Ouço seus ruídos e concluo que a cidade despertou antes de mim. Alguma luminosidade atravessa as cortinas, mas não o bastante para me tirar da cama. Alguma preguiça me resta, afinal, foram poucas horas de sono, embora uma bem dormida madrugada. Observo o quarto e detenho o olhar nos detalhes. Não são nada atraentes e evidenciam marcas do tempo, um hotel que já teve seus dias de glória, embora ainda seja um ícone do Cairo. É um dos mais altos edifícios da cidade, com mais de 30 pavimentos, o que me leva a imaginar a vista está além da janela. Estar às margens do Nilo parece hoje ser sua maior qualidade. Embora não se possa afirmar que estamos de ponto turístico, os dois quilômetros da praça Tahrir[1] e do Museu do Cairo nos deixa bem mais próximos de todas as demais atrações da cidade. Comparado a um hotel defronte as Pirâmides de Gizé, opção que a operadora nos ofereceu, escolhida por nove entre dez turistas, os mais de 20 km de distância nos sujeitaria ao tráfego e retenções naquele que considera-se entre os mais engarrafados do planeta.
Apanho os óculos, levanto-me e vou à janela. Pelo vidro da floor-to-ceiling window – como chamam o janelão do chão ao teto – a porção que avisto da cidade é quase toda do eterno Rio Nilo e em pequena parte de um medianamente largo horizonte, contudo comprometido pelo céu embaçado. Abro a janela e vou à varanda. Sim, os quartos têm uma varanda e eu preciso de óculos. Apesar de supor o frio, a vista é um convite, então saio como se testasse o quão glacial é o Inverno no teto da África. Qual nada. É Inverno, mas é África. Não demora muito e já sinto seus efeitos na pele.
A parte da urbe e do grande rio que avisto são, embora grandiosas, pequenas amostras de suas amplitudes. Neste Rio Nilo – o Nilo Azul, que começa no lago Tana, na Etiópia, que tive o privilégio de conhecer, e se junta ao Nilo Branco, ao sul do Egito, em Cartum, no Sudão, e juntos formam o rio mais longo do mundo – que em dois dias percorreremos em seu trecho mais turístico – entre Assuã a Luxor – e de volta ao Cairo, seguindo seu curso natural até o mar Mediterrâneo.
O guarda-corpo da varanda não é suficiente para que eu não sinta uma forte vertigem, mas também muito especial, com um panorama só visto pelos pássaros. Me ocorre uma ilusão na, um dejá vu que me leva a faz pensar já ter estado aqui, embora jamais, mesmo parecendo tão familiar. O efeito é breve como uma faísca, mas a sensação é de uma eternidade. Por certo um estado confusional da mente que mistura as centenas de imagens vistas antes e o leve torpor de um despertar recente.

