Quênia e Tanzânia – Lago Nakuru, o paraíso da vida selvagem

5-5-7, de Lyle Mays e Pat Metheny, do álbum Letter from Home, de 1989

Um bom guia, o lugar e sorte. Quem vai a um safari deve ter em conta os três fatores para a boa qualidade da experiência. Do nosso lado, a sorte parecia estar. E guias tínhamos, não apenas um, mas três habilidosos motoristas-guias. Por fim, o lugar: Lago Nakuru, com imensas possibilidades, onde no safari vespertino do dia anterior avistáramos quase todos os possíveis mamíferos e aves. Exagerei. Mas foi bem perto de pensar assim, desde que chegamos – no fim de tarde – até o pôr do Sol. Mesmo desse jeito, embora eu contasse com um belo dia, os pés estavam no chão da realidade, pois em safaris, perder e ganhar é sempre de se esperar.

O céu era imenso, auspicioso, já tão brilhante às sete e quinze da manhã. Eu o vasculhava com o olhar, observava a pureza do azul até a luz macular a íris. Uma belíssima águia africana realizava um magnífico voo, eficiente, notável.

A luz não entrava, colidia com as retinas, incomodando os olhos, embora caísse mais delicadamente na pele. Era luz intensa e suave, se é que isso é possível. O meu olhar percorria o céu com intenção exploratória, num semicírculo, porque embora um espaço vasto, limitava-se pelas árvores ao redor. Na perpendicular também. Não encontrei nuvens. Havia luz. Da boa luz de saltitar na retina e inundar o olhar. Aproveitei o que pude daquele azul. Não era quente ainda, e o frescor se sentia no corpo, porque nas terras altas do Quênia, em fevereiro, o clima é quente, mas as noites e manhãs cedo, frescas

Depois de registrar o voo entrei em meu mundinho africano – o interior do jipe – colecionando motivos para incrementar o entusiasmo matinal. E não se tratava do que é comum a quem viaja, aquela coisa de antes de ver – sem nunca ter visto – já ter gostado. Era só porque o dia anterior já quase bastara. É difícil encontrar palavra para descrever minha ânsia por aquele dia inteiro de safari no Lago Nakuro. Escolho deixar assim.

Estávamos ali esperando por um dia como todos os que tivéramos até ali. Nada me parecia ser tão diferente – mais ou menos intenso, de maior ou menor pressa, senão o de sempre: um dia de safari, para o que, afinal, viajáramos.

Enquanto esperávamos a partida do grupo eu refletia sobre diferentes temas e questões. Uma delas, sobre nosso lugar no jipe. Daquela vez fomos no banco de trás. Pula um pouco mais. Bem mais, para ser franco. E tem menos espaço, embora com a vantagem de estarmos mais perto da geladeira. Que não gelava, é verdade, só refrescava, mas era só estender a mão e pronto, não tínhamos que incomodar os colegas. Havia também janelas privativas nas poltronas traseiras, em ambos os lados. Algumas funcionavam, outras, emperradas, só abriam com ajuda de mãos fortes. No fim das mais longas jornadas, já não tínhamos posição no banco desconfortável, ao ponto de que qualquer parada para banheiros consagrava-se num grande alívio. Bem mais para a lombar do que para a bexiga.

Coloquei o celular, a filmadora e os binóculos na bolsa do banco da frente. E foi assim, cuidando delas, que me peguei de novo refletindo. Agora acerca de fotos e filmes. E ponderando intimamente: “Se é verdade que fotografia é a maneira de olhar de cada um, eu tenho a minha”. E mais, também é um jeito de se expressar”. As minhas imagens já não revelavam agora a ambição de outrora. Eram de celular, apenas. Embora boazinhas, feitas com capricho, contudo sem merecerem destaque ou mesmo um mísero voto no concurso que prepararam para o final da viagem. Mas serviam-me. E bem. Para o prazer e para a utilidade de ilustrarem este bloguinho, o Insta e os filminhos no Youtube.

A outra reflexão corria sobre as viagens, de como e quanto elas tornaram-se tão importantes na minha vida, até em minha formação pessoal. Viajar não me torna, contudo, melhor ou pior que ninguém. É pretensão achar que existe algum mérito especial a tornar os viajantes pessoas diferenciadas. Não. Mas, a mim, fazem muito bem! Sobre este “gostar”, eu refletia e, consequentemente, acerca do privilégio de estar ali. Sim, porque viajar é caro, então, é para poucos. Se eu tive a sorte de viajar bastante, de me permitir fazer isso por escolha e para onde desejo, não por convite para escrever sempre positivamente sobre um destino ou hotel, pago ou não por isso, sou grato por este meu hábito. Em resumo, meu gosto me levara até ali àquela savana numa luminosa manhã.

Foi enorme o instante, apesar de breve. Fez até o tempo desaparecer. E relembrá-lo agora, sem ter perdido um só dos pensamentos que descrevo, também me faz bem, já que ter um cérebro com 71 anos de idade, mas ainda guardando memórias arrumadinhas, não apenas vagas lembranças, é para mexer com o orgulho. Sobretudo porque não escrevo diários nem faço anotações em viagens. Talvez um dia até venha a fazê-los, contudo agora (e sempre foi assim), meu diário de viagens permanece com todas as folhas em branco. Não anoto nada. De situações e experiências a gostos e impressões. Guardo o que vivo apenas na memória, porque me entrego intensamente com os olhos, o coração e a mente, vivo cada segundo deles. Às vezes até dormindo. E quando escrevo, volto no tempo e contemplo. Fotos e filmes, estes sim, são os meus diários de viagens.

