NAMÍBIA – Do deserto à costa, pelo deserto

                     Eram sete e meia da manhã quando deixamos o lodge e o grande mar de areia, o Deserto Namib. O sol já começava quando uma pequena manada de gnus que vive nas proximidades atravessou a estradinha de cascalho da propriedade. Iam ao poço para beber água. François respeita o momento: pára o jipe, desliga o motor. Fica uns segundos em silêncio, vira-se para nós e nos saúda entusiasmado.

– Hakuna Matata. Bom dia, vocês são bem-vindos!

Sentado no banco dianteiro esquerdo, percebendo que todos pegam suas câmeras, Haroldo nos orienta:

                     – A luz é pouca. Ponham mais ISO e velocidade.

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                     O Blue wildebeest parece um grande antílope com chifres de gado. Ou com um bisão de ombros desproporcionais. É um belo animal de cara preta, chifres curvos e pontudos, um perigo para predadores. E a barba, pendendo do queixo, torna aquele animal, além de personalíssimo, o ícone das grandes migrações africanas. Fotografo como se fossem os últimos. Afinal, na natureza, todo momento é fugaz, por mais que se repita amanhã, todavia jamais será igual.

– Hoje iremos para a costa pelo deserto, passando por Solitaire, um vilarejo com a “melhor torta de maçã da Namíbia”. Mais adiante, cruzaremos o Trópico de Capricórnio e, uns quilômetros depois, veremos as raras árvores kokerboom – ou Aloe vera. Em Walvis Bay chegaremos no começo da tarde e comeremos num restaurante sobre um píer na baía.

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Solitaire ____________________________

            Uma hora depois, já na C14, estrada de asfalto, um belíssimo órix parece posar para nós. Disparamos fotos, com o carro parado, para registrar aquele encontro venturoso, uma despedida especial. Vinte minutos mais e chegamos a Solitaire, um oásis no deserto, única paragem de combustível entre Sesriem e Swakopmund.

Este é o lugar onde se compra a “melhor torta de maçã da Namíbia”, na Solitaire bakery, diz Haroldo assim que descemos do carro.

Teremos tempo para comer?

Não. Vou comprar para comermos mais adiante.

                A explicação ficara por ali, anulando minha vaga vontade de comer escondido a torta de maçã, que por certo seria acompanhada de um espresso(*).

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                Uma curiosa, esquecida, desértica e pitoresca vila na junção das estradas C14 e C19. Sob o mesmo céu sem nuvens e na terra ressequida. Mas um lugar surpreendente, de parada obrigatória para abastecimento de combustível, até mesmo para nosso jipe com dois tanques. Postos de gasolina são extremamente raros. O mais próximo dali fica em Maltahöhe, a166 km de distância, ou em Walvis Bay, a 232 ou, em sentido contrário, de onde viemos, em Sesriem, 83 km. Geograficamente, a leste ficam as montanhas, a oeste as dunas litorâneas, ao redor, deserto. Um posto de combustível, banheiros, uma lanchonete com café espresso, um lodge, carros antigos enferrujados e decrépitos, dos anos 50 e 60, largados propositalmente na entrada da vila, formam um cenário fotogênico. O lugar tem banheiros limpos – pelos quais se paga um dólar namibiano para o uso – a McGregor’s Bakery, em honra do falecido fundador, Percy McGregor, com variedade de bolos, tortas e café, além da strudel de maçã, dita a melhor da Namíbia e, finalmente, um armazém geral onde se pode abastecer o estoque de água, refrigerantes e cerveja e outros itens como recordações de viagens, de ímãs de geladeira a camisetas.

           O clima é extremo. Um pequeno quadro negro registra o que marcou o pluviômetro local. Em fevereiro, 0,5 mm! Em 2017 inteiro, 116 mm, 50 a menos do que chove só mm mês e dezembro no Rio de Janeiro. Os dias de verão são secos e áridos, com temperaturas para além dos 40C e noites de inverno que podem registrar 0C.

O Trópico de Capricórnio _________________________

            É uma linha imaginária, todos sabem. E assim, de mentirinha, atravessa continentes, países e oceanos. Na Namíbia, uma placa indica o lugar por onde passa. O Trópico de Capricórnio, assim chamado porque a constelação de Capricórnio ergue-se acima dele no solstício de verão, é um dos cinco principais círculos de latitude. Marcado por uma placa desgastada, na estrada C14, entre Solitaire e Walvis Bay, todos os turistas que por ali passam, fotografam-se sob ela. Como bons turistas, fizemos o mesmo, nos registramos na foto mais manjada de toda a Namíbia.

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A melhor torta de maçã da Namíbia _____________________

             Virou atração turística e você não sairá desapontado ao prová-la. Pode não ser a melhor do mundo, mas da Namíbia, merece a colocação. Comemos a nossa num Picnic Spot and Viewpoint(**) da estrada C14, no ponto em que ela começa a descer para a costa. Paramos ali para esticar as pernas e ver as curiosas quiver trees, ou kokerboom (Aloe dichotoma), árvore nativa do sudoeste da África, vulnerável à extinção, motivo porque são protegidas essas parentes da nossa conhecida babosa. Atingem até 9 metros de altura e podem viver cerca de 400 anos. As folhas são suculentas e têm a mesma gosma da babosa, ou aloe vera, ingrediente usado no Brasil na preparação de cosméticos.

As solitárias kokerboom __________________________________

           A característica mais evidente das quiver trees são o tronco grosso, sua casca fissurada por rachaduras, que se afila até o ponto onde ramifica e se espalha em galhos para formar uma coroa arredondada de ramos de folhas. Suculentas e pontudas, daí seu nome quiver (lança ou flecha). Encimados por uma flor amarelada, seca àquela época, ainda proporcionando um contraste vívido contra céu azul claro, no verão fornecem néctar aos insetos, pássaros e babuínos. Ela prefere ambiente quentes e pedregosos, como o daquele terreno em que estávamos. São árvores que ocorrem isoladamente, embora haja uma pequena floresta delas, em Keetmanshoop, parque nomeado monumento nacional namibiano, além de atração turística.

