a graça e leveza que falta ao energético espaço. Homens conduzem e buzinam motonetas que parecem prestes a se desfazerem. As vacas – aqueles animais-divindade que na India, muito embora não frequentem cultos ou templos, têm-se como sagradas – ficam ali, ao Shiva dará, deitadas ou caminhando sem destino e sem que ninguém as importunem, tal como é próprio aos seres sagrados.

Cães maduros e filhotes serelepes andam entre tuk-tuks, ambulantes, pedestres, desocupados, carregadores, pedintes e mendigos. Se não me escapa nada ou ninguém, é o grupo de coisas e seres que passam ou ficam na praça, aperfeiçoando o que na Índia chamamos “bagunça”, mas que o tempo e a boa observação nos faz perceber lógica, fundamento, princípio e ordem.
A cacofonia de sons – alguns decifráveis, outros não – e a inquietação da Praça Sardar de Jodhpur podem até consumir a estabilidade mental dos visitantes, mas tudo o que se vê, se ouve, cheira, toca e experimenta é precisamente o que faz valer uma viagem ao país. Estas experiências – de contemplação ou participação – tornam a Índia este destino tão fabuloso, para além do que já encanta seu patrimônio cultural e arquitetônico. Se ainda não o tiver percebido até então, será ali, na Praça Sardar de Jodhpur, que o visitante verá consumadas todas as verdades e clichês que ouviu do país, tudo aquilo que lhe pareça tão verdadeiro quanto seu oposto, e tão confirmável quanto enganoso.

Aquela, decididamente, é uma vida que não nos pertence, mas quase podemos a senti-la como nossa, como se houvesse um princípio ativo oculto no ar que entra pelas narinas, chega aos pulmões e pela corrente sanguínea, termina no cérebro. E como os deixando num estado alterado de consciência, consagra-se num êxtase e nos marca como cicatriz.
Johdpur é mais que uma cidade que merece ser vista e terem contadas as experiências nela vividas; é para jamais esquecer. Por isso me apraz tanto agora escrever e reviver aqueles momentos.
Quanto melhor o envolvimento, maior o desgaste, mas o cansaço mental, às vezes exaustão, de alguma maneira é compensado. Os contrastes entre beleza e pobreza são invasivos, e por certo hão de ferir a sensibilidade do observador, já que antes atingem a dignidade humana. Chegam a magoar, entristecer, marcam o observador, mas são efeitos que passam, ainda que não se esqueçam. São como ferimentos, que um dia doeram, mas viraram cicatrizes: já não doem, mas lembram ter doído. E quando o coração parece cansado, o que os olhos enxergam desperta o ânimo novamente. E se chorar é natural para os mais sensíveis, sentir as lágrimas discretas e silenciosas correndo sob os olhos é parte da experiência. Ao final, entre mortos e feridos, salvamo-nos todos e, então, a Índia torna-se uma droga que depois da abstinência apela ao regresso.

Fotografo tudo com intensidade fora do comum e sinto o calor do processador da câmera esquentar a palma de minha mão. Desligo-a. Enquanto ela e meu cérebro esfriam, entramos no modo “repouso”. Deixo-me à contemplação dos pombos, que em bando agitados tiram rasantes de minha cabeça. Acompanho suas evoluções como se buscasse nelas uma tranquilidade reparadora. Volto à Terra e percebo que não teria sido tão perfeita a visita à cidade sem que tivesse vivido aqueles exaustivos, tortuosos momentos na Praça Sardar, o lugar mais exuberante de vida em Jodhpur.

– Preciso trocar dólares, digo a Gajraj, nosso guia .
Ele nos leva a uma pequena loja de chás, massalas e incensos, com a melhor variedade da cidade, especialmente o pimentão vermelho de Mathaniya e darjeelings embalados a vácuo.

– O proprietário é um dos melhores cambistas da cidade, nos diz o guia.
O sol já anuncia sua ida para o Japão quando peço para retornar à torre. Subimos quatro ou cinco degraus que levam ao seu embasamento e depois ao topo, onde chegamos ao relógio para ver seu mecanismo. Desde este plano inicial, ligeiramente elevado em relação ao da praça, assisto à vida indiana passar e compreendo ainda melhor a lógica de seu movimento enquanto os sons que misturam vozes com ruídos da rua enchem os ouvidos.

A Torre do Relógio, ou Ghanta Ghar
Construída pelo marajá Sardar Singh, é uma parte importante da história da cidade. Tem alguma beleza e atrai seu desenho de uma arquitetura distinta. Cabe um olhar cuidadoso neste marco da cidade, ponto turístico que não atrai turistas, já que nenhum estava por ali disposto a pagar algumas rúpias para subir suas estreitas escadas, talvez desconfiados de sua estabilidade. No topo, conhecemos o Sr. Mohammad, homem que cuida do mecanismo e mostra como as coisas funcionam por ali. O espaço é apertado, mas a experiência e o mecanismo do relógio valem a pena, muito embora a melhor atração seja mesmo o Sr. Mohammad. Ele e seu filho são, atualmente, as duas únicas pessoas que sabem fazer o relógio funcionar.

