Quênia e Tanzânia – dia de estrada, tarde de safari

Piano Sonata – Mozart

As Reservas dos Lagos Nakuru e Naivasha

O cheiro inesquecível da savana me desperta. Adormeci bem, sem tormento ou contratempo, sem sonhos a me perturbarem. Noite passada lenta e sem ruídos e, ao despertar, um novo homem se levanta crendo não haver forma melhor de amanhecer numa viagem tão intensa.

Então, Bom dia! Ensolarado e com novos destinos e expectativas. O Sol mal despontara e nós já estávamos a caminho do desjejum.

Adeus Samburu, e obrigado por nos proporcionar uma introdução impecável às savanas do Quênia, uma natureza onde o homem é secundário, senão os animais protagonistas, apesar de alguns não terem feito questão de aparecer. E a paisagem era de dominar os olhos e ouvidos.

Para alguns, também, alojou-se nos corações e mentes aquele lugar dos mais isolados, onde turistas há, mas não muitos, tanto que bastam uns quilômetros adentro das reservas para pensarmos que ela nos é exclusiva.

A “família” pouco a pouco vai se juntando com sorrisos e cumprimentos. Viagens têm seus efeitos, sobretudo quando para lugares onde se encontram costumes, regras, culturas e sociedades tão diferentes das nossas. Entre as mais notáveis, conhecer pessoas, que embora permaneçam por lá onde as encontramos, quando retornamos, por vezes nos acompanham para o resto da vida.

Eu refletia que nunca havia experimentado encontrar gente tão bacana de meu próprio país numa viagem em grupo. Sorte a minha. Todos chegam às 7:30, hora marcada, com o dia já a pleno Sol. Os dias em safaris começam cedo, com despertar às seis da manhã e saída uma hora e pouco mais depois.

– Jambo, diz Oburu em swahili, com seu vozeirão de radialista, tamanho de Schwarzenegger, sorriso extenso como o Quênia. Fica ali de pé, com as mãos sobre os quadris, dentes à mostra e faz sinal de “V” enquanto me aproximo. Depois, me estende a mão. O olhar não é novo, de todos os dias, embora naquela manhã tenha me parecido ainda mais acolhedor.

– Jambo, retribuo. Estamos prontos, dear friend!

Jipes estacionados defronte ao lodge, logo carregaram-se com nossa bagagem, água e petiscos. Nos metemos neles, também. E seguimos. Comigo, nenhum receio do que encontrar nos Lagos Nakuru e Naivasha, pois a viagem vinha crescendo em realidade e superando expectativas.

Depois de dois dias fabulosos em Samburu e Buffalo Springs, com avistamento de zebras, elefantes, girafas, leoas, javalis africanos, impalas, pássaros, partimos para novos destinos, que antes foram-nos apresentados por Márcio no briefing da noite anterior:

O Lago Nakuru abriga enorme população de flamingos, mas também das girafas Rothschild, de rinocerontes pretos e brancos, bem como de búfalos e diversos outros animais. No caminho, faremos uma parada para conhecer a cachoeira de Nyahururu e, no final da tarde, já no destino, faremos um safari em Nakuru até o pôr do Sol, que lá promete!  Em seguida, faremos nosso check-in no Lake Nakuru Lodge. Ah, o almoço será um “Lunch Box”.

“Puxa! Rinocerontes brancos e negros!”, penso eu no privilégio de avistar aqueles raros animais. Não era pouco o que nos esperava. O Parque Nacional Nakuru, mais famoso pelas colônias de flamingos habitando as margens do lago, é um dos três mais visitados do Quênia, reconhecido como excepcional centro de observação de aves – mais de 400 espécies -, entre elas a águia africana, para além de habitat de leões, impalas e muitos outros animais. 400 espécies!

Dali ao destino, 310 km de frutas e legumes à beira da estrada, de plantios organizados, de savanas, lugarejos, vilas e cidades. Saímos pelo Arche’s Gate, aquele da Elsa, e logo tomamos a rodovia A2, a Nyeri – Nanyuki Road.  

