Quênia e Tanzânia –  Sobre homens e animais  

A Map of the World – Pat Metheny

A visita à aldeia Samburu e a exploração da reserva Buffalo Springs

Elas estavam ali, logo atrás da cortina que escondia a grande varanda. Faziam uma algazarra dos deuses, típica das andorinhas. Um estardalhaço. A sinfonia dos animados passarinhos acordou-me pouco antes do despertador. E lembro-me bem da escuridão no quarto, do momento em que o Sol ainda não despontou, mas já se anuncia. Minha visão levou segundos para adaptar-se à ínfima luz que passava por uma fresta. Eu percebia a tênue e morna claridade tentando entrar no quarto. E eu ainda não avistava, mas podia sentir a natureza selvagem da reserva Buffalo Springs. Pujante, absoluta, potente, nua e crua. Não sei dizer se eram meus olhos, se outros o sentiam, mas as cores da savana pareciam mais exuberantes, o céu mais azul, embora nem tanto o verde, que por aqui andava seco de dar dó.

Levantei-me. Não com a presteza que me caracteriza, mas com cautela. E como uma hiena solitária, decidida, mas sorrateira, com cuidado para não tropeçar no ambiente desconhecido, cheguei à presa, a porta da varanda. Pole pole!, como dizem em swahili – devagar, devagar! Assim entrou a paisagem no quarto e em mim, mas junto com ela um frio de bater no peito, como todas as manhãs experimentei naquele lado do mundo.

Embrulhei-me com a cortina e observei a paisagem apenas o rosto em exposição. A savana estava ali, embora não tão bela quanto ao calor do dia raiado, embora tudo o que eu visse fosse bonito. O alvorecer se anunciava com toda a sua beleza e magnitude, pureza e encantamento, proporcionava sensações, mexia com sentimentos. Mas eu não poderia apreciá-lo: não havia tempo a perder com contemplações. Nossos horários eram rígidos e meu senso de pontualidade logo levou-me ao banheiro.

Era nosso segundo dia de safari, embora nossa estreia não tenha sido assim um “dia de safari”, senão o da chegada à Reserva Samburu vindos de Nairobi, seguindo o caminho em seuterritório em direção ao nosso lodge, na vizinha Buffalo Springs, quase à margem do rio Ewaso Ngiro. Que lugar e que chegada!

O turismo, a grande oportunidade

Nossa manhã começou cedo, bem cedo, como de costume. Às sete e meia já estávamos dentro de nossos jipes levantando poeira a caminho de uma aldeia do povo Samburu, visita que daria um significado todo especial, humano, àquela viagem quase toda dedicada ao encontro com os animais selvagens e a natureza das savanas, das magníficas reservas do Quênia e da Tanzânia.

Lembrem-se de usarem máscaras, nos relembrou Márcio. São para preservar os samburu, não a nós. Daquele modo estaríamos ajudando a manter vivos os séculos de cultura de um povo guerreiro por história e pecuarista por tradição. Seminômades, alimentam-se de leite e de sangue das vacas no dia a dia, mais carne, embora ocasionalmente, e de legumes e tubérculos. São “primos” dos  Maasai, pois têm a mesma origem, mais ao Norte do continente, para os lados do Egito e Sudão e às margens do Nilo. Embora carreguem traços comuns, inclusive o idioma, têm lá suas diferenças.

Entramos num mundo quase de fantasia, que muitos surpreendem-se ainda existir de gente que custamos a crer conseguirem sobreviver em condições tão adversas e com tão pouco.  Vivem em pequenas aldeias de chão de terra, em simplíssimas casas de tijolos e ainda mais primitivas de barro. O chefe da tribo, fluente em inglês, nos recebe e coordena a visita à tribo e nos explica que ao final poderemos comprar o artesanato feito exclusivamente pelas mulheres. Nos mostraram como fazem fogo, alguns costumes, suas moradias e um grupo de crianças da escolinha local.

Doa-se dinheiro em espécie para a tribo e não há mesmo outro jeito de sobreviverem, sobretudo na época da seca, do que sem a ajuda do turismo. Sinto uma sensação de conforto em poder contribuir com a aldeia e reforço meu sentimento de um pouco de humanidade à nossa visita, algo que eu não imaginava experimentar antes da viagem, porque eu fora ali com uma ideia de que veríamos algo que o turismo subtraiu em originalidade.

O turismo é uma via de mão dupla, pode arrasar a personalidade e originalidade de lugares e culturas – com o de massa e o predatório – mas também favorecer a manutenção de povos e de animais, neste caso, com o turismo responsável e sustentável. seja pelas ações de doações de visitantes.

