A luz macia do amanhecer e a beleza morta no deserto
O alarme toca antes das cinco da manhã e me levanto surpreso com a disposição. Pouco depois, um funcionário do lodge reforça o despertar batendo à porta. Agradeço e respondo ao seu sonoro Good morning já pensando no café-da-manhã, atendendo à minha faminta circunstância matinal. Caminho, ainda sob o céu escuro, pela longa passarela de madeira em direção à outra extremidade, onde fica o salão de refeições. O desjejum nos esperava meia hora depois das cinco.

Chego pontualmente e já encontro todos por lá. Aparentemente, com igual disposição, ainda que não houvesse sol, senão estrelas no céu. A animação correspondia à minha, mas não à lógica da hora. Alguns good mornings e bons dias depois, um abraço nos garotos, um aperto de mãos em François, começo a pensar na sorte de integrar aquele grupo. Éramos desconhecidos até dois dias antes, mas bastaram uns sorrisos sincronizados, meia dúzia de atitudes e outra de palavras para horas depois termos boa afinidade e ótima conexão. “Uma sorte!”, penso eu. Um círculo de privilégios, concluo. Afinal, nem sempre é de me esperar que viagens em grupo funcionem com tal perfeição. Também era bom reconhecer a convicção coletiva: “escolhemos a viagem certa”, todos diziam à sua maneira. Era confortável perceber aquele prazer coletivo que impulsionava o meu. Vivíamos mais tempo dentro do jipe do que soltos em nossos lodges. Eram, ainda assim, boas as jornadas. Mal começavam de manhã, já empolgavam. Apesar dos “sacrifícios” – acordar cedo todos os dias, de madrugada em alguns e enfrentar longas jornadas de carro. Cedo já os víamos saciados como inesperadas, boas recompensas. O melhor da viagem, contudo, eu não sabia: os amigos que faria.
Se viagens são histórias para contar, penso no privilégio dos garotos Pedro e Gabriel. Que sonhos de viagens teriam? Pergunto a eles. “O que pensam de estarem na África em vez de na “Disney”? “Para a Disney todo mundo vai, quero ver é virem à África!”. A resposta bastou-me. Sair da zona de conforto da diversão garantida para um lugar como aquele, incomuns para a maioria dos jovens daquela idade, era um risco que bem devem ter calculado seus pais. Penso no que seriam suas boas possibilidades de relatos, na tal soma de aprendizados, experiências e marcas que levariam no retorno à casa. Avanço no tempo e consigo “vê-los” contando aos amigos suas histórias. Depois, volto muitos anos a uma realidade oposta a deles: quando eu tinha sua idade e os tempos eram outros, quando para mim, viajar era possível apenas na imaginação. Eu sabia bem fazê-las, com tal convicção que pareciam reais. Demorei para se tornarem possíveis. Trinta e tantos anos. Mas valeu (ainda que a primeira tenha sido um acampamento), pois foram boas as ambições e as conquistas. Tanto que ainda hoje espero nunca me aposentar dessa vida.
Entrego-me à refeição com apetite maior que a possibilidade de me saciar com o que havia. Espartana, tinha o básico, o que era possível àquela hora, preparada gentilmente por alguém da cozinha. Havia pão, manteiga, ovos feitos à minuta e café. Peço um frito. Como com apetite e tomo duas xícaras de café como se fossem as últimas da vida.
Deadvlei ao alvorecer

Dentro do jipe, enquanto aguardávamos François abastecer o bagageiro com as coisas do dia, aproveito para ler o Safari journal, caprichosamente impresso, encadernado, personalizado com o nome de cada passageiro, distribuído pela operadora Ultimate Safaris, com o itinerário e breve descrições das atrações de cada dia. Aquele começava com o título “Deadvlei antes do alvorecer”, depois, descrevia o roteiro com um texto inspirador: “Esta manhã você levanta cedo para uma excursão mágica ao parque. Antes do nascer do sol, para capturar imagens das dunas enquanto a luz da hora é macia e as sombras acentuam formas e curvas imponentes das dunas”.
Prova de que até na morte pode haver beleza – “Luz macia do amanhecer”, definitivamente era um jeito doce de nos fazer desejar estar tão cedo entre árvores mortas há mais de 600 anos, fotografar troncos e galhos quase petrificados, observar seus contrastes com o solo argiloso branco e craquelado, com as dunas avermelhadas, o céu azul e vestígios de uma planta verdejante que insiste em sobreviver naquela aridez. François entra no carro e Haroldo nos fala das atividades daquela manhã.