Para além das enormes possibilidades de um safari _____________

O itinerário não era apenas o deslocamento, uma viagem longa de carro, senão também observar e me tocar com pequenas cabanas sem eletricidade, água corrente e saneamento, crianças descalças carregando reservatórios de água, a difícil vida diária das pessoas no Quênia. Sobretudo porque aparentemente encontraram seu modo de felicidade com tão pouco, apesar da luta pela sobrevivência ser, às vezes, comparável às dos animais da savana. Provavelmente, para mim, seria este – ao fim da jornada de 2.000 quilômetros pelos dois países – o maior legado que me deixariam, um benefício adicional da viagem, além dos prazeres dos safaris.

Seu impacto se estendia muito além das belíssimas paisagens, dos encontros com os animais. E as reflexões pessoais, que mexiam comigo durante nossa estada, pareciam favorecer o crescimento pessoal, a sedimentação de valores e a avaliação do quanto certas viagens podem fazer por nós. A reflexão levou-me às palavras de John Steinbeck, o escritor americano: “As pessoas não fazem as viagens, as viagens é que fazem as pessoas.”

O lago Nakuru ______________________________________

A próxima morada, por duas noites, será no Lake Nakuru Lodge. Paramos na altura de Nanyuk para uma vista do Monte Quênia, bem distante e parcialmente encoberto por nuvens. Depois, na cachoeira Nyahururu e, no fim da tarde, um safari de fim de tarde já no caminho do lodge, ao redor do lago com milhares de flamingos e pelicanos, além de uma surpreendente fauna dos animais típicos das savanas do Quênia. Trata-se de uma das melhores reservas para observarmos os rinocerontes negros e brancos, além de manadas de búfalos, felinos, grande variedade de aves e muito mais.

Fizemos um stop no Mountain View Curio Shop, em Nanyuk, a 112 quilômetros, para café e banheiros. Algumas fotos e vida que segue.  No quilômetro 138 entramos na Rodovia 85, em Naromoru, e paramos na Equator Curio Shop, a 220 quilômetros, para café, banheiros e comprinhas. Até a Thompson Falls, em Nyahururu, aos 235 quilômetros, estacionamos no Thomsons Falls Lodge, para comer nossos lunch boxes sentados numa mesa no jardim.

Em seguida fomos conhecer a cachoeira. Não eram as “sete quedas” , mas o lugar, interessante e um bom relaxamento antes de prosseguirmos a viagem. Eu e a maioria avistamos do mirante e três ou quatro desceram com uma guia até a base da queda d’água, que tem cerca de 72 m, com água do rio Ewaso Narok, que vem do extremo norte da cordilheira de Aberdare. Da borda do desfiladeiro havia algumas áreas de observação, onde paramos. Também havia dois ou três habitantes locais vestidos com roupas de tribos que insistentemente nos abordavam para uma fotografia deles, por um valor caro que negociado caia à metade. Eles não nos deixavam em paz e perseguiam.

Almoçamos e seguimos para o Lake Nakuru National Park. Restavam, então, apenas 76,1 km, via C83, até o Lake Nakuru Lodge, dentro do pequeno parque. O safari seria no caminho do acesso ao parque até a hospedagem. A tarde ia em meio quando chegamos ao Lanet Gate.

Dali ao lodge seriam mais 15 quilômetros de safari, quase sempre às margens do lago. Entramos e os primeiros animais avistados foram as zebras. Depois babuínos, búfalos e cervos, além dos macacos vervet azuis e antílopes Waterbuck, animais grandes e robustos com orelhas arredondadas, manchas brancas acima dos olhos, nariz, boca e garganta. Os machos têm chifres anelados que podem medir até 100 centímetros de comprimento. Um belo e não muito comum animal.

Um safari moderno começa entrando num jipe, de manhã bem cedo e ao fim da tarde, fotografando e observando os animais, voltando ao lodge para o desjejum às nove, descansando o resto da manhã e parte da tarde para aproveitar a piscina, massagem, uma boa refeição. Às 16 h, o safari noturno começa e vai até o começo da noite. Depois de três dias nisso, voa-se para casa. Nada contra. Fiz dois e gostei muito. Mas o nosso foram dez dias “fora do caminho batido”, das oito da manhã às cinco da tarde e por tudo o que há de melhor no Quênia e Tanzânia.

