Quênia e Tanzânia – De Nairobi ao Samburu

Love May Take Awhile, de Pat Metheny – Álbum From This Place

Longe, tão longe e distante _____________________________________

Pela janela do quarto avisto prédios e um céu azul tão brilhante quanto minha vontade de descer. Chegara, finalmente, o primeiro dia de viagem para as reservas, a etapa inaugural da jornada pelo Quênia e Tanzânia, de pegar estradas para um outro mundo, o das savanas e dos safaris. A manhã era calma e reluzente e, ao descer, noto que todos já estavam a postos em pontualidade britânica, prontos para entrarem a bordo de seus jipes na hora determinada por Marcio, nosso guia*, como ocorreu dali até o derradeiro dia da longa viagem.

Três jipes, doze brasileiros, dezessete dias, 2000 quilômetros, uma expedição de observação ao sabor da natureza selvagem, de filmagem e fotografia a bordo de Toyotas Land Cruiser. Os objetivos: a Grande Migração de animais no Serengeti, as Reservas Maasai Mara, a Cratera de Ngorongoro, as reservas de Samburu e Buffalo, o Lake Naivasha e o Lake Nakuru, além dos povos Maasai e Samburu.

Jambo!, disse Kaled, um dos motoristas ao encontrar-me no lobby do Pride Inn Azzure.

– Jambo!, retribuí com a mesma simpatia.

Assim, às 8 horas de uma manhã fresca, partimos com um único pensamento: o encontro com animais selvagens naquele mesmo dia, ao fim da tarde. A expectativa era grande, embora o receio de que ela não correspondesse à realidade fosse esperado, afinal, um safari não é uma visita a um museu, senão uma viagem ao imponderável, ao inesperado, no qual pode haver um abismo entre a expectativa do observador e a realidade da savana. Os animais não estão preocupados em serem vistos – ao contrário -, são tesouros escondidos focados em suas lutas diárias pela sobrevivência. Contudo, era promissor o dia e não havia por que não esperar por uma jornada terminada com grande satisfação pessoal.

A primeira rodovia que tomamos foi a Meru-Nairobi Highway e, pouco depois, já na A2, uma das novas chinese nighways, que passa por Kibirigwi, fizemos uma parada, a 120 km da partida, na Africana Curio Shop onde havia um providencial e inesperado café espresso tanzaniano, além de uma enorme loja abarrotada de souvenires. E wash rooms. Com água! O lugar era concorrido e diversos outros jipes com turistas estrangeiros estavam por ali com o mesmo objetivo.

Interessei-me pelos animais esculpidos em madeira, especialmente os de ébano. Madeira bonita, escura, pesada, resistente, das árvores encontradas principalmente na África.

Cuidado, gente! O que eles chamam de “ébano” pode ser madeira comum, pintada de preto, nos alerta Marcio. Da que comprei, só saberei com o tempo…

O destino agora era Nanyuki, com parada no Cedar Mall para comermos no surpreendente fast food Java House, para uma passada numa farmácia e visitas aos bons banheiros. Com água e sabão líquido. Nos divertirmos na mesa em que nos sentamos todos, consolidando a simpatia coletiva do grupo.

Comemos bem e seguimos estrada afora passando por Isiolo, sem pararmos, mas uma cidade tipicamente africana desta parte do continente mostrada às janelas, movimentada e com todo o tipo de comércio à beira da rodovia. Ali vi os primeiros tuk-tuks da viagem e lembrei-me dos que andei na Índia e na Tailândia, embora os daqui sejam mais arrumadinhos, ainda que levem além de pessoas, cabritos e outros animais domésticos.