Seguimos nossa tarde de visita à reserva de Buffalo Springs, até chegarmos ao Uaso Bridge Gate, ou Portão da Ponte Uaso, ornado com uma bela pintura de pele de girafa e relativamente próximo ao Samburu Simba Lodge, onde nos hospedamos. Aproveitamos a não desperdiçável oportunidade de uso dos banheiros, ainda que tão precários. Revejo a placa homenageando a leoa Elsa, vista antes no outro acesso, o Arche’s Gate, observei os curiosos e interessantes ninhos presos ao teto do portão, de passarinhos que pareciam graciosas, animadas e barulhentas andorinhas.

Àquela altura eu ainda não sabia, mas aquele lugar seria marcante, dominaria meu pensamento toda vez que eu me lembrasse do Quênia. A partir dali, precisamente, estaria comigo para sempre, não só por todo aquele dia, por toda a vida. No meu imaginário não poderia supor que aquela experiência que ali começava, com nossa tão aguardada aventura de observação da vida selvagem, seria também uma jornada emocional. Claro que sobretudo pelo destino, pelas experiências, pelo aprendizado, mas muito também pelo grupo de pessoas que se integraram, se divertiram e tornaram tudo mais brilhante. Alternávamos os jipes todos os dias e os passageiros, o que possibilitou o aperfeiçoamento da integração, já que não se daria apenas nas refeições.

Passadas poucas horas depois da visita à aldeia samburu eu não imaginara presenciar tantos animais. As reservas são relativamente pequenas e pouco conhecidas, embora com abundância de vida selvagem e mas a pouca frequência humana possibilitam experiências muito mais exclusivas do que aquelas experimentadas nos grandes parques como Masai Mara e Serengueti ou Ngorongoro, o que torna ambas as reservas reconhecidas como entre os melhores safáris no norte do Quênia.

Avistamos zebras de grevy, girafas reticuladas, gazelas, antílopes, avestruzes somali, elefantes, entre outros animais.

Próximo capítulo – Lagos Nakutu e Naivasha

Quênia e Tanzânia – Samburu, A chegada!

The Bat, de Pat Metheny Group. Álbum Offramp – Grammy de 1982

A História de Elsa

Uma placa entalhada em madeira, um nome feminino em destaque. Pregada a uma parede do Archer’s post gate – um dos portais da reserva, ornado à pele de zebra – chamou-me a atenção. Dizia: “Em memória de Elsa, que ajudou a salvaguardar esta reserva de caça”.

Mais do que atrair, a placa levou-me anos atrás no tempo, com a surpresa do inesperado. Embora nenhuma outra referência houvesse, imaginei tratar-se da jovem leoa, cria órfã adotada como animal de estimação pelo guarda florestal George Adamson e sua esposa Joy, ativistas africanos da vida selvagem e conservacionistas nos anos 50. Não podia haver outra Elsa. Tem que ser esta!, pensei entre surpreso e encantado com o “encontro”.

Eu estava na casa de Elsa, da leoa que fez grande história no Quênia, na África e no mundo. Contada num livro que vendeu 5 milhões de exemplares, e mais tarde no filme Born Free – ou A História de Elsa – conta a vida da leoa criada como membro da família, que se recusou a mandá-la a um zoológico, destino de suas duas irmãs, ao resgatá-la de uma leoa recém abatida. Ainda que um animal de estimação, criaram-na para sobreviver na natureza.

“Nascida livre, tão livre como o vento sopra, tão livre como a grama cresce, livre para seguir seu coração” dizia a letra da bonita canção tema de Elsa no filme, cuja trilha sonora foi composta por John Barry. Vencedor de um Óscar, em 1966, época de minha adolescência, o filme ajudou a consolidar de vez meu desejo de conhecer esta parte da África. Era admirável que Elsa ainda estivesse tão fresca em minha memória, que tão inesperada quanto surpreendentemente tivéssemos nos “encontrado” ali…

Quando Elsa tornou-se adulta, os Adamson perceberam que chegara a hora devolvê-la à liberdade, esperando que pudesse sobreviver por sua conta. Tempos depois, a encontram e foram surpreendidos com um acolhimento muito especial. Meu Deus, quantas lembranças me voltaram da mente e, discretamente, me emocionaram.

Uma outra placa, ao lado da de Elsa, homenageia a leoa Kamunyak, que adotou um bezerro de oryx. Pronto! A apresentação da reserva Samburu estava feita, e de modo inesperado e romântico.  

A história inspirou milhares de pessoas a se engajarem na causa da preservação da vida selvagem e pensar que eu estava no território de Elsa foi uma auspiciosa introdução ao Samburu National Park. Hoje, anos depois de Elsa, a presença de leões continua a ser notável na reserva e eu estava certo de que o adoraria.

Para mim, fora uma estupenda graça. E livre, tão livre como o vento sopra, retornei ao tempo presente, com o Quênia vivo nos olhos e os ouvidos despertos por alguém me dizendo discretamente ao pé do ouvido:

Não há água nos banheiros!

A seguir: De Nairobi ao Samburu – Longe, tão longe e distante