TURQUIA – Bom dia,Istambul! A primeira manhã

Sobrevoo Sultanahmet com um olhar à deriva e avisto a cidade, que assim do alto acende o desejo de descer, de caminhar por sua parte mais entranhada de histórias. Foi ali que pela primeira vez apaixonar-me foi incontornável. Lá embaixo assisto a metrópole entrar em ação observando-a desde o terraço do nosso hotelzinho. E ela me desperta os mesmos impulsos desbravadores de sempre.

Nosso kahvalti – o desjejum turco – embora não com pressa, é breve, sem delongas descartáveis. A rua nos chama, embora o yogurt seja melhor apreciável devagar na boca. É dos melhores do mundo, saboreado com suspiros. Já o café, não tanto. É fraco, sem o poder de me despertar. Ao menos não como o muezzin o fez antes das cinco da manhã. Neste começo de primeiro dia na cidade o Sol me chama e parece ter uma claridade especial. A ansiedade torna o tempo correndo mais rápido do que no relógio. E o astro rei – que vai tão bem neste começo de manhã – parece mesmo destinar um brilho ainda maior à cidade.

Saímos e bastou-me colocar os pés na calçada para sentir os efeitos da notável atmosfera istambulesa interferindo em minha razão: muito embora tão familiar, parecia a primeira vez que eu estava ali. A despeito de a mente saber que o que vejo é conhecido, tudo me parece novo. É uma sensação desconcertante, dura apenas uns segundos e, ao fim, faz parecer que vivi mais uma ficção literária do que uma realidade turística. Logo a mente para de me pregar peças, restabelece minha percepção do presente e a reação psicológica – ainda que fugaz e breve, um dejá vu ao contrário, o jamais vu (do francês, “jamais visto”), algo assim como sentir que está vendo algo desconhecido, embora muito familiar.

Encerrados os rodopios da mente tal qual um espírito dervixes a tivesse possuído, volto ao modo “normal” assim que saímos dos domínios da estreita rua onde se esconde nosso hotelzinho. Tão logo se descortina Constantinopla, sinto o prazer de derrubar as ilusões e perceber as coisas como são. não como as imagino. Preocupo-me e ligo minhas intenções na companheira, a fim de que Istambul lhe assegure o entusiasmo que reserva a mim, algo que justifica esse meu eterno desejo de retornar.

Sinto-me bem parecendo um estreante, a despeito de que uma pequena parte da minha vida eu tenha me deliciado nesta cidade. O olhar, agora, não é mais saudoso, o primeiro momento sela-se como amigos que se abraçam num reencontro.

Já se foi a Primavera, mas ainda há flores. Os canteiros de Istambul estão, como sempre, incrivelmente bem cuidados, embora já não há mais com tulipas, minhas flores prediletas, que em abril somam 20 milhões das florescidas nos parques Emirgan e Gülhane. As liliáceas, que muitos pensam serem originais da Holanda, têm a Turquia como terra-mãe. Os canteiros e jardins da cidade en enchem-se delas de todas as cores, embora agora enfeitem-se de azaleias e outras, revelando o gosto da gente turca pelas flores, uma herança otomana de expressão artística, o que me torna ainda maior admirador da cidade e de sua gente.

Nada de correria. Uma viagem, por melhor que faça à mente, também é desgaste físico. E estamos no Verão. Precisamos nos cuidar e o fizemos. Com uma agenda bem cuidada e planejada, temos tempo bastante para conhecer além do elementar. E se até aqui nos trouxeram o avião e o táxi, deste ponto em diante nossos pés o farão na maior parte. Bondes, ônibus, barcos e taxis – aqui e ali, ocasionalmente – ao menos enquanto os pés não se cansarem. Recorreremos, vez por outra, ao auxílio eficaz do sistema de transportes públicos de Istambul, não apenas porque sejam o melhor jeito de vencermos distâncias maiores, também porque, de certa forma, são atrações turísticas adicionais, notadamente os trams e os ferries. Bem calçados com macios sapatos, vestidos com roupas leves e carregados de pouco peso, com o corpo e a mente livres de descartáveis, estamos aqui para o que der e vier. Sobretudo para andar. Andar e andar é nossa proposta nestas três noites de um lado, mais três no outro do Chifre de Ouro, em Taksim. E embora o clichê maior de Istambul – “Onde a Europa encontra o Oriente” – seja tão verdadeiro quanto redutivo, que seja o Estreito de Bósforo que corta a cidade e a situa em dois continentes, o Chifre de Ouro o divide apenas em duas partes europeias.