Lake Nakuru Lodge – Um pôr do Sol para não esquecer ______________

A luz que brilha ali parece mais clara, maior. E o céu, de ver estrelas, constelações inteiras. O Animal Planet desfilava à minha frente, na linha do horizonte de nossa varanda. Numa trilha, em fila indiana, uma manada de búfalos seguia, com adultos e jovens, consagrando-se numa das típicas e mais belas paisagens que a África me proporcionou nesta viagem.

Trouxe muitas destas comigo de volta à casa – na memória e na câmera -, mas nenhuma de superar a majestosa beleza do pôr do sol no Lago Nakuru.

________________

A seguir

As águias pescadoras do Lago Naivasha e um Safari a pé na Crescent Island.

Quênia e Tanzânia –  Sobre homens e animais  

A Map of the World – Pat Metheny

A visita à aldeia Samburu e a exploração da reserva Buffalo Springs

Elas estavam ali, logo atrás da cortina que escondia a grande varanda. Faziam uma algazarra dos deuses, típica das andorinhas. Um estardalhaço. A sinfonia dos animados passarinhos acordou-me pouco antes do despertador. E lembro-me bem da escuridão no quarto, do momento em que o Sol ainda não despontou, mas já se anuncia. Minha visão levou segundos para adaptar-se à ínfima luz que passava por uma fresta. Eu percebia a tênue e morna claridade tentando entrar no quarto. E eu ainda não avistava, mas podia sentir a natureza selvagem da reserva Buffalo Springs. Pujante, absoluta, potente, nua e crua. Não sei dizer se eram meus olhos, se outros o sentiam, mas as cores da savana pareciam mais exuberantes, o céu mais azul, embora nem tanto o verde, que por aqui andava seco de dar dó.

Levantei-me. Não com a presteza que me caracteriza, mas com cautela. E como uma hiena solitária, decidida, mas sorrateira, com cuidado para não tropeçar no ambiente desconhecido, cheguei à presa, a porta da varanda. Pole pole!, como dizem em swahili – devagar, devagar! Assim entrou a paisagem no quarto e em mim, mas junto com ela um frio de bater no peito, como todas as manhãs experimentei naquele lado do mundo.

Embrulhei-me com a cortina e observei a paisagem apenas o rosto em exposição. A savana estava ali, embora não tão bela quanto ao calor do dia raiado, embora tudo o que eu visse fosse bonito. O alvorecer se anunciava com toda a sua beleza e magnitude, pureza e encantamento, proporcionava sensações, mexia com sentimentos. Mas eu não poderia apreciá-lo: não havia tempo a perder com contemplações. Nossos horários eram rígidos e meu senso de pontualidade logo levou-me ao banheiro.

Era nosso segundo dia de safari, embora nossa estreia não tenha sido assim um “dia de safari”, senão o da chegada à Reserva Samburu vindos de Nairobi, seguindo o caminho em seuterritório em direção ao nosso lodge, na vizinha Buffalo Springs, quase à margem do rio Ewaso Ngiro. Que lugar e que chegada!

O turismo, a grande oportunidade

Nossa manhã começou cedo, bem cedo, como de costume. Às sete e meia já estávamos dentro de nossos jipes levantando poeira a caminho de uma aldeia do povo Samburu, visita que daria um significado todo especial, humano, àquela viagem quase toda dedicada ao encontro com os animais selvagens e a natureza das savanas, das magníficas reservas do Quênia e da Tanzânia.

Lembrem-se de usarem máscaras, nos relembrou Márcio. São para preservar os samburu, não a nós. Daquele modo estaríamos ajudando a manter vivos os séculos de cultura de um povo guerreiro por história e pecuarista por tradição. Seminômades, alimentam-se de leite e de sangue das vacas no dia a dia, mais carne, embora ocasionalmente, e de legumes e tubérculos. São “primos” dos  Maasai, pois têm a mesma origem, mais ao Norte do continente, para os lados do Egito e Sudão e às margens do Nilo. Embora carreguem traços comuns, inclusive o idioma, têm lá suas diferenças.

