NUMA ESTRADA NA ÍNDIA, UM DIA PARA VENERAR

Piano Sonata no. 16 ‘Facile’, K. 545 – II. Andante – Mozart

O motorista sentou-se em silêncio, tomou seu lugar, fechou a porta, ligou o motor e partiu. Era cedo, eu sentia o evidente frescor do Inverno indiano, e na atmosfera, a inconfundível personalidade do Rajastão, mas muito embora os dias na Índia sejam quase sempre imprevisíveis – às vezes também indecifráveis – daquele eu esperava que corresse como eu o imaginara.

Meu olhar grudou-se na janela na rodovia a caminho de Jodhpur. Mergulhado em minha teimosia exploratória, vivia eu o gosto da ânsia de observar tudo, de admirar, contudo sem consumir ou profanar. A van era um exílio, o paraíso de onde confortavelmente avistávamos os sempre presentes dramas humanos do cotidiano indiano. Assim que saímos da cidade e entramos no deserto, ele nos engoliu. E embora com sua serenidade, diferentemente do jeito agressivo das cidades, também com um jeito desordenado e aleatório, revelou um desfile humano de graças e desgraças, de momentos perfeitos e imperfeitos, sublimes e entristecedores, tudo o que sempre todos que visitam a Índia vivem.

Mas ali, no deserto, as pessoas são mais esparsas. Não que sejam diferentes, contudo não se multiplicam como nas cidades, razão porque cativam mais os olhares. As mulheres, por exemplo. Enchem de graça e cor a cor do Deserto Thar, e de prazer os olhos de quem as avista. Vestem-se com tradição, usam ghagras, cholis e odhnis[1] de cores ácidas e intensas. Já os homens, não, bem mais discretamente. Elas carregam feixes ou bacias de água nas cabeças e andam com graça e equilíbrio. Já outras ficam à beira da estrada, aparentemente sem terem o que fazer. Não raramente, também avistam-se aleijados, cegos e toda a sorte de infelicidades que os tornam incapazes, para além de elefantes, camelos, cães sarnentos e magros, vacas, macacos, cabras e outros bichos.

Porque na Índia é assim, às vezes nos arrebata e encanta, emociona e alegra, noutras, faz doer, fere e marca como cicatriz, tal qual aquelas que um dia foram feridas, e que toda vez que as olhamos, percebemos não doerem mais, contudo lembram-nos de terem doído. Foi assim naquele dia. Não dói mais, mas lembro-me ter doído. Tão forte e de tal modo que agradeço à Índia por ter me dado tanto. Graças à vida!

Namastê, Índia!


[1] Ghagra, saia longa bordada e plissada, colorida, estampada, de seda, algodão ou crepe. Kanchli (ou choli ou kurti), vestimenta da parte superior do corpo, colorida e lisa, coladas no corpo. O toque étnico é dado por enfeites como espelhos, miçangas, lantejoulas, corais, conchas e bordados. O odhni, ou chunar, é um pedaço longo de tecido, com 2,5 metros de comprimento e 1,5 de largura, usado como véu, feito em tecido leve e transparente, bordados com contas ou outros enfeites.