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              Tiramos fotos das árvores solitárias e do belo panorama, o espetacular vale no ventre do deserto. Uma estrada de terra, linha reta que morre no horizonte, por onde carros passavam levantando poeira de partículas tão secas e leves que turvavam o céu. Comemos a deliciosa torta de maçã antes de partirmos para o destino final, Walvis Bay, a uma hora e vinte dali.

Notas do autor

(*) Espresso vem do italiano, tem relação com o verbo latino expressus, particípio passado de exprĭmĕre, que significa entre outras coisas “apertar com força, comprimir, espremer, tirar de, arrancar”. Em português, esse verbo latino originou exprimir, espremer e, por extensão de sua forma nominal, expressar. Não há registro de espresso nos dicionários de língua portuguesa. Já expresso significa rápido, mas um café “espresso” significa o café “espremido”, feito sob pressão. Consequentemente, espresso deve ser aceito, segundo especialistas, porque nosso vocabulário aceita palavras estrangeiras. Por outro lado, não errado dizer expresso, porque de fato o café espresso (ou espremido) na máquina fica pronto em poucos segundos, rápido, portanto, para ser expresso.

 (**) geo coordenadas -23.310530, 15.511018

Orix blog

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Continuamos juntos? Próximo capítulo: 

Walvis Bay – Pelicanos, flamingos, focas e chacais

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NAMÍBIA – A caminho do mar, a última noite no deserto.

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Nosso jipe nas areias do Atlântico, no Pelican Point em Walvis Bay: focas e pelicanos

Dias intensos, noites tranquilas ___________________________________________________

                  Lembro bem daquela noite. Eu só queria viver o momento. No mais completo e aprazível silêncio, na solidão do meu chalé, deitado na cama e usufruindo até onde eu pudesse os minutos que antecediam o adormecimento. A quietude era revigorante, contribuía a favor da sonolência, mas eu lutava pelo privilégio de ficar acordado no árido solo africano. O esforço era grande, o maior das três primeiras noites da fase inicial da viagem. Ainda eram vivas, dançando na mente, as imagens de cada momento. Voltavam com tal esmero, precisão e acuidade que pareciam as sensações que vivi. Da descida do avião – na chegada à Namíbia, no aeroporto de Windhoek – ao Pôr do Sol na Duna #1, poucas horas antes.

                 A viagem até ali estava perfeita e me contemplara com boa contagem de mamíferos, aves e paisagens de outro mundo. Meu corpo, em escombros, obedecia à superioridade da mente. Conspirava contra o físico um cérebro fervilhante, inconformado com a precocidade do sono. Viro a cabeça, pego o bloco de anotações e  escrevo palavras que temo perder, como um ensaio para esses parágrafos. Mesmo para um turista com afeição pela escrita, sempre pode ocorrer o imprevisto do esquecimento. Contudo, eu sabia: o cansaço e sonolência eram parte inescapável do charme daquela viagem, ainda que às vezes me parecesse chegar cedo demais, junto ao poente.

O tempo voa… parece que foi ontem, mas já estamos no terceiro dia de viagem… Falo sozinho no delicioso chalé do lodge enquanto olho para o céu galáctico pulsando em cada estrela.

             Temendo ser mal interpretado por algum companheiro do grupo cruzando meu chalé a caminho do seu, continuo no tema em pensamento. “O tempo passa mais rápido quando nos damos conta disso”, concluo em sussurros mentais.

         Neil Peart me vem à cabeça. O reservado, tímido e introspectivo compositor e baterista do Rush, lendário grupo de rock canadense, dublê de escritor de relatos de viagens e viajante dos melhores, em seu primeiro livro – “O Ciclista Mascarado” – descreve uma viagem de bicicleta pela África. Na introdução, diz que “se viaja à África Oriental pelos animais e para a Ocidental pelas pessoas.” Conheço ambos os lados do continente e não tenho porque discordar. Mas se conhecesse a Namíbia, imagino que Peart não erraria inserindo o país numa nova classificação, acrescendo à sua lista uma terceira categoria: “Viaja-se à Namíbia pelos animais, pelas paisagens e pelas pessoas.”

          Os animais. Vendo-os assim, selvagens, em liberdade e em sua saga pela vida, nos sentimos protagonistas de um documentário da National Geographic. Contudo, poucos pensam na Namíbia para safáris fotográficos, porque ali colado em suas linhas fronteiriças imaginárias fica a África do Sul, a super-potência do ramo. Mas se ambos são lugares igualmente perfeitos para realizar esses sonhos, a Namíbia é menos turística, ainda não perdeu autenticidade em nenhum metro de seus parques. Naquele terceiro dia eu já saboreava o prazer de ter visto bom número de mamíferos. E ainda havia os próximos dias, todos dedicados aos animais, às enormes possibilidade de ver leões, zebras, girafas, elefantes, rinocerontes pretos, avestruzes e hienas que habitam o Parque Nacional de Etosha. O parque alcançaríamos na terceira etapa da viagem, depois das focas e dos chacais, dos flamingos e pelicanos daquela tarde em Walvis Bay.