Entramos num mundo quase de fantasia, que muitos surpreendem-se ainda existir de gente que custamos a crer conseguirem sobreviver em condições tão adversas e com tão pouco.  Vivem em pequenas aldeias de chão de terra, em simplíssimas casas de tijolos e ainda mais primitivas de barro. O chefe da tribo, fluente em inglês, nos recebe e coordena a visita à tribo e nos explica que ao final poderemos comprar o artesanato feito exclusivamente pelas mulheres. Nos mostraram como fazem fogo, alguns costumes, suas moradias e um grupo de crianças da escolinha local.

Doa-se dinheiro em espécie para a tribo e não há mesmo outro jeito de sobreviverem, sobretudo na época da seca, do que sem a ajuda do turismo. Sinto uma sensação de conforto em poder contribuir com a aldeia e reforço meu sentimento de um pouco de humanidade à nossa visita, algo que eu não imaginava experimentar antes da viagem, porque eu fora ali com uma ideia de que veríamos algo que o turismo subtraiu em originalidade.

O turismo é uma via de mão dupla, pode arrasar a personalidade e originalidade de lugares e culturas – com o de massa e o predatório – mas também favorecer a manutenção de povos e de animais, neste caso, com o turismo responsável e sustentável. seja pelas ações de doações de visitantes.

Seguimos nossa tarde de visita à reserva de Buffalo Springs, até chegarmos ao Uaso Bridge Gate, ou Portão da Ponte Uaso, ornado com uma bela pintura de pele de girafa e relativamente próximo ao Samburu Simba Lodge, onde nos hospedamos. Aproveitamos a não desperdiçável oportunidade de uso dos banheiros, ainda que tão precários. Revejo a placa homenageando a leoa Elsa, vista antes no outro acesso, o Arche’s Gate, observei os curiosos e interessantes ninhos presos ao teto do portão, de passarinhos que pareciam graciosas, animadas e barulhentas andorinhas.

Àquela altura eu ainda não sabia, mas aquele lugar seria marcante, dominaria meu pensamento toda vez que eu me lembrasse do Quênia. A partir dali, precisamente, estaria comigo para sempre, não só por todo aquele dia, por toda a vida. No meu imaginário não poderia supor que aquela experiência que ali começava, com nossa tão aguardada aventura de observação da vida selvagem, seria também uma jornada emocional. Claro que sobretudo pelo destino, pelas experiências, pelo aprendizado, mas muito também pelo grupo de pessoas que se integraram, se divertiram e tornaram tudo mais brilhante. Alternávamos os jipes todos os dias e os passageiros, o que possibilitou o aperfeiçoamento da integração, já que não se daria apenas nas refeições.

Passadas poucas horas depois da visita à aldeia samburu eu não imaginara presenciar tantos animais. As reservas são relativamente pequenas e pouco conhecidas, embora com abundância de vida selvagem e mas a pouca frequência humana possibilitam experiências muito mais exclusivas do que aquelas experimentadas nos grandes parques como Masai Mara e Serengueti ou Ngorongoro, o que torna ambas as reservas reconhecidas como entre os melhores safáris no norte do Quênia.

Avistamos zebras de grevy, girafas reticuladas, gazelas, antílopes, avestruzes somali, elefantes, entre outros animais.

Próximo capítulo – Lagos Nakutu e Naivasha

Quênia e Tanzânia – De Nairobi ao Samburu

Love May Take Awhile, de Pat Metheny – Álbum From This Place

Longe, tão longe e distante _____________________________________

Pela janela do quarto avisto prédios e um céu azul tão brilhante quanto minha vontade de descer. Chegara, finalmente, o primeiro dia de viagem para as reservas, a etapa inaugural da jornada pelo Quênia e Tanzânia, de pegar estradas para um outro mundo, o das savanas e dos safaris. A manhã era calma e reluzente e, ao descer, noto que todos já estavam a postos em pontualidade britânica, prontos para entrarem a bordo de seus jipes na hora determinada por Marcio, nosso guia*, como ocorreu dali até o derradeiro dia da longa viagem.

Três jipes, doze brasileiros, dezessete dias, 2000 quilômetros, uma expedição de observação ao sabor da natureza selvagem, de filmagem e fotografia a bordo de Toyotas Land Cruiser. Os objetivos: a Grande Migração de animais no Serengeti, as Reservas Maasai Mara, a Cratera de Ngorongoro, as reservas de Samburu e Buffalo, o Lake Naivasha e o Lake Nakuru, além dos povos Maasai e Samburu.