Sultanahmet, o bairro do Sultão

Ponto de partida de qualquer visitante, vive sob um enxame de turistas. Não tem o chique-moderno de Beyoglu, mas é um tesouro de antiguidades. Fica numa península que já foi terreno da Nova Roma de Constantino, de Bizâncio e da otomana Istambul. Do império bizantino ao otomano, a distância cronológica é grande, mas na Praça Sultanahmet, podem-se medir em metros. Frente a frente, estão Hagia Sofia e a Mesquita Azul e, no meio, o que resta do Hipódromo: os obeliscos egípcios. Ao redor, muitas outras preciosidades dispersas nas ruas ou abrigadas em museus e, para além, entre mais importantes preciosidades, estão o Palácio Topkapi, as mesquitas Süleymaniye e o Grande Bazar, então, não há melhor lugar para a cidade “acontecer” para o visitante.

O Hipódromo é lugar que já não existe, mas foi centro desportivo e cultural na era de Constantino, o imperador romano. Era imensa arena esportiva criada por Septimus Severus e ampliada no quarto século para acomodar até 100.000 espectadores. Nela havia grandes estátuas dos mesmos cavalos de bronze que agora decoram a igreja de São Marcos, em Veneza, saqueados pelos cruzados. E também os Obeliscos egípcio, altos como lhes convém, que merecem uma olhada cuidadosa, sobretudo para os hieróglifos esculpidos em baixo relevo, atestando atestam sua origem e contando parte da história do lugar. Foi Teodósio, o Grande, quem os transportou até ali no fim do século IV.

Faziam parte do Templo de Karnak, em Luxor, no Egito. Teodósio colocou-os num pedestal de mármore esculpido com cenas do imperador e sua família assistindo às corridas do antigo hipódromo, depois de trazidos por barcos particulares desde a Alexandria, através do Nilo, e por um navio a remo construído especialmente para seu transporte a Constantinopla. A Coluna da Serpente, que retrata três delas entrelaçadas, feita em bronze, foi trazida do Templo de Apolo, em Delfos, na Grécia. O resto que havia ali e não foi saqueado, virou peça do Museu Arqueológico de Istambul, ao lado esquerdo da praça, de quem está de frente para o Bósforo.

Outro monumento, mais recente, na mesma praça, mais adiante, é do ano 1900, chama-se Fonte Alemã, ou Alman Çeşmesi, e foi presente do imperador alemão Wilhelm IIà cidade, dois anos após sua visita. Feita na Alemanha, foi transportada em peças para Istambul e instalada ali, nas proximidades da Mesquita Azul.

Embora a praça seja território de um abundante patrimônio, deixaremos para depois a Yerebatan Sarayi – ou Cisterna Bizantina -, a Sultanahmet Camii – ou Mesquita Azul -, a Aya Sofia – ou Basílica de Santa Sofia -, o Museu Arqueológico, os Banhos de Roxelana, um hamam do século XVI – projeto do arquiteto Sinan, batizado com o nome  da esposa de Solimão, o Magnífico -, a Porta Sublime, o Pavilhão Alay, o Parque Gülhane e a Mesquita Zeynep Sultan.

Nosso destino agora é o Palácio Topkapi. Saímos da praça seguindo pela Soğukçeşme Sokağı – ou Rua da Fonte Fria – com suas casas de madeira, típicas da era otomana, uma pequena parte do passado de Istambul do século XIX, com fachadas de madeira otomanas, treliças e sacadas em prédios de dois andares, alguns convertidos à modernidade – como hotéis boutique, cafés, restaurantes, escritórios e livrarias -, contudo, ainda, um oásis de calma rodeado de efervescência turística, um caminho delicioso que dura pouco até chegar ao imenso pátio diante do Topkapi. Um pequeno desvio leva à Madraça Caferağa – ou Cafer Ağa – antes de chegar ao Parque Gulhane. Construída em 1559, durante o reinado do Sultão Süleyman – o Magnífico, a madraça foi um dos projetos do arquiteto Mimar Sinan, o mais importante do Império Otomano. No seu pátio, encontram-se cafés, lojas de artesanato e uma escola de artes, caligrafia, música, desenho, pintura e porcelana.Um busto de bronze sob um pedestal de pedra nos apresenta Sinan, o arquiteto.