            Mas se é natural o imaginário coletivo da humanidade primeiro lembrar dos animais quando pensam na África, também é que, depois que qualquer indivíduo que goste de animais selvagens visitar o continente, reconhecer que apenas por eles não estará a faz justiça à fantástica e enorme massa de terra. E provavelmente também verá grudar em si, uma vez tocada a terra africana. Seja pela diversidade e pela beleza das paisagens, seja pelas possibilidades de experiências ou pelo patrimônio cultural e arquitetônico. Além de comida boa e de uma gente ainda melhor. Depois de experimentados cada um destes, a África passará a agir como uma imã, atraindo e trazendo os pensamentos de volta ao continente. Como fez com Peart, sujeito com quem compartilho alguns gostos comuns – motocicletas, aventuras, viagens e escrever – e que depois de se inscrever numa excursão de bicicleta – cujo título era o clichezíssimo “Camarões: terra de contrastes” – ao fim da estoica jornada, jurava jamais fazer uma “coisa daquelas” outra vez. Um ano depois, Peart voltava a pedalar na África, desta vez por Togo, Gana e Costa do Marfim.

             Mesmo com  pensamentos tão estimulantes, o sono me derrubou e a noite não se estendeu como eu queria. Apago o abajur do criado mudo, me aconchego com o travesseiro, fecho os olhos e respiro o ar fresco da última noite no deserto. Durmo escutando no celular a trilha sonora selecionada para aquela noite: Bill Evans. Tocavam Lucky to be me, My foolish heart, entre outras. Mal chego à terceira: durmo embalado por Peace piece, a lindíssima e sonífera canção(*). O sono me convoca, definitivamente, sem me dar tempo de desligar o telefone.

            Não acordo de madrugada. Sequer para o costumeiro xixi. Vou até as seis da manhã, estourando a bexiga, mas restaurado. E o celular, descarregado. Tocou Bill Evans, coitado, até morrer. Faço tudo o que é rotineiro depois do despertar e saio do chalé. De mala e cuia. Sinto um arrepio que vai da pele à carne, um frio do deserto que interdita involuntariamente meu bom-humor matinal. Despenca, como a temperatura, na mesma medida em que sobe a fome pelo desjejum. Adeus, Sossusvlei.

Orix blog(*) Clique aqui https://bit.ly/1XIR7aZ para escutar Bill Evans – Peace Piece – enquanto lê. Se voltar ao começo da leitura, ainda melhor. Boa viagem na música e pela Namíbia!

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Continuamos juntos? Próximos capítulos: 

Capítulo 6 – De novo a estrada. Do deserto à costa, pelo deserto

Capítulo 7 – Walvis Bay. Onde o deserto encontra o Atlântico.

Capítulo 8 – Okaukulejo. Parque Nacional Etosha

Capítulo 9 – Onkojima e o encontro com chitas e leopardos

 

 

NAMÍBIA – O Cânion de Sesriem e o Pôr do Sol na Duna #1

Adeus, deserto, sublime deserto.

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Na imensidão de Sossusvlei, não há um só grão de areia fútil

                       As mudanças do tempo são poucas, mesmo passados milhões de anos. Exceto pela estrada, nada me sugeria alteração; nenhuma pedra, resto de toco, toco sozinho ou punhado de areia. Tirando nós e o jipe, tudo pertencia ao deserto, àquele pedaço do Namib-Naukluft, onde faríamos nossa despedida brindando e fotografando o pôr-do-sol. Em breve, tudo seria inundado pela luz dramática e quente do crepúsculo e por um silêncio que só há no deserto. A partir de então, a noite, e aquele céu reluzente do deserto, comandariam o espetáculo.

                      Uma longa reta de asfalto negro corta a areia, o rio Tsauchab e os resquícios de vida verde grudados às suas margens. A estrada passa defronte à Duna #1 e assim que passamos por ela, saímos para a areia e estacionamos o carro num refúgio sob árvores secas. Desço do carro e olho para a duna, esquadrinho seus detalhes e entorno, exerço minha paixão pelas paisagens e a natureza, bons motivos para disparos incontroláveis da câmera.

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A estrada, única mudança em milhões de anos

O Cânion de Sesriem

                        Antes da Duna 1, estivemos no cânion. Um quilômetro de comprimento, 30 metros de profundidade, 15 milhões anos. Um desfiladeiro natural esculpido pelo rio  em solo de rocha sedimentar de areia e cascalho. Uma hora bastou para o explorarmos bem, de ponta a ponta. Um pouco mais seria preciso se tivéssemos olhos de geólogo, pois é um campo curioso mesmo para os não espertos no assunto. Não chega a ser como as dunas – primeiras atrações de Sossusvlei – mas fica tão perto de seus caminhos que deixar de conhecê-lo é perder um fenômeno geológico diferente daquela paisagem de areia e dunas. Muitos o fazem, por desconhecimento ou porque o cânion fica escondido, quase invisível. Só o vemos chegando a pé e caminhando até sua borda. Ainda assim é preciso olhar para baixo 30 metros, com vertigem ou sem, para reconhecer tratar-se de um desfiladeiro. Caso resolva descer – não resistindo à curiosidade – com ou sem babuínos espiando o movimento do topo do cânion – a contrapartida será caminhar por um território geologicamente atraente, que apesar de pouco acessível, de sua aspereza e aridez, tem vida.

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Cânion de Sesriem

                        Para nós, o cânion de Sesriem fazia parte do programa. A descida foi fácil, bem mais do que eu avaliava observando-o de cima. Vai-se por um caminho de pouca inclinação e com uma escada na rocha ao final, no trecho mais íngreme. Já em seus domínios, uma história visual rápida da geologia da área se revelou. As paredes curvas mostram camadas sedimentares de 15 milhões de anos, quando o deserto Namib era menos seco. O piso é plano e a caminhada tranquila, não há com o que se preocupar. Os mais aventureiros, como eu, praticantes de escalada em rocha na juventude, até os 45 anos, não resistirão a subir em algumas pedras.