Jambo!, disse Kaled, um dos motoristas ao encontrar-me no lobby do Pride Inn Azzure.

– Jambo!, retribuí com a mesma simpatia.

Assim, às 8 horas de uma manhã fresca, partimos com um único pensamento: o encontro com animais selvagens naquele mesmo dia, ao fim da tarde. A expectativa era grande, embora o receio de que ela não correspondesse à realidade fosse esperado, afinal, um safari não é uma visita a um museu, senão uma viagem ao imponderável, ao inesperado, no qual pode haver um abismo entre a expectativa do observador e a realidade da savana. Os animais não estão preocupados em serem vistos – ao contrário -, são tesouros escondidos focados em suas lutas diárias pela sobrevivência. Contudo, era promissor o dia e não havia por que não esperar por uma jornada terminada com grande satisfação pessoal.

A primeira rodovia que tomamos foi a Meru-Nairobi Highway e, pouco depois, já na A2, uma das novas chinese nighways, que passa por Kibirigwi, fizemos uma parada, a 120 km da partida, na Africana Curio Shop onde havia um providencial e inesperado café espresso tanzaniano, além de uma enorme loja abarrotada de souvenires. E wash rooms. Com água! O lugar era concorrido e diversos outros jipes com turistas estrangeiros estavam por ali com o mesmo objetivo.

Interessei-me pelos animais esculpidos em madeira, especialmente os de ébano. Madeira bonita, escura, pesada, resistente, das árvores encontradas principalmente na África.

Cuidado, gente! O que eles chamam de “ébano” pode ser madeira comum, pintada de preto, nos alerta Marcio. Da que comprei, só saberei com o tempo…

O destino agora era Nanyuki, com parada no Cedar Mall para comermos no surpreendente fast food Java House, para uma passada numa farmácia e visitas aos bons banheiros. Com água e sabão líquido. Nos divertirmos na mesa em que nos sentamos todos, consolidando a simpatia coletiva do grupo.

Comemos bem e seguimos estrada afora passando por Isiolo, sem pararmos, mas uma cidade tipicamente africana desta parte do continente mostrada às janelas, movimentada e com todo o tipo de comércio à beira da rodovia. Ali vi os primeiros tuk-tuks da viagem e lembrei-me dos que andei na Índia e na Tailândia, embora os daqui sejam mais arrumadinhos, ainda que levem além de pessoas, cabritos e outros animais domésticos.

Em pouco tempo estávamos com a savana à beira e lembro-me bem de que muitas vezes passávamos e as crianças sempre nos acenavam e sorriam. Eram acontecimentos banais, que se repetiam até tornarem-se costumeiros, contudo, sendo estes que, muitas vezes, transformam-se em momentos únicos. No caminho, à altura de Naro Moru, passamos pelo Monte Quênia, que embora encoberto parcialmente por nuvens, nos fez parar à beira da estrada para fotos. E uma sempre bem-vinda esticada nas pernas.

Dali foi um pulo até o Archer’s Gate, aquele da Elsa, um dos dois acessos ao Samburu National Reserve.

Samburu National Reserve – Um dia para não esquecer

Os três Toyota Land Cruiser 4X4 estacionaram assim que adentraram o parque. E nós, empolgados com o começo do safari de sonho, aproveitamos o tempo para idas aos banheiros, enquanto os motoristas davam curso na guarda do parque aos procedimentos burocráticos.

Começávamos de maneira brilhante a nossa aventura pelo Quênia ao fim da tarde daquele dia. Eram as primeiras duas, não as mais conhecidas, senão as reservas mais fora do caminho batido de toda a nossa aventura: Samburu e Buffalo Springs. A natural excitação era compreensível. Afinal, para a maioria de nós ali, um safari era uma viagem, única na vida, com um esplendor épico de vida selvagem. Para além dos animais, num local com histórias inspiradoras de conservação da comunidade do povo samburu e da vida selvagem.