Em pouco tempo estávamos com a savana à beira e lembro-me bem de que muitas vezes passávamos e as crianças sempre nos acenavam e sorriam. Eram acontecimentos banais, que se repetiam até tornarem-se costumeiros, contudo, sendo estes que, muitas vezes, transformam-se em momentos únicos. No caminho, à altura de Naro Moru, passamos pelo Monte Quênia, que embora encoberto parcialmente por nuvens, nos fez parar à beira da estrada para fotos. E uma sempre bem-vinda esticada nas pernas.

Dali foi um pulo até o Archer’s Gate, aquele da Elsa, um dos dois acessos ao Samburu National Reserve.

Samburu National Reserve – Um dia para não esquecer

Os três Toyota Land Cruiser 4X4 estacionaram assim que adentraram o parque. E nós, empolgados com o começo do safari de sonho, aproveitamos o tempo para idas aos banheiros, enquanto os motoristas davam curso na guarda do parque aos procedimentos burocráticos.

Começávamos de maneira brilhante a nossa aventura pelo Quênia ao fim da tarde daquele dia. Eram as primeiras duas, não as mais conhecidas, senão as reservas mais fora do caminho batido de toda a nossa aventura: Samburu e Buffalo Springs. A natural excitação era compreensível. Afinal, para a maioria de nós ali, um safari era uma viagem, única na vida, com um esplendor épico de vida selvagem. Para além dos animais, num local com histórias inspiradoras de conservação da comunidade do povo samburu e da vida selvagem.

As montanhas vulcânicas fazem pano de fundo no cenário de savanas entremeadas pelo granito de afloramentos rochosos e belíssimas acácias altas. Esguias, elegantes, de copas planas, são entre os símbolos mais icônicos, singelos, mas belos, que há por ali. São árvores guarda-chuvas, na forma e nos efeitos, pois protegem como sombrinhas os animais e, das chuvas, os que se abrigam bob elas e nos seus galhos. Atravessando a paisagem, o rio Ewaso Nyiro – terceiro mais extenso do país – em cujas margens abriga-se um oásis verde de grandes palmeiras-doum – ou gingerbread tree – cujos troncos se abrem em muitos. E uma vegetação mais baixa, alinhada com as beiras dos meandros do rio. O cenário é tão pitoresco que às vezes parece um exagero sugerido nas páginas da National Geographic ou do estado de espírito de quem o descreve. Desvia-se a atenção das árvores e encontram-se quase todos os animais que se imagine possa haver na África.

Ambas as reservas são um refúgio vital para a vida selvagem variada, contudo, particularmente de cinco animais especiais do norte: a zebra cinzenta, o avestruz somali de pescoço azul, a girafa reticulada, o curioso antílope gerenuk e o oryx de beisa. Para além de manadas de elefantes, de felinos em grupo ou solitários, de outros animais que somam-se às 450 espécies de aves catalogadas. Enfim, um grande lugar para começarmos nossos tão esperados dias de ação.

Apesar de sua diversidade, Samburu é um desafio para alcançar, devido à distância e às opções de parques e reservas mais conhecidas para quem tem menos tempo e disposição aos sacrifícios. Livre de multidões, sentimo-nos num lugar exclusivo – ao contrário do Mara e do Serengueti onde, por vezes, há mais jipes estacionados do que animais sendo observados.  concorrerá os encontros entre outros inúmeros jipes.

O lodge onde nos hospedaríamos seria o Samburu Simba, localizado no interior da reserva de Buffalo Springs, cuja bela vista para o rio, rodeado de natureza e com boas instalações, convertera-se num dos melhores alojamentos entre todos que ficamos. Para além das instalações, um pessoal prestativo e atencioso, uma comida boa servida numa grande mesa reservada e bem montada para nós, que acomodava a todos tinha toalhas vermelhas e velas acesas. Uma boa loja de suvenires e vistas espantosas completava com dignidade a boa hospedagem.

Assim que retornamos aos jipes, depois der irmos aos wash rooms sem água, começávamos nosso primeiro safari, no caminho por dentro da reserva até o lodge.  Seriam cerca de 25 km através das estradas de chão, cruzando, ao fim, a divisa entre as reservas Samburu e Buffalo Springs, o rio Ewaso Nyiro.