                    Há trechos em que ele serpenteia e se estreita, outros bem mais largos, até com árvores dentro. Nas paredes, buracos naturais são moradas de pombos, arlequins, corvos e estorninhos. A vida selvagem adaptou-se para viver naquele lugar inóspito, todavia bem menos que nas dunas, porque, afinal, ainda restam poças de água. Há pequenos lagartos, o besouro preto tok tokkie (sp de Onymacris), corujas, babuínos da savana (ou babuínos chacma, Papio cynocaphalus ursinus) e a pequena toupeira do deserto, (Eremitalpa granti), espécie de mamífero confinado entre as dunas e o norte, na Baía Walvis, um animalzinho próximo da extinção. Vimos um. Estava morto havia pouco. Um bichinho tão raro, tão frágil de dar dó.

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Cânion de Sesriem

A Duna #1

                        Um pano de fundo, um coadjuvante de grande efeito cênico que, desta vez não estávamos para subir, como a 45 e a Big Daddy. A Duna 1 não tem a sinuosidade sensual e as curvas de suas irmãs, mas tem lá sua importância no cenário. Para o terreno que a cerca – variações de areia, cascalho, seixos do leito seco do rio, alguma vegetação e boas possibilidades de encontrar um órix – tínhamos uns 40 minutos reservados, até voltarmos para o refúgio e o jipe, onde François arrumava a mesa com snacks africanos e vinho. “Por que será que desertos me encantam? O que há de tão cativante nesses acidentes geográficos, dos mais desoladores do planeta, e com tão pouca vida?”, penso.

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A Duna #1

O Pôr do sol

                        Chegamos ao ponto onde a estrada negra de asfalto corta o rio Tsauchab, próximo à Duna 1. O sol poente já se anuncia nas sombras da duna, mas ainda cintila forte sobre nossas cabeças. François estaciona o jipe num refúgio tranquilo ao lado do leito seco do rio. Resolvo explorar a área. Caminho primeiro sobre o leito de areia e seixos rolados de um rio resignado, um lugar morto pela mesma natureza, mas que sabe um dia ela mesma voltará a fazê-lo vivo, aguardando a efêmera água voltar a correr dentro dele. A paisagem é dramática como sempre no Sossusvlei, mas ali expõe vestígios de vida. É o que dizem as árvores que o rodeiam e não se atrevem a avançar um metro além do rio. Sabem que suas profundas raízes não encontrarão a mínima umidade que as mantém vivas com ralas folhas. Seguem, como tudo mais, o que dita a regra de sobrevivência no deserto, registram a permanente guerra entre a vida e a morte.

                       Ando com passos incertos, bamboleando as pernas na areia instável. Dói-me ver rios mortos. Ao menos posso dizer que cruzei mais um rio em África. E que não havia risco de crocodilos e hipopótamos, apenas um remanso, de pura areia e pedras roladas por torrentes passadas. Caminho, penso, observo e fotografo. Resolvo subir pelas pequenas dunas da margem e ouço Haroldo chamar o grupo para uma caminhada até a base da Duna 1. O rio fica lá, impávido. Sigo o grupo que já avança metros adiante de mim.

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O leito do rio Tsauchab 

– Vamos! Aqui é possível encontrar órix. Temos mais uma hora até o pôr do sol.

                No caminho, seixos rolados pretos denunciam: ali já passou um rio. A luminosidade, a despeito da tarde avançada, era de sol a pino. Mas era luz de qualidade, para fotografar e admirar enquanto batia na duna. A amplitude visual era tremenda, já a paisagem, nenhuma novidade. E de órix, só vimos marcas de sua passagem por ali: pegadas e fezes. Em verdade, eu nem esperava algo novo, especial e marcante para além do que já havíamos visto, pois a primeira parte da viagem, que se encerraria ali, já me completara no que eu esperava.

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Seixos rolados sobre areia no leito seco do rio

                       De volta ao jipe, François nos aguardava com uma pequena mesa arrumada. Snacks, vinho e suco para os garotos. Havia tempo para descanso. Me sento na areia, recosto numa árvore e sinto o prazer de contato pleno com a natureza. Areia, pedaços de madeira, galhos secos, folhas e seixos ao meu redor. Novamente me sinto parte, integrado, quase pertencendo ao lugar. Enfio os dedos na areia e fico ali, desligado de tudo, a olhar o deserto.

                               Viro o rosto para o lado, enfio a mão na areia e vejo um ponto ideal para registrar o pôr-do-sol. Ficava por trás de uma pequena duna, e de uma árvore seca sobre ela, o sol já se preparava. Os outros não vão longe, ficam por ali olhando em direção à Duna 1, procurando seus cenários para fotos. Olho minha câmera sobre a areia. Pego-a e a coloco no colo. Observo as marcas dos tempos cascudos que passou comigo. Penso que merecia mais cuidados meus, tenho pena de vê-la assim tão arranhada e gasta. Sopro e passo a mão. Volto à contemplação. Eu não media o tempo, mas queria que ele parasse por um tempo para eu melhos absorver o fascínio daquele lugar.

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Prontos para o brinde!

Como vai, Arnaldo? Cansado?

Nem tanto. Estou aproveitando a sombrinha e sentindo a natureza. Um pouco velho, talvez, para um dia tão intenso…

                     François estende a mão e me ajuda a levantar. Daquele modo, com sorriso, em silêncio, ninguém recusaria. Gentileza, generosidade e simpatia de sempre. Ainda que interrompendo meu momento antes de eu desejar que terminasse, paro a contemplação e reflexão e me ponho de pé.

Gente, vamos brindar!, convoca Haroldo. Ao nosso último dia aqui neste deserto, encerrando a primeira etapa da viagem. O sol já vai se pôr. Amanhã seguiremos para Walvis Bay, vamos viver a agradável companhia do ar refrescante da área costal da Namíbia.