As montanhas vulcânicas fazem pano de fundo no cenário de savanas entremeadas pelo granito de afloramentos rochosos e belíssimas acácias altas. Esguias, elegantes, de copas planas, são entre os símbolos mais icônicos, singelos, mas belos, que há por ali. São árvores guarda-chuvas, na forma e nos efeitos, pois protegem como sombrinhas os animais e, das chuvas, os que se abrigam bob elas e nos seus galhos. Atravessando a paisagem, o rio Ewaso Nyiro – terceiro mais extenso do país – em cujas margens abriga-se um oásis verde de grandes palmeiras-doum – ou gingerbread tree – cujos troncos se abrem em muitos. E uma vegetação mais baixa, alinhada com as beiras dos meandros do rio. O cenário é tão pitoresco que às vezes parece um exagero sugerido nas páginas da National Geographic ou do estado de espírito de quem o descreve. Desvia-se a atenção das árvores e encontram-se quase todos os animais que se imagine possa haver na África.

Ambas as reservas são um refúgio vital para a vida selvagem variada, contudo, particularmente de cinco animais especiais do norte: a zebra cinzenta, o avestruz somali de pescoço azul, a girafa reticulada, o curioso antílope gerenuk e o oryx de beisa. Para além de manadas de elefantes, de felinos em grupo ou solitários, de outros animais que somam-se às 450 espécies de aves catalogadas. Enfim, um grande lugar para começarmos nossos tão esperados dias de ação.

Apesar de sua diversidade, Samburu é um desafio para alcançar, devido à distância e às opções de parques e reservas mais conhecidas para quem tem menos tempo e disposição aos sacrifícios. Livre de multidões, sentimo-nos num lugar exclusivo – ao contrário do Mara e do Serengueti onde, por vezes, há mais jipes estacionados do que animais sendo observados.  concorrerá os encontros entre outros inúmeros jipes.

O lodge onde nos hospedaríamos seria o Samburu Simba, localizado no interior da reserva de Buffalo Springs, cuja bela vista para o rio, rodeado de natureza e com boas instalações, convertera-se num dos melhores alojamentos entre todos que ficamos. Para além das instalações, um pessoal prestativo e atencioso, uma comida boa servida numa grande mesa reservada e bem montada para nós, que acomodava a todos tinha toalhas vermelhas e velas acesas. Uma boa loja de suvenires e vistas espantosas completava com dignidade a boa hospedagem.

Assim que retornamos aos jipes, depois der irmos aos wash rooms sem água, começávamos nosso primeiro safari, no caminho por dentro da reserva até o lodge.  Seriam cerca de 25 km através das estradas de chão, cruzando, ao fim, a divisa entre as reservas Samburu e Buffalo Springs, o rio Ewaso Nyiro.

No três, ok? Um, dois, três…já!

O teto do jipe elevou-se com nossa ajuda ao motorista e, depois de acionada a trava de segurança, ganhamos um belvedere, o mirante móvel que fez a paisagem entrar no jipe, embora não a luz, contudo sim muita poeira. Tanta que entrava nos olhos, na garganta e, quem sabe, até mais adentro.

De olhos pregados às janelas e narizes colados aos vidros, sentimos o vento com a velocidade do jipe atenuar o calor. O filme de ação que trouxéramos na mente não começara, talvez, para alguns, apenas um pouco da beleza e romantismo de Out of Africa. Não se vislumbrava qualquer sinal de animal ou de civilização, senão um cenário ressequido pontuado por arbustos, que à minha ideia correspondia ao que eu trouxera na memória. Encerramos as intermináveis conversas da viagem para nos concentrarmos nas bonitas imagens da planície seca, cujas expectativas de encontro com os animais eram promissoras.

Os jipes percorriam os caminhos de terra e comunicavam-se entre si por seus rádios. Por vezes perturbavam bastante, devido à altura do som, ao ponto de, por vezes, ser necessário pedirmos aos motoristas para reduzirem o volume. As cores eram bem definidas e deixavam incrivelmente mais atraente a savana. Embora eu ainda não a avistasse, pensava sentir o cheiro de vida selvagem. Talvez estivesse ansioso demais e, ao dar-me conta disso, procurei controlar-me. Nada mais adequado do que receber naturalmente o que a África tem a entregar, por si, inesperadamente e ao seu tempo e jeito, do que o contrário.