No três, ok? Um, dois, três…já!

O teto do jipe elevou-se com nossa ajuda ao motorista e, depois de acionada a trava de segurança, ganhamos um belvedere, o mirante móvel que fez a paisagem entrar no jipe, embora não a luz, contudo sim muita poeira. Tanta que entrava nos olhos, na garganta e, quem sabe, até mais adentro.

De olhos pregados às janelas e narizes colados aos vidros, sentimos o vento com a velocidade do jipe atenuar o calor. O filme de ação que trouxéramos na mente não começara, talvez, para alguns, apenas um pouco da beleza e romantismo de Out of Africa. Não se vislumbrava qualquer sinal de animal ou de civilização, senão um cenário ressequido pontuado por arbustos, que à minha ideia correspondia ao que eu trouxera na memória. Encerramos as intermináveis conversas da viagem para nos concentrarmos nas bonitas imagens da planície seca, cujas expectativas de encontro com os animais eram promissoras.

Os jipes percorriam os caminhos de terra e comunicavam-se entre si por seus rádios. Por vezes perturbavam bastante, devido à altura do som, ao ponto de, por vezes, ser necessário pedirmos aos motoristas para reduzirem o volume. As cores eram bem definidas e deixavam incrivelmente mais atraente a savana. Embora eu ainda não a avistasse, pensava sentir o cheiro de vida selvagem. Talvez estivesse ansioso demais e, ao dar-me conta disso, procurei controlar-me. Nada mais adequado do que receber naturalmente o que a África tem a entregar, por si, inesperadamente e ao seu tempo e jeito, do que o contrário.

O primeiro animal avistado foi um impala. Como em todas as vezes em que participei de safaris na África do Sul e na Namíbia. Eram de uma manada da espécie entre as mais comuns de antílopes africanos. Tensos e alertas, prontos para correrem ao menor sinal de perigo, são sempre graciosos e elegantes com seus chifres alongados. Cheiram o ar, abanam os rabos, olham e escutam com atenção tentando captar algum movimento ou odor suspeito, um predador. Ainda que não sejam os bichos mais cobiçados num safári, os antílopes atraem os felinos. Aquele primeiro encontro foi tão excitante parecíamos presenciar uma chita em plena caça.

Quase tudo o que a savana nos mostrava era explicado, e bem, pelos motoristas. A vida selvagem, a vegetação, as peculiaridades de cada lugar. Alguns com mais entusiasmo que outro, mas todos muito bem-intencionados.

São as Gazelas de Granti, informou nosso driver. Os “McDonald’s” da selva, petiscos preferidos entre todas as espécies de grandes felinos, concluiu e deu partida no motor.

Seguimos as estradas com os jipes levantando poeira e logo adiante avistamos um bando de lindas e saudáveis girafas. Lindas. Degustamos com os jipes parados o delicioso momento. De súbito o silêncio entre nós é interrompido por um alerta pelo rádio, dado pelo condutor de um dos jipes:

Haraka haraka!, disse Oburo, repetindo o que ouvira do outro motorista. Algo como “corre, corre!”, em swahili. “Elefantes mais à frente, nos avisou Wiki!”, completou, girando o motor e partindo. Sacolejando, passamos defronte a um grupo de agitados, ariscos warthogs, o javali africano, com seu rabinho apontando para o céu, até chegarmos ao lugar indicado.

A manada de dez elefantes de todos os tamanhos cruzava nosso caminho, bem pertinho de nós. O encontro foi encantador, sereno como o passo daqueles animais, apesar de os maiores terrestres do mundo. O momento foi solenemente admirado, como se àqueles animais rendêssemos nossas homenagens e agradecimentos pelo desfile de tanta formosura. Embelezados pela luz do quase poente, quando tudo fica mais quente e fotografável, seguiram seu rumo até o horizonte para depois os encontrarmos novamente já próximos ao lodge.