                     Pouco a pouco vamos nos reunindo defronte à mesa e François enche nossas taças. Depois as seguramos acima de nossas cabeças, em direção ao céu e contra o sol. Brindamos como sempre. François diz:

Cheers! Saúde! Hakuna Matata! To you and to Namibia,“Land of the Brave!”

                     Talvez o sentido poético que eu via naquele pôr do sol estivesse mais em mim do que na paisagem, mas o tempo que passei ali a admirá-lo e fotografá-lo foi um dos mais marcantes de toda a viagem.

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                     Depois, jantar na pousada regado a vinho tinto e cama. Um belo jeito de encerrar nossa exploração do magnífico parque Namib Naukluft, de Sossusvlei e do deserto Namib.

Orix blog

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Continuamos juntos? Próximo capítulo:

A última noite no deserto

NAMÍBIA – Piquenique no deserto sob acácias espinhosas

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                 A beleza é, por natureza, subjetiva. Gosto é indiscutível, alguns dizem; “A graça está nos olhos de quem vê”, já outros. Eu só sabia de mim, impregnado até as entranhas pela beleza singular de um charco morto havia 600 anos. Tínhamos visto tudo em Deadvlei e a viagem ao passado terminava na volta ao jipe, deixando para trás centenas de anos e um lugar sem vida. Não subitamente, mas quando já havíamos visto o bastante. E  o que sobrava à vista para nosso deleite, faltava às palavras para definir. Deadvlei, quando cheguei, era um lugar com o qual nunca sonhara. Na despedida, aquele que sempre me lembrarei.

                Outros turistas chegam e cruzam comigo no caminho por onde viemos. Eram poucos, afinal, o turismo engatinha na Namíbia. Eu cumprimentava a cada um, desejando boa experiência, como se os agradecesse pela paciência da espera.

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                Piquenique no deserto  


                O sol já ia bem quando chegamos ao estacionamento dos jipes. Havia muitos ao lado do nosso, primeiro a chegar naquela manhã. Passava das dez de um dia que para nós começara às cinco. Entramos e tomamos nossos lugares e François acelerou, conduzindo bravamente o 4×4, navegando pela areia até o ponto de estacionar sob frondosas acácias. Não chegou a ser uma aventura épica, apenas um caminho cascudo para um lugar bonito.

                 Sombreado e diferente do charco seco e morto que havia pouco acabáramos de deixar, o lugar onde faríamos nosso piquenique não era sem vida, havia folhas e pássaros nas árvores, mas rodeado da mesma sucessão de dunas pequenas e enormes, de leitos de rios secos e lagos idem, troncos de árvores caídas e restos de galhos ressequidos, da mesma beleza inconfundível daquele museu natural vivo ao ar livre.

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                Sem reagirmos às nossas veias exploratórias, nos entregamos novamente ao desconhecido, guiados por Haroldo, o que é fácil  quando um grupo de gente gosta das mesmas coisas e sabe que está ali pra aquilo.

Em vinte minutos podem voltar, diz François. É o tempo que preciso para o preparo de nossa refeição no deserto e afino meu violão. Enquanto estiverem comendo tocarei e cantarei uma canção em damara, a língua dos cliques.

          Haroldo nos leva para a caminhada e explica aspectos da língua damara:

A Namíbia, apesar da baixa taxa populacional, tem diversificada etnia. Cerca de 70% da população pertence aos povos banto – como os ovambo e herero – mas há os khoisan e outras minorias como os damara, os nama, os san, os caucasianos africânderes, alemães e indivíduos de sangue misto, conhecidos como “de cor”. Os nama e os san falam línguas semelhantes, parte do grupo caracterizado por três diferentes formas de “cliques” consonantais e vogais. Os sons são produzidos por estalos da língua, nos dentes de cima, nos de baixo e nos do lado. Os “cliques” são usados em outros idiomas tribais, sendo mais conhecido o dos bosquímanos(*), de Botswana, aquele povo do filme “Os deuses devem estar loucos”(**).

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              Incrível caminhar naquele lugar amplo, com horizonte imenso, lotado apenas por nós. Nada ou ninguém para esbarrar. O ar estava mais seco, me incomodava o nariz ressecado, mas me sentia bem ali, onde não se precisa esperar a chuva passar, porque simplesmente não chove, uma das razões porque goste tanto de desertos.

              A região, geograficamente, era um estímulo para minha memória, trazia de lá as lembranças do que me prendia nas aulas de geografia em tempos de ginásio. Estávamos no Kalahari, deserto da África Austral que abrange partes de Angola, do Botswana, da Namíbia e da África do Sul. Ali, na área do Namib Desert – quase idílico, com dunas de areia iguais aos do Sahara e vastidão a perder de vista e da imaginação. Na língua khoisan, seu nome significa “lugar vasto e desolado”. Vasto é, perfeitamente. Desolado nem tanto, porque embora dominem a areia e as dunas – espetaculares na forma e no tamanho – há  encostas e planícies, lagos intermitentes, rios e vales em constante transformação pela ação do vento. E plantas e animais, vários deles. Dizen ter mais de 55 milhões de anos, o que faz dele o deserto mais antigo do mundo. Era neste lugar que eu pisava e assim me sentia, desprezível em minha insignificância, enorme no encantamento. O estado se justificava: eu estava absorvido pelo deserto mais encantador que já conhecera.

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                     Eu me sentia tão membro do deserto e identificado com a Namíbia quanto não seria natural esperar numa viagem que estava longe da metade. Aquele era um sinal venturoso, pois não ter saudade da minha cama ou pensar em casa e na vida me fazia bem. De certa forma, um conflito que viajantes experimentam, quase inerente às viagens. Eu mesmo, inúmeras vezes, sinto que “metade de mim é partida, a outra metade saudade”. (Oswaldo Montenegro).

Lekker dag!, Bom dia, diz François em africâner ao nos receber de volta ao nosso lugar à sombra. O dia recomeça agora, com esta refeição que preparei para vocês enquanto desbravam nosso país, Land of the Brave!(***), concluiu ele.