O céu é embaçado, leitoso, mas diferente de atmosfera de Delhi, onde se constitui de duas partes de fumaça e uma de ar. Aqui não, ela é salpicada de minúsculos grãos de areia que chegam do deserto e, juntos à fumaça dos carros, dá ao céu do Cairo o personalíssimo “tom celeste egípcio”, um eufemismo carinhoso que tenta amenizar a expressão “poluição atmosférica”. Dizem que nesta cidade à beira do deserto, quando a brisa converte-se em ventania, acossa a cidade trazendo uma poeira que embaça a visibilidade em 70%. Depois, com a calmaria, a poeira deposita-se nas janelas, fachadas e letreiros, onde então passa a aparentar estar ali desde a eternidade ou, então, desde que Cleópatra era menina.
Observo a grande torre do Cairo, a ponte Qasr el-Nil, uma enorme bandeira do Egito e o absorvente rio Nilo dividido pela ilha Gezira e o bairro Zamalek. Embarcações pequenas e médias navegam por este trecho da cidade que chamam de Garden City, um pedacinho bonito e amplo da urbe, onde mora a parte privilegiada dos 20 milhões de habitantes cairotas, número que parece inverossímil, sobretudo quando nos damos conta de que toda a população de Damasco, de Beirute, Bagdá e Riad não dariam conta de completar a do Cairo.
Os prédios aqui parecem mais artísticos, têm desenhos mais bem cuidados, são mais atraentes do que as unidades de armazenamento do proletariado que vimos ontem de madrugada, quando pousamos. Dizem que os miseráveis no Cairo não moram nas ruas, que há décadas os sem-teto uniram-se aos sem-vida indo morar num gigantesco cemitério, transformando mausoléus em residências com direito a puxadinhos, posses de túmulos, locações, sublocações, comércio e parabólicas. O governo levou água e eletricidade, transformando a versão de moradia dos mortos em algo mais, digamos, vivo. Chamam-na “Cidade dos Mortos” e existe desde o século XIV. Dias depois perguntei ao nosso guia se era um lugar visitável. Ele respondeu que não, porque é perigoso. Uma pena.
Recupero da mente a programação do dia, cheio de tarefas turísticas, o que acentua meu desejo de largar a varanda e partir para a exploração. Custo a deixar a varanda e meu último olhar à paisagem foi como se estivesse agradecesse por um panorama que não cabia em si, embora sua parte mais desmedida ficasse para além do hotel. Me afasto sem dar as costas, sem desprezar o que agora invade o quarto depois de abertas as cortinas.
Retorno ao quarto e dedico-me a desfazer parte da mala e a explorar um pouco mais da acomodação, além de verificar as atividades do dia e separar o que usarei. Arrumo na mochila as câmeras, baterias e carregadores. Configuro a conexão do celular e do notebook com a Internet seguindo as instruções fornecidas durante o check-in. A namorada arruma-se no banheiro, seca os cabelos e fecha a porta para que o ruído não me incomode. O celular vibra e leio a mensagem de Mohamed Besheer, quem cuidou de tudo para nós em inúmeras mensagens por WhastsApp e e-mails: “Oi amigo, bom dia. Tudo certo? Quero confirmar se está tudo bem”. Respondo-lhe que sim, agradeço e lhe “digo” que estaremos na recepção do hotel à hora combinada para o encontro com o guia que nos levará à primeira incursão pela cidade: Mênfis – a primeira capital de Egito no reino antigo, antes da fundação do Cairo, onde fica a estátua de Ramsés II -, depois à Pirâmide de Djoser – a mais antiga e misteriosa de todas – um grande complexo funerário, usada para o sepultamento do Faraó Djoser, no século XXVII a.C.

Almoçaremos na rua, e a nosso pedido, num restaurante não-turístico que sirva koshary, o “arroz com feijão” egípcio, encontrado em qualquer pé-sujo de uma esquina cairota. Consiste em macarrão com lentilha preta, arroz, grão de bico, legumes, cebola frita e molho de tomate. Descrito assim parece um “mexidão” de sobras, mas não. Come-se num prato fundo e só de pensar nas fotos que vi, salivo. Percebo que estou com fome, mas também que para além do estômago “cantando”, ouço um coro de chamados para orações vindo dos minaretes da cidade. O café da manhã no hotel teria sido mais decepcionante, não fosse a fome unida à vontade de comer.

A seguir: CAIRO – O primeiro dia do resto de uma viagem
[1] Praça Tahrir, local central das manifestações populares da Primavera Árabe, nome romântico para os levantes políticos que começaram na Tunísia em 2010 e espalharam-se pelo o Egito – com milhares de egípcios protestando contra a presidência de Hosni Mubarak -, Bahrein, Iêmen, Líbia, Omã, Jordânia e Síria. A versão egípcia durou mais, da queda do ditador Hosni Mubarak até a transição comandada por militares e, depois, até uma eleição civil e democrática que um novo golpe militar retomou o poder para evitar que o Estado deixasse de ser laico. A turbulência vem e vai, e embora não se dirija a estrangeiros turistas, são manifestações violentas que os assustam e afastam, sem falar dos últimos atentados terroristas.