Continuamos e avistamos um jipe de outra expedição estacionado com seus passageiros de pé olhando na mesma direção. Nos aproximamos e presenciamos duas leoas deitadas bem próximas à estrada. Que visão maravilhosa! Eram os dois troféus para aquele dia que poderia terminar ali, ao menos para mim, com a sensação de plenitude da satisfação. Majestosas, saudáveis, bonitas, quase imóveis, ignoravam-nos solenemente enquanto observávamos sua respiração ofegante. Exercitamos a arte da paciência, algo que um safarista deve compreender como fundamental numa aventura do gênero. Perceber que um safari não é apenas a observação, fotografia e filmagem de animais, também observar seu comportamento e identificar seus costumes na natureza.

As leoas levantaram-se e placidamente caminharam para desaparecerem entre os arbustos próximos. Na Reserva Nacional de Samburu elas levam vidas quase solitárias. Consta que o leão africano desapareceu de 94% de sua área original, por diversos motivos, o que tornava aquelas duas fêmeas um prêmio inesperado ao fim do dia.

A tarde caía, a noite se anunciava e o lodge nos esperava em Buffalo Springs. Ou melhor, nós ansiávamos muito por ele. Atravessamos uma pequena ponte sobre o rio Ewaso Ngiro quando cruzamos com um enorme bando de barulhentos babuínos. Mais adiante, na margem de um de seus meandros, estacionamos para apreciar o primeiro pôr do Sol africano e alguns marabus. O rio fluia através de bosques das palmeiras duplas e de densas florestas ribeirinhas, apoiando uma população significativa de crocodilos e hipopótamos do Nilo, que no entanto não avistamos, pois àquela altura, no fundo do leito estava praticamente seco, repleto de pássaros em busca de alimentos e refresco no singelo filete de água. O astro rei pô-se no horizente às 18:45, momento em que minutos depois religaram-se os motores e seguimos para o lodge.

O Samburo Simba Lodge – Longe, distante, ermo

Uns oito empregados esperavam enfileirados os novos hóspedes descerem dos jipes.  Pegaram nossas malas e as agruparam esperando que as identificássemos para levá-las às habitações. Depois do check-in, ouvimos a gerente da Recepção passar o briefing do lodge ao grupo.

Fechem as janelas e portas. Cuidado com os babuínos, disse ela, a parte que me recordo da extensa lista de horários e funcionamento do lugar.

Superar expectativas é sempre positivo, e com a hospedagem não foi o contrário. A habitação era espaçosa, com cama king size, banheiro confortável, chuveiro mediano e ótima vista da varanda. Não havia tempo a perder: era preciso tomar banho, trocar de roupa e sentar à mesa à hora marcada para o jantar. A noite ali foi agradável, tanto pela refeição quanto pelo compartilhamento numa só mesa com todos e boas conversamos, pelo vinho mediano bem sorvido e pelo cansaço que me fez dormir o sono justo de um safarista entusiasmado. Agora era tempo de recuperar-me.

Eu estava pronto para ouvir o silêncio lá de fora.

____________________

Até o próximo capítulo: “Um dia inteiro de safari em Samburu e Buffalo Springs

* Nota: Márcio Lisa, da Photo Safari Expedições, criou, desenvolveu e nos acompanhou durante a jornada. https://photosafari.com.br/

Assista ao vídeo deste post

2 comentários em “Quênia e Tanzânia – De Nairobi ao Samburu

  1. Que capítulo legal! E o vídeo foi uma forma de dar forma ainda mais real à imaginação alimentada pela leitura e pelas fotos. Obrigado por compartilhar!

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  2. Que riqueza de detalhes, trazidos de uma forma leve e agradável de se ler. Um registro precioso desta viagem que, certamente, vou reler outras vezes.

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