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            Sobre uma grande mesa de camping para seis pessoas, arrumados caprichosamente, havia pratos, talheres, copos e comida. No fogão de uma boca, montado sobre uma bancada de armar, uma panela com ovos cozidos e outra com bacon frito. Pão de forma, yogurte, queijo, presunto, chá, café e salada de frutas. Até geléia. Uma lixeira, uma pia com água e cadeiras de lona completavam o ambiente montado por François. Faltava pouco para eu morrer de fome e nessas horas ela nunca me deixa com cerimônias. Então, na boa, fui o primeiro a me entregar sem dó ao que havia e o último a largar os talheres.

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Vou cantar para vocês uma das minhas canções favoritas na língua damara, disse François com seu reluzente violão negro piano e marrom.

            Terminada a refeição, bêbado de café, encantado com o violão e a voz afinadíssimos, pela canção que eu não entendia a letra, mas sabia ser romântica e me fez lembrar histórias de amor, de desamores e decepções. Mas passarinhos, dezenas deles, tentando entrar na “pia” para banharem-se, me trazem de volta ao que é bom. Que criaturinhas espetaculares aquelas! Eu olhava pra eles com certa inveja de uma vida tão simples, pensando na proporção descomunal e tão descompassada entre nossos mundos. Foi um momento precioso e delicado, desses que só a magia das viagens e caras cinco estrelas como François podem nos proporcionar.

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                  Desmontada a mesa, guardada a bagagem no jipe, já era de tarde quando tomamos o rumo do Cânion Sesriem, criado pela erosão do rio Tsauchab. E, depois, para um lugar em que o rio Tsauchaub atravessa a estrada de asfalto – na altura no km 22 – onde a grande Duna 1 nos esperava para uma rápida exploração e uma deliciosa seção de fotos do belíssimo crepúsculo. Ao sabor de vinho rosé.

Orix blog


(*) Os Bosquímanos, palavra que deriva do inglês bushman, ou “homem do mato”, é um povo ameaçado de extinção. Ao menos cultural. Para os primeiros antropólogos que os estudaram, foram considerados fósseis vivos, elo perdido na evolução da humanidade entre hominídeos e humanos, parecidos fisicamente com pigmeus, tanto na estatura quanto na cor da pele.

(**) Os deuses devem estar loucos Uma garrafa de Coca-Cola jogada de um avião faz os nativos acreditarem que é um presente dos deuses, o que ocasiona uma série de confusões e brigas. Então eles decidem devolvê-la aos deuses, escolhendo um dos nativos para a tarefa.

(***) Land of the Brave! “Namibia, Land of the Brave” é o hino nacional do país, adotado oficialmente em 1991, um ano após sua independência.


Continuamos juntos? Próximo capítulo:

O Cânion Sesriem e o Crepúsculo na Duna 1

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NAMÍBIA – Deadvlei, o charco morto

A luz macia do amanhecer e a beleza morta no deserto


                                        O alarme toca antes das cinco da manhã e me levanto surpreso com a disposição. Pouco depois, um funcionário do lodge reforça o despertar batendo à porta. Agradeço e respondo ao seu sonoro Good morning já pensando no café-da-manhã, atendendo à minha faminta circunstância matinal. Caminho, ainda sob o céu escuro, pela longa passarela de madeira em direção à outra extremidade, onde fica o salão de refeições. O desjejum nos esperava meia hora depois das cinco.

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Deadvlei, o charco morto, ainda sem turistas

                          Chego pontualmente e já encontro todos por lá. Aparentemente, com igual disposição, ainda que não houvesse sol, senão estrelas no céu. A animação correspondia à minha, mas não à lógica da hora. Alguns good mornings e bons dias depois, um abraço nos garotos, um aperto de mãos em François, começo a pensar na sorte de integrar aquele grupo. Éramos desconhecidos até dois dias antes, mas bastaram uns sorrisos sincronizados, meia dúzia de atitudes e outra de palavras para horas depois termos boa afinidade e ótima conexão. “Uma sorte!”, penso eu. Um círculo de privilégios, concluo. Afinal, nem sempre é de me esperar que viagens em grupo funcionem com tal perfeição. Também era bom reconhecer a convicção coletiva: “escolhemos a viagem certa”, todos diziam à sua maneira. Era confortável perceber aquele prazer coletivo que impulsionava o meu. Vivíamos mais tempo dentro do jipe do que soltos em nossos lodges. Eram, ainda assim, boas as jornadas. Mal começavam de manhã, já empolgavam. Apesar dos “sacrifícios” – acordar cedo todos os dias, de madrugada em alguns e enfrentar longas jornadas de carro. Cedo já os víamos saciados como inesperadas, boas recompensas. O melhor da viagem, contudo, eu não sabia: os amigos que faria.

                               Se viagens são histórias para contar, penso no privilégio dos garotos Pedro e Gabriel. Que sonhos de viagens teriam? Pergunto a eles. “O que pensam de estarem na África em vez de na “Disney”?  “Para a Disney todo mundo vai, quero ver é virem à África!”. A resposta bastou-me. Sair da zona de conforto da diversão garantida para um lugar como aquele, incomuns para a maioria dos jovens daquela idade, era um risco que bem devem ter calculado seus pais. Penso no que seriam suas boas possibilidades de relatos, na tal soma de aprendizados, experiências e marcas que levariam no retorno à casa. Avanço no tempo e consigo “vê-los” contando aos amigos suas histórias. Depois, volto muitos anos a uma realidade oposta a deles: quando eu tinha sua idade e os tempos eram outros, quando para mim, viajar era possível apenas na imaginação. Eu sabia bem fazê-las, com tal convicção que pareciam reais. Demorei para se tornarem possíveis. Trinta e tantos anos. Mas valeu (ainda que a primeira tenha sido um acampamento), pois foram boas as ambições e as conquistas. Tanto que ainda hoje espero nunca me aposentar dessa vida.