– Hoje ficaremos no deserto até o pôr do sol, um dos mais bonitos do país. Voltaremos ao lodge um pouco antes do almoço para aproveitarmos a piscina e descansarmos. Quem quiser, terá tempo de dar um cochilo. Depois da visita a Deadvlei comeremos um pequeno almoço ao ar livre, preparado por François, à sombra de uma frondosa acácia.
Logo em seguida François nos saúda com um Hakuna Matata! expressivo, simpático e alegre, típico de seu jeito de ser, com o qual já havia nos conquistado. Ajoelhado sobre o assento, olhava para nós calado esperando a resposta do grupo. Ou, quem sabe, aquele fora um teste para checar se estávamos despertos o bastante para compreender a mensagem. Em coro, devolvemos com um hakuuunaaa mataaataaa alongado e cantado que, dali em diante se repetiria por todas as manhãs. Penso na frase, popularizada pelo encantador desenho “O Rei Leão”, da Disney. No idioma swahili, significa “sem problemas”, ou “não se preocupe”, o que embora não me parecesse ter sentido no momento, contudo, era um jeito muito simpático de François nos animar com a expressão africana. Gostamos!
– Safari Mzuri!, completa François, um cara cinco estrelas. Bom safari!, em swahili, ele disse. Esta sim uma expressão tudo a ver com o que esperávamos. Já em marcha, Haroldo completa:
– Estamos para realizar uma das experiências mais notáveis de nossa jornada à Namíbia: a visita a Deadvlei e as fotografias do charco morto, que há séculos foi uma bacia de argila branca pantanosa, que em alguns raros dias por ano recebia água do rio, hoje um dos ícones do país, entre as paisagens mais inusitadas e incomuns do planeta. Eu mesmo não me canso de admirá-la, ainda depois de tantas vezes que já estive ali. Não me esqueço da emoção do primeiro encontro com Deadvlei e espero que o mesmo aconteça com vocês, diz Haroldo.
– A área é concorrida, continuou. Então, devemos nos apressar para chegar antes de outros turistas e fotografar sob diferentes incidências de luz, à medida que o Sol avançar, com a paisagem toda nossa. Estamos na baixa temporada, o fluxo de pessoas deve ser reduzido, mas quem chega primeiro percebe o quanto a exclusividade vale o preço de acordar tão cedo.
Chegamos nas proximidades do lugar depois de trafegar pela ótima estrada asfaltada do parque. Entrarmos, então, numa trilha de cascalho até chegarmos à areia. François parou o jipe e esvaziou os pneus antes de entrar. É técnica off-road, que aprendi quando praticava o esporte. Conta-se um minuto para cada pneu, a fim de que todos fiquem com a mesma pressão. Bem mais vazios, ficam com maior tração e distribuem melhor o peso do veículo sobre o terreno, reduzindo o afundamento e dificultando o atolamento.
Seguimos com o motorista acelerando forte até parar num descampado de areia, onde paramos. Havia apenas nosso jipe. Descemos e já pisamos na areia. Avaliei a dificuldade de ser vencido de carro, possível apenas por veículos com tração nas quatro rodas, caixa de câmbio com marcha reduzida e bloqueio de diferencial. Haroldo comandou a turma, pedindo que acelerássemos os passos e seguíssemos em bom ritmo.
Pela areia, apenas por ela, subimos e descemos pequenas dunas, numa caminhada de cerca de 500 metros que, para mim, aparentava ser mais longa. Não era uma odisseia, longe disso, uma travessia do Sahara, algo assim. Era bem razoável a dificuldade de caminhar na areia fina, mas reduzi meu ritmo e fiquei um pouco para trás do grupo, a fim de recondicionar minha capacidade cardio-respiratória. Eu estava bem, mas percebi a necessidade de retomar as atividades físicas que havia dois ou três anos antes eu deixara. Cheguei ofegante ao ponto onde se vê o charco de cima, todo o conjunto de dunas que o cerca, um entorno absolutamente encantador. Haroldo me espera para dar explicações.
– Deadvlei, do inglês dead e do Africâner vlei, – nome que significa algo com “charco morto” – há séculos foi vivo, pois em alguns poucos dias por ano recebia água do rio, na época das chuvas mais fortes, ocasionava cheias que se expandiam até inundar o charco, mantendo vivas árvores frondosas da espécie Acacia erioloba. Devido à interrupção do fluxo de água do rio Tsauchab por uma duna formada com o vento, o charco secou e a pequena floresta morreu. A falta de umidade na terra e no ar era tamanha que os troncos não apodreceram, ao contrário, se conservaram ao ponto da quase petrificação. Vejam. O solo branco e argiloso, composto de sedimentos que o rio trouxe, mas ficava escondido sob a água escura. Hoje não, ele contrasta com as dunas avermelhadas, a maior delas chamada “Big Daddy”, que chega a alcançar 350 metros.