Agora o Sol não mais espreita, mas incide e dói nos olhos. Embora aqueça, não desconforta, é gentil assim entre as copas de árvores, mesmo anunciando que em breve convidará a paradas sombreadas para café e água. Avista-se um azul maculado por poluição, todavia, mas um céu que parece reverenciar a nós, turistas. O percurso também é pontuado por gatos, figuras perpétuas e abundantes na cidade, em nosso caminho ao palácio. Passeamos relaxadamente, mas com objetivo e sentido, como observadores atentos, pois como disse Cecília Meireles em suas Crônicas de Viagem – Viajar é ir mirando o caminho, vivendo-o em toda a sua extensão e, se possível, em toda a sua profundidade, também. Pisamos no chão de ruas saturadas por 16 séculos de história, de uma cidade que serviu de capital a quatro impérios – o romano, o bizantino, latino e o otomano, este último, entre 1453 e 1922 – com histórias em cada esquina, desde um capitel romano a uma igreja bizantina, de um palácio otomano a um museu com inesperado conteúdo, de uma fonte a uma mesquita.

Chegamos à entrada do primeiro pátio do Palácio Topkapi, um grande largo na entrada do palácio, defronte à Porta Imperial – ou Porta Sublime, ou, ainda, Bab-I Hümayün – onde se expunham as cabeças dos inimigos sumariamente decapitados. O que aconteceu na sequência precisa de um capítulo exclusivo, então, volto para contar (tão certo quanto retornarei a Istambul).

Saindo da mesquita, voltamos à praça, pegamos o Tram (VLT) na estação Sultanahmet e descemos na estação Gulhane. Dali, caminhamos pela rua Alemdar Cadesi[1] em direção ao Palácio Topkapi, passando diante da Porta Sublime, ou Bab al-Ali, um grande portal ornamental com um telhado projetando-se além das empenas da construção, em estilo rococó, que antigamente levava diretamente ao escritório do Grão Vizir, onde a partir do meio do século XVII em diante, a maioria dos negócios do império se realizavam e o sultão recebia embaixadores, tanto para credenciais quanto para reuniões protocolares e recepções no palácio.

Continuamos a caminhada pela rua Alemdar Cadesi em direção ao Palácio Topkapi e passamos antes defronte ao Alay Köşkü, o Quiosque da Procissão, em frente à Porta Sublime, construído em ângulo com o muro do palácio, um grande gazebo poligonal, de cujas janelas de treliça o sultão observava as idas e vindas no palácio e da rua e usado pelos sultões para receberem a saudação dos janízaros[2] que passavam por ali em desfile. O quiosque é de 1819, quando foi reconstruído pelo sultão Mahmut II.

Caminhamos em direção à Fonte do Sultão Ahmet III, na grande praça defronte ao Portão Imperial do Palácio Topkapi,ou Bâb-ı Humayun[3], construído por Mehmed II, com uma concepção artística otomana carregada de realeza e simbolismos, onde em seus dois nichos laterais eram expostas as cabeças de inimigos decapitados.

A seguir: O Palácio Topkapi


[1]  Cadesi é “rua”, em turco. Então, rua Cadesi é redundância.

[2] Os janízeros eram uma tropa de elite do exército otomano, uma força criada pelo sultão Murade I, constituída de crianças cristãs capturadas em batalha, levadas como escravas para Constantinopla, a fim de serem convertidas ao Islã e formadas como militares.

[3] A propósito do nome Humayun, ele é familiar, não me soa tão estranho, mesmo estando na Turquia, embora me remeta à Índia, para onde uma viagem para terminada havia seis meses mantinha a memória fresca: do clã de Babur, bisneto de Tamerlão, quem fundou Samarkanda, no Uzbequistão, e estabeleceu o Império Mogol. Humayun, pai de Akbar, o Grande, e melhor imperador da Índia. Quando se sabe um pouco da história e geografia, o portão toma um valor ainda maior, para além de sua beleza. Construído pelo Sultão Mehmed II, o Conquistador, uma inscrição em árabe diz o seguinte: “Com a graça e o assentimento de Deus, com o objetivo de estabelecer a paz e a tranquilidade”, além de versículos do Alcorão, inscrição tão importante quanto a beleza do trabalho artístico da caligrafia, quanto o significado dos versos. Há também tugras,um selo do sultão, como uma assinatura usada na autenticação de documentos oficiais e cunho de moedas, assim como nos palácios e monumentos.