                           Entrego-me à refeição com apetite maior que a possibilidade de me saciar com o que havia. Espartana, tinha o básico, o que era possível àquela hora, preparada gentilmente por alguém da cozinha. Havia pão, manteiga, ovos feitos à minuta e café. Peço um frito. Como com apetite e tomo duas xícaras de café como se fossem as últimas da vida.


Deadvlei ao alvorecer

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Do antigo charco, sobraram troncos e galhos quase petrificados

                           Dentro do jipe, enquanto aguardávamos François abastecer o bagageiro com as coisas do dia, aproveito para ler o Safari journal, caprichosamente impresso, encadernado, personalizado com o nome de cada passageiro, distribuído pela operadora Ultimate Safaris, com o itinerário e breve descrições das atrações de cada dia. Aquele começava com o título “Deadvlei antes do alvorecer”, depois, descrevia o  roteiro com um texto inspirador: “Esta manhã você levanta cedo para uma excursão mágica ao parque. Antes do nascer do sol, para capturar imagens das dunas enquanto a luz da hora é macia e as sombras acentuam formas e curvas imponentes das dunas”.

                            Prova de que até na morte pode haver beleza“Luz macia do amanhecer”, definitivamente era um jeito doce de nos fazer desejar estar tão cedo entre árvores mortas há mais de 600 anos, fotografar troncos e galhos quase petrificados, observar seus contrastes com o solo argiloso branco e craquelado, com as dunas avermelhadas, o céu azul e vestígios de uma planta verdejante que insiste em sobreviver naquela aridez. François entra no carro e Haroldo nos fala das atividades daquela manhã.

Hoje ficaremos no deserto até o pôr do sol, um dos mais bonitos do país. Voltaremos ao lodge um pouco antes do almoço para aproveitarmos a piscina e descansarmos. Quem quiser, terá tempo de dar um cochilo. Depois da visita a Deadvlei comeremos um pequeno almoço ao ar livre, preparado por François, à sombra de uma frondosa acácia.

                       Logo em seguida François nos saúda com um Hakuna Matata! expressivo, simpático e alegre, típico de seu jeito de ser, com o qual já havia nos conquistado. Ajoelhado sobre o assento, olhava para nós calado esperando a resposta do grupo. Ou, quem sabe, aquele fora um teste para checar se estávamos despertos o bastante para compreender a mensagem. Em coro, devolvemos com um hakuuunaaa mataaataaa alongado e cantado que, dali em diante se repetiria por todas as manhãs. Penso na frase, popularizada pelo encantador desenho “O Rei Leão”, da Disney. No idioma swahili, significa “sem problemas”, ou “não se preocupe”, o que embora não me parecesse ter sentido no momento, contudo, era um jeito muito simpático de François nos animar com a expressão africana. Gostamos!

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Safari Mzuri!, completa François, um cara cinco estrelas. Bom safari!, em swahili, ele disse. Esta sim uma expressão tudo a ver com o que esperávamos. Já em marcha, Haroldo completa:

Estamos para realizar uma das experiências mais notáveis de nossa jornada à Namíbia: a visita a Deadvlei e as fotografias do charco morto, que há séculos foi uma bacia de argila branca pantanosa, que em alguns raros dias por ano recebia água do rio, hoje um dos ícones do país, entre as paisagens mais inusitadas e incomuns do planeta. Eu mesmo não me canso de admirá-la, ainda depois de tantas vezes que já estive ali. Não me esqueço da emoção do primeiro encontro com Deadvlei e espero que o mesmo aconteça com vocês, diz Haroldo.

– A área é concorrida, continuou. Então, devemos nos apressar para chegar antes de outros turistas e fotografar sob diferentes incidências de luz, à medida que o Sol avançar, com a paisagem toda nossa. Estamos na baixa temporada, o fluxo de pessoas deve ser reduzido, mas quem chega primeiro percebe o quanto a exclusividade vale o preço de acordar tão cedo.

                             Chegamos nas proximidades do lugar depois de trafegar pela ótima estrada asfaltada do parque. Entrarmos, então, numa trilha de cascalho até chegarmos à areia. François parou o jipe e esvaziou os pneus antes de entrar. É técnica off-road, que aprendi quando praticava o esporte. Conta-se um minuto para cada pneu, a fim de que todos fiquem com a mesma pressão. Bem mais vazios, ficam com maior tração e distribuem melhor o peso do veículo sobre o terreno, reduzindo o afundamento e dificultando o atolamento.

                           Seguimos com o motorista acelerando forte até parar num descampado de areia, onde paramos. Havia apenas nosso jipe. Descemos e já pisamos na areia. Avaliei a dificuldade de ser vencido de carro, possível apenas por veículos com tração nas quatro rodas, caixa de câmbio com marcha reduzida e bloqueio de diferencial. Haroldo comandou a turma, pedindo que acelerássemos os passos e seguíssemos em bom ritmo.

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                    Pela areia, apenas por ela, subimos e descemos pequenas dunas, numa caminhada de cerca de 500 metros que, para mim, aparentava ser mais longa. Não era uma odisseia, longe disso, uma travessia do Sahara, algo assim. Era bem razoável a dificuldade de caminhar na areia fina, mas reduzi meu ritmo e fiquei um pouco para trás do grupo, a fim de recondicionar minha capacidade cardio-respiratória. Eu estava bem, mas percebi a necessidade de retomar as atividades físicas que havia dois ou três anos antes eu deixara. Cheguei ofegante ao ponto onde se vê o charco de cima, todo o conjunto de dunas que o cerca, um entorno absolutamente encantador. Haroldo me espera para dar explicações.