Nos jipes aguardávamos a partida do Lake Nakuru Lodge com destino ao Lago Naivasha e à Crescent Island. No interior, os doze safaristas alegres e entusiasmados com o dia, embora não mais os corajosos exploradores de outrora desbravando o planeta África, éramos tão entusiastas da vida selvagem quanto aqueles. O percurso não seria longo, apenas 120 quilômetros, e por boas estradas de asfalto. Mas havia um safari no meio! E que safari!

Ainda que fosse nosso quinto dia de game drives no Quênia, tudo parecia novo e promissor às margens do deslumbrante lago africano – um dos grandes do Vale do Rift – cuja água alcalina de cor escura reflete o rosa da grande população de flamingos que ali se alimenta das suas algas e outros micro-organismos. E de pelicanos brancos, enormes, lindos ao voarem, dado sua envergadura.  

Passava um pouco das sete e meia quando deixamos o lodge, seguindo os caminhos de terra, a cada nova paisagem, nos dando um pouco mais de beleza a superar a do dia anterior. Não era difícil, então, esperar por perspectivas extraordinárias cada vez que contemplávamos cenários e animais. Eu exultava, e me certificava – como se precisasse – do quão infinitamente rica e bela é a vida. Mais uma vez eu reconhecia o tamanho do privilégio de estar ali. Por vezes, mais do que o prazer da contemplação, eu percebia um tipo especial de felicidade, algo que não seria fácil definir.

O safari no Lago Nakuru

Com uma agradável onda de ar fresco invadindo o teto aberto do jipe, já na trilha de terra seca, a 1.700 metros de altitude as manhãs pareciam ser mais límpidas. A linha do Equador atravessa estes planaltos de imensa beleza, de relvas, de árvores secas dentro do lago, de florestas verdejantes e de pastos nem tanto. Serpenteávamos por uma zona aberta de pastos dourados que abrigam famílias de rinocerontes, de zebras, búfalos, babuínos, leopardos e leões, além da ameaçada girafa Rothschild e de mais de 400 espécies de pássaros, 50 de mamíferos e outras dezenas de espécies de flora, contudo são os flamingos a principal atração do parque, que com sua geografia variada, de zonas húmidas a pastagens secas e florestas densas, torna o safari ainda mais sedutor.

Chegamos a um terreno mais arborizado, de forração verde e com algumas acácias adultas, e avistamos o primeiro rinoceronte branco reluzindo distante com a luz da manhã. Aquilo para mim era um troféu, já que estávamos diante de um animal considerado formalmente extinto.

Avistamos girafas, zebras, rinocerontes, búfalos, chacais, uma família de leões e leoas adultos e filhotes, duas leoas deitadas preguiçosamente num galho alto de uma frondosa acácia, antílopes, cervos, babuínos, macacos e uma infinidade de pássaros. Tenho certeza de que não esqueci de nenhum animal. Ou será que a mente já não está mais tão precisa assim? Só sei que nada apagará aquela manhã da minha memória. E que meus sonhos, um dia, me falarão daquela manhã.

Só se vive uma vez. A não ser James Bond, claro. E os gatos. Então, não hesito em viver intensamente cada um dos meus dias, como especialmente agora, que me encontro no quarto ou quinto final de minha existência. E espero que meu futuro seja tão brilhante quanto aquele dia de safari.

A seguir: Quênia e Tanzânia – O Lago Naivasha

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5 comentários em “Quênia e Tanzânia – Lago Nakuru, o paraíso da vida selvagem

  1. Prezado amigo Arnaldo,

    Nosso grande tradutor de emoções, memórias e sentidos. Obrigado !

    Me vi nesta tua frase lapidar:

    “Havia luz. Da boa luz de saltitar na retina e inundar o olhar. Aproveitei o que pude daquele azul.”

    Eu pude sentir novamente aquelas sensações da Luz das manhãs e madrugadas, quenianas e tanzanianas, ao tentar ver, tragar e prender os momentos mágicos.

    Você conseguiu até redigir os pensamentos e emoções. Maravilha !

    Machado de Assis tem em você um par à altura, na descrição bem tratada, meticulosa e intimista, desses momentos da vida.

    Adoro ler teu texto.
    Cada vez mais.
    Me ausentei das leituras em função de um cruzeiro de navio agendado há tempo…
    (Não esqueci de você no RJ ! Certo ?)

    Escreveria no privado, mas acho que o reconhecimento da qualidade pode, e conosco deve, ser público no nosso grupo.

    Deus abençoe, ilumine e proteja sempre essa tua memória, dedicação e emoções ao escrever.

    E prazer que se diz, certo ?
    Tenho prazer em ler teus textos, da mesma forma que sentimos o prazer que você tem em prepará-los e compartilhá-los.

    A vida segue melhor a cada memória boa revivida. Hoje minha vida ficou melhor, por conta dessas nossas memórias e da tua fértil, leve e grata redação.

    Obrigado meu amigo.
    Abraço fraterno!
    Abraços a todos!

    Curtido por 1 pessoa

  2. Mais um excelente post retratando o ambiente que compartilhamos na viagem. Prazer enorme em ler Arnaldo!

    Abraços

    Rogério

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  3. Se é possível que sua escrita esteja ficando ainda melhor, ela está, Arnaldo. Esse texto ficou extraordinário. Parabéns e obrigado por compartilhar!

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  4. Que sensação boa ler e lembrar de tantos detalhes significativos! Crescent Island foi excepcional para mim!

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