Um passeio pelo Summer Market e pelo Sadar Market de Johdpur
O enigma clássico indiano que emana das ruas das cidades do Rajastão confunde e enfeitiça quanto mais nos aprofundamos em seus cenários. Da praça para as vias escondidas por trás dela, os caminhos são uma sucessão de surpresas, de encontros e experiências. Arquitetura, arte, cultura, comida e gente, tudo tem o carisma especial que só se encontra na Índia.

Uma série de bazares especializados por tipos de mercadorias vendem de salwar kameez a móveis, de roupas de casamento e artesanato a calçados, de bordados, tecidos, marionetes e especiarias a alimentos, joias, brocados e pashminas, mais leite e queijo, chá, tâmaras, implementos agrícolas, frutas, verduras, legumes, produtos de beleza, flores, óleos e perfumes, especiarias, jelabi, comida e chai. cada qual tem seu nome: Sojati Gate Market, Nai Sarak, Mochi Bazaar, Kapraa Bazaar, Summer Market, Sarafa Bazaar. É preciso algum preparo para explorá-los, especialmente a companhia de um guia, pois são um emaranhado de becos antigos e movimento que confunde.

Uma loja de fantoches rajastanis me atrai especialmente. Os bonecos têm grandes olhos e roupas brilhantes, ficam pendurados por cordinhas à espera de alguém para lhes embalar e dar-lhes vida. Recordo-me das apresentações que já assisti e lembro de seus movimentos. Contam histórias dos tempos mogóis, de batalhas, romances, bravura e baladas. Ao fim da caminhada, paramos para beber um fabuloso lassi de manga com gengibre, cremoso e gelado no ponto certo, o melhor que provamos na Índia. Depois de uma hora numa loja de pashminas, encerramos a exploração dos bazares de Jodhpur.

No “caos feliz”, o Toorji Ka Jhalra, um suntuoso baoli
Ainda que pareça de outro planeta, quase uma insanidade coletiva, desorganizado na aparência, o caos que faz sentido e tem funcionalidade se dissipa assim que nos afastamos da praça e saímos dos mercados. Entramos na rua Tunwar ji ka Jhalra e continuamos por becos, até chegarmos a um grande largo onde fica Toorji Ka Jhalra, um suntuoso baoli escondido num canto da cidade velha. Poucos turistas vão até ali, apesar de seus setecentos anos de idade, intermináveis degraus feitos da mesma pedra dos palácios que conduzem a um abismo, profundo e fascinante, com pavilhões e colunas, que o torna uma preciosidade imperdível, cujo desenho intrigante tem padrão repetitivo e harmonioso. Não resisto à vontade e desço alguns degraus. Não chego à profundeza, onde fica a água verde acumulada, mas sinto o frescor. No Verão e nas monções, jovens mergulham dos degraus mais próximos à água e mulheres recolhem água em cacimbas. Observo e fotógrafo, deslumbrado, satisfeito, verdadeiramente realizado por vê-lo e registrá-lo na câmera.

Tornei-me grande fã dos baolis desde a primeira vez que vi um destes. São construções inigualáveis que acredito só existirem na Índia. Quando programamos a viagem, selecionamos três que desejávamos visitar, entre eles o Tooriji ka Jhalra de Jodhpur, cuja lenda diz ter sido construído por uma rainha, embora a história registre que foi pelo Marajá Abhaya Singh, em 1740. Se eu tivesse dom artístico, reproduziria a imagem em rabiscos, a lápis ou em pinceladas molhadas numa aquarela em tons pastel. Registro como sei e posso, com fotos, exercendo o ato criativo que dura apenas um breve momento, o instante relâmpago, o dar e receber durante o tempo suficiente para nivelar a câmera e prender a presa fugaz em numa caixinha[1].

Índigo blue, anil, azul. Para onde foi o azul?

Perto do baoli ficam as casas azuis. Eram tantas há alguns anos que deram o apelido à cidade. Diferentes explicações definem o uso da cor, embora pouco importe. Entre elas, a religiosa, pois seus residentes pertenciam à classe brâmane – a mais alta da sociedade hindu – e pintavam suas casas assim para distingui-las das demais.

Shiva também seria um motivo do azul. Afinal, o deus com corpo de homem e cabeça de elefante tem a cara dessa cor. Outra explicação mítica afirma que o fundador da cidade – Rao Jodha – mandou pintar as casas ao redor do forte para que a vista se parecesse com o mar. E por último, mas não menos importante, porque a cor azul protegeria as casas contra mosquitos, além de repelir a insolação, mantendo-as frescas.

Contudo, hoje, o apelido “Cidade Azul” parece inapropriado, pois o “mar” de casas da cor índigo que se estendia por uns dez quilômetros ao longo das muralhas da histórica cidade velha, hoje parece uma poça. O “bairro azul” já não passa de algumas ruas, mas ainda vale procurar por aquelas que insistem em manter o tom quase violeta, de anil, a cor de um dos mais antigos corantes usados pelo homem, cuja história começa exatamente na Índia.

[1] Henri Cartier-Bresson