Deadvlei, do inglês dead e do Africâner vlei, – nome que significa algo com “charco morto” – há séculos foi vivo, pois em alguns poucos dias por ano recebia água do rio, na época das chuvas mais fortes, ocasionava cheias que se expandiam até inundar o charco, mantendo vivas árvores frondosas da espécie Acacia erioloba. Devido à interrupção do fluxo de água do rio Tsauchab por uma duna formada com o vento, o charco secou e a pequena floresta morreu. A falta de umidade na terra e no ar era tamanha que os troncos não apodreceram, ao contrário, se conservaram ao ponto da quase petrificação. Vejam. O solo branco e argiloso, composto de sedimentos que o rio trouxe, mas ficava escondido sob a água escura. Hoje não, ele contrasta com as dunas avermelhadas, a maior delas chamada “Big Daddy”, que chega a alcançar 350 metros. 

                       Estávamos, sobre a duna baixa que interrompeu o fluxo de água do rio, a responsável pelo “desastre” natural. Como numa arquibancada, com boa e ampla vista aérea  do charco.  Não havia névoa, devido ao ar tão seco como só nos desertos e em Deadvlei. E mesmo que a luz àquela hora estivesse longe de iluminar com o dramatismo que a gente vê nas fotos, era ela que permitia avaliarmos, ao fim da jornada, a variação de luminância e contrastes que o movimento do sol proporciona ao lugar. Era a segunda razão de começarmos o dia tão cedo, mas só ali compreendemos seu significado e valor. Permanecemos entregues ao prazer da contemplação das curvas sensuais das dunas e das “poses” das árvores secas. A morte, expressa naqueles troncos, e na aspereza do solo, na maciez da areia, era um contraponto à vida das pequenas touceiras verdejantes, que tiram água para a sobrevivência captando a escassa umidade do ar da madrugada. Uma beleza devastadora.

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                        Um grupo de turistas que acabara de chegar, ao contrário de nós que fomos ali primeiro para descer ao charco, optou por escalar a grande duna. Bom para nós, que ainda teríamos o lugar exclusivo, podendo contemplá-lo e fotografá-lo desde o começo da luz até o sol enchê-lo de cima. A subida da “Big Daddy”, imagino, deve gastar horas. Descemos com a primeira luz da manhã realçando a duna menor, exposta ao nascente, começando a mostrar seu brilho. Sua oposta – a “Big Daddy” – defronte a ela, ao contrário, estava obscurecida pela própria sombra. A paisagem começava a tomar as cores da Namíbia – laranjas, cinzas, verdes, azuis e marrons – e os troncos e galhos fossilizados retorcidos, a lembrar esculturas postas ali por algum artista, não uma espetacular obra da natureza.

                     Passamos por François, que sentado na areia, recostado num tronco de acácia caído, fora do charco, nos diz: “Este é meu escritório. Ficarei por aqui esperando vocês. Aproveitem! Mas não toquem em nada, para não afetarem a natureza.”

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François e seu “escritório” em Deadvlei

                      Chego ao chão firme da panela de sal e sinto alívio nas minhas panturrilhas, sofridas com a caminhada na areia fina. Entro e toco levemente no tronco da árvore mais próxima. Não resisto. Deslizo a ponta dos dedos e sinto farpas de madeira. Parecem agulhas. Fotografo a textura do tronco aproximando o zoom. A magia e a personalidade do lugar começavam a mostrar que aquele seria um dos pontos marcantes da viagem. Quero ir além do registro da beleza, mas aproveitar todo o potencial cênico e tentar produzir boas composições. Junto-me a Haroldo e ao grupo, que no centro do charco dava sugestões de enquadramentos.

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– Vejam. Os arbustos verdes contrastam bem com a areia avermelhada. Este é um ótimo ponto para fotografia. Tentem enquadrar colocando pouco chão e céu, aproximando com o zoom o verde do fundo de areia.

                 Faço o sugerido, todavia, não gosto do resultado. Mostro a Haroldo, que recomenda: “Tire o céu e deixe uma pequena faixa de piso branco. O restante, componha com areia e aquele arbusto verde, mas o coloque do lado esquerdo da foto.”

               Com novos ajustes, reenquadramento e orientação, disparo e mostro o resultado a Haroldo.

                         – Perfeito!, diz ele.

                       Percebo intensificar a luz. Ganho confiança e me destaco do grupo buscando outros enquadramentos. A maioria dos galhos começa a deixar de ser silhueta, coadjuvante no cenário, para tornar-se protagonista do charco, ganhando beleza com o sol em direção ao zênite, o popular “sol a pino”.  Fotografamos com calma e sem interferência de outros turistas, recebendo o prêmio por termos chegado tão cedo. Os turistas que madrugaram como nós, para subiram a duna, começavam a descer em direção ao charco. Ao chegarem já havíamos visto e fotografado o bastante, e o lugar – até então só nosso – democraticamente era de todos. O retorno ao jipe foi com a sensação de ter vivido um dos melhores momentos da minha vida de viagens. Resumindo, a experiência e o que eu acabara de ver a muito além dos relatos e fotos de viajantes encantados.

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                   O destino seguinte seria um campo sombreado por camel thorn trees (*) árvores espinhosas da Namíbia, através de uma larga trilha de areia. Lá chegando, caminhamos pelas proximidades entre novos, belos, inspiradores cenários, enquanto François arrumava a mesa para nosso piquenique.

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(*) Vachellia erioloba ou Acacia erioloba, conhecida como espinho de camelo ou espinho de girafa, uma acácia nativa das zonas áridas da África do Sul, Botsuana e Namíbia. (FONTE: Wikipédia)

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Continuamos juntos? Próximo capítulo:

Pic nic sob as espinhosas acácias do deserto