O primeiro animal avistado foi um impala. Como em todas as vezes em que participei de safaris na África do Sul e na Namíbia. Eram de uma manada da espécie entre as mais comuns de antílopes africanos. Tensos e alertas, prontos para correrem ao menor sinal de perigo, são sempre graciosos e elegantes com seus chifres alongados. Cheiram o ar, abanam os rabos, olham e escutam com atenção tentando captar algum movimento ou odor suspeito, um predador. Ainda que não sejam os bichos mais cobiçados num safári, os antílopes atraem os felinos. Aquele primeiro encontro foi tão excitante parecíamos presenciar uma chita em plena caça.

Quase tudo o que a savana nos mostrava era explicado, e bem, pelos motoristas. A vida selvagem, a vegetação, as peculiaridades de cada lugar. Alguns com mais entusiasmo que outro, mas todos muito bem-intencionados.

São as Gazelas de Granti, informou nosso driver. Os “McDonald’s” da selva, petiscos preferidos entre todas as espécies de grandes felinos, concluiu e deu partida no motor.

Seguimos as estradas com os jipes levantando poeira e logo adiante avistamos um bando de lindas e saudáveis girafas. Lindas. Degustamos com os jipes parados o delicioso momento. De súbito o silêncio entre nós é interrompido por um alerta pelo rádio, dado pelo condutor de um dos jipes:

Haraka haraka!, disse Oburo, repetindo o que ouvira do outro motorista. Algo como “corre, corre!”, em swahili. “Elefantes mais à frente, nos avisou Wiki!”, completou, girando o motor e partindo. Sacolejando, passamos defronte a um grupo de agitados, ariscos warthogs, o javali africano, com seu rabinho apontando para o céu, até chegarmos ao lugar indicado.

A manada de dez elefantes de todos os tamanhos cruzava nosso caminho, bem pertinho de nós. O encontro foi encantador, sereno como o passo daqueles animais, apesar de os maiores terrestres do mundo. O momento foi solenemente admirado, como se àqueles animais rendêssemos nossas homenagens e agradecimentos pelo desfile de tanta formosura. Embelezados pela luz do quase poente, quando tudo fica mais quente e fotografável, seguiram seu rumo até o horizonte para depois os encontrarmos novamente já próximos ao lodge.

Continuamos e avistamos um jipe de outra expedição estacionado com seus passageiros de pé olhando na mesma direção. Nos aproximamos e presenciamos duas leoas deitadas bem próximas à estrada. Que visão maravilhosa! Eram os dois troféus para aquele dia que poderia terminar ali, ao menos para mim, com a sensação de plenitude da satisfação. Majestosas, saudáveis, bonitas, quase imóveis, ignoravam-nos solenemente enquanto observávamos sua respiração ofegante. Exercitamos a arte da paciência, algo que um safarista deve compreender como fundamental numa aventura do gênero. Perceber que um safari não é apenas a observação, fotografia e filmagem de animais, também observar seu comportamento e identificar seus costumes na natureza.

As leoas levantaram-se e placidamente caminharam para desaparecerem entre os arbustos próximos. Na Reserva Nacional de Samburu elas levam vidas quase solitárias. Consta que o leão africano desapareceu de 94% de sua área original, por diversos motivos, o que tornava aquelas duas fêmeas um prêmio inesperado ao fim do dia.

A tarde caía, a noite se anunciava e o lodge nos esperava em Buffalo Springs. Ou melhor, nós ansiávamos muito por ele. Atravessamos uma pequena ponte sobre o rio Ewaso Ngiro quando cruzamos com um enorme bando de barulhentos babuínos. Mais adiante, na margem de um de seus meandros, estacionamos para apreciar o primeiro pôr do Sol africano e alguns marabus. O rio fluia através de bosques das palmeiras duplas e de densas florestas ribeirinhas, apoiando uma população significativa de crocodilos e hipopótamos do Nilo, que no entanto não avistamos, pois àquela altura, no fundo do leito estava praticamente seco, repleto de pássaros em busca de alimentos e refresco no singelo filete de água. O astro rei pô-se no horizente às 18:45, momento em que minutos depois religaram-se os motores e seguimos para o lodge.

O Samburo Simba Lodge – Longe, distante, ermo

Uns oito empregados esperavam enfileirados os novos hóspedes descerem dos jipes.  Pegaram nossas malas e as agruparam esperando que as identificássemos para levá-las às habitações. Depois do check-in, ouvimos a gerente da Recepção passar o briefing do lodge ao grupo.

Fechem as janelas e portas. Cuidado com os babuínos, disse ela, a parte que me recordo da extensa lista de horários e funcionamento do lugar.

Superar expectativas é sempre positivo, e com a hospedagem não foi o contrário. A habitação era espaçosa, com cama king size, banheiro confortável, chuveiro mediano e ótima vista da varanda. Não havia tempo a perder: era preciso tomar banho, trocar de roupa e sentar à mesa à hora marcada para o jantar. A noite ali foi agradável, tanto pela refeição quanto pelo compartilhamento numa só mesa com todos e boas conversamos, pelo vinho mediano bem sorvido e pelo cansaço que me fez dormir o sono justo de um safarista entusiasmado. Agora era tempo de recuperar-me.

Eu estava pronto para ouvir o silêncio lá de fora.

____________________

Até o próximo capítulo: “Um dia inteiro de safari em Samburu e Buffalo Springs

* Nota: Márcio Lisa, da Photo Safari Expedições, criou, desenvolveu e nos acompanhou durante a jornada. https://photosafari.com.br/

Assista ao vídeo deste post

Quênia e Tanzânia – Samburu, A chegada!

The Bat, de Pat Metheny Group. Álbum Offramp – Grammy de 1982

A História de Elsa

Uma placa entalhada em madeira, um nome feminino em destaque. Pregada a uma parede do Archer’s post gate – um dos portais da reserva, ornado à pele de zebra – chamou-me a atenção. Dizia: “Em memória de Elsa, que ajudou a salvaguardar esta reserva de caça”.

Mais do que atrair, a placa levou-me anos atrás no tempo, com a surpresa do inesperado. Embora nenhuma outra referência houvesse, imaginei tratar-se da jovem leoa, cria órfã adotada como animal de estimação pelo guarda florestal George Adamson e sua esposa Joy, ativistas africanos da vida selvagem e conservacionistas nos anos 50. Não podia haver outra Elsa. Tem que ser esta!, pensei entre surpreso e encantado com o “encontro”.

Eu estava na casa de Elsa, da leoa que fez grande história no Quênia, na África e no mundo. Contada num livro que vendeu 5 milhões de exemplares, e mais tarde no filme Born Free – ou A História de Elsa – conta a vida da leoa criada como membro da família, que se recusou a mandá-la a um zoológico, destino de suas duas irmãs, ao resgatá-la de uma leoa recém abatida. Ainda que um animal de estimação, criaram-na para sobreviver na natureza.

“Nascida livre, tão livre como o vento sopra, tão livre como a grama cresce, livre para seguir seu coração” dizia a letra da bonita canção tema de Elsa no filme, cuja trilha sonora foi composta por John Barry. Vencedor de um Óscar, em 1966, época de minha adolescência, o filme ajudou a consolidar de vez meu desejo de conhecer esta parte da África. Era admirável que Elsa ainda estivesse tão fresca em minha memória, que tão inesperada quanto surpreendentemente tivéssemos nos “encontrado” ali…

Quando Elsa tornou-se adulta, os Adamson perceberam que chegara a hora devolvê-la à liberdade, esperando que pudesse sobreviver por sua conta. Tempos depois, a encontram e foram surpreendidos com um acolhimento muito especial. Meu Deus, quantas lembranças me voltaram da mente e, discretamente, me emocionaram.

Uma outra placa, ao lado da de Elsa, homenageia a leoa Kamunyak, que adotou um bezerro de oryx. Pronto! A apresentação da reserva Samburu estava feita, e de modo inesperado e romântico.  

A história inspirou milhares de pessoas a se engajarem na causa da preservação da vida selvagem e pensar que eu estava no território de Elsa foi uma auspiciosa introdução ao Samburu National Park. Hoje, anos depois de Elsa, a presença de leões continua a ser notável na reserva e eu estava certo de que o adoraria.

Para mim, fora uma estupenda graça. E livre, tão livre como o vento sopra, retornei ao tempo presente, com o Quênia vivo nos olhos e os ouvidos despertos por alguém me dizendo discretamente ao pé do ouvido:

Não há água nos banheiros!

A seguir: De Nairobi ao Samburu – Longe, tão longe e distante