Estávamos, sobre a duna baixa que interrompeu o fluxo de água do rio, a responsável pelo “desastre” natural. Como numa arquibancada, com boa e ampla vista aérea do charco. Não havia névoa, devido ao ar tão seco como só nos desertos e em Deadvlei. E mesmo que a luz àquela hora estivesse longe de iluminar com o dramatismo que a gente vê nas fotos, era ela que permitia avaliarmos, ao fim da jornada, a variação de luminância e contrastes que o movimento do sol proporciona ao lugar. Era a segunda razão de começarmos o dia tão cedo, mas só ali compreendemos seu significado e valor. Permanecemos entregues ao prazer da contemplação das curvas sensuais das dunas e das “poses” das árvores secas. A morte, expressa naqueles troncos, e na aspereza do solo, na maciez da areia, era um contraponto à vida das pequenas touceiras verdejantes, que tiram água para a sobrevivência captando a escassa umidade do ar da madrugada. Uma beleza devastadora.
Um grupo de turistas que acabara de chegar, ao contrário de nós que fomos ali primeiro para descer ao charco, optou por escalar a grande duna. Bom para nós, que ainda teríamos o lugar exclusivo, podendo contemplá-lo e fotografá-lo desde o começo da luz até o sol enchê-lo de cima. A subida da “Big Daddy”, imagino, deve gastar horas. Descemos com a primeira luz da manhã realçando a duna menor, exposta ao nascente, começando a mostrar seu brilho. Sua oposta – a “Big Daddy” – defronte a ela, ao contrário, estava obscurecida pela própria sombra. A paisagem começava a tomar as cores da Namíbia – laranjas, cinzas, verdes, azuis e marrons – e os troncos e galhos fossilizados retorcidos, a lembrar esculturas postas ali por algum artista, não uma espetacular obra da natureza.
Passamos por François, que sentado na areia, recostado num tronco de acácia caído, fora do charco, nos diz: “Este é meu escritório. Ficarei por aqui esperando vocês. Aproveitem! Mas não toquem em nada, para não afetarem a natureza.”

Chego ao chão firme da panela de sal e sinto alívio nas minhas panturrilhas, sofridas com a caminhada na areia fina. Entro e toco levemente no tronco da árvore mais próxima. Não resisto. Deslizo a ponta dos dedos e sinto farpas de madeira. Parecem agulhas. Fotografo a textura do tronco aproximando o zoom. A magia e a personalidade do lugar começavam a mostrar que aquele seria um dos pontos marcantes da viagem. Quero ir além do registro da beleza, mas aproveitar todo o potencial cênico e tentar produzir boas composições. Junto-me a Haroldo e ao grupo, que no centro do charco dava sugestões de enquadramentos.
– Vejam. Os arbustos verdes contrastam bem com a areia avermelhada. Este é um ótimo ponto para fotografia. Tentem enquadrar colocando pouco chão e céu, aproximando com o zoom o verde do fundo de areia.
Faço o sugerido, todavia, não gosto do resultado. Mostro a Haroldo, que recomenda: “Tire o céu e deixe uma pequena faixa de piso branco. O restante, componha com areia e aquele arbusto verde, mas o coloque do lado esquerdo da foto.”
Com novos ajustes, reenquadramento e orientação, disparo e mostro o resultado a Haroldo.
– Perfeito!, diz ele.
Percebo intensificar a luz. Ganho confiança e me destaco do grupo buscando outros enquadramentos. A maioria dos galhos começa a deixar de ser silhueta, coadjuvante no cenário, para tornar-se protagonista do charco, ganhando beleza com o sol em direção ao zênite, o popular “sol a pino”. Fotografamos com calma e sem interferência de outros turistas, recebendo o prêmio por termos chegado tão cedo. Os turistas que madrugaram como nós, para subiram a duna, começavam a descer em direção ao charco. Ao chegarem já havíamos visto e fotografado o bastante, e o lugar – até então só nosso – democraticamente era de todos. O retorno ao jipe foi com a sensação de ter vivido um dos melhores momentos da minha vida de viagens. Resumindo, a experiência e o que eu acabara de ver a muito além dos relatos e fotos de viajantes encantados.
O destino seguinte seria um campo sombreado por camel thorn trees (*) árvores espinhosas da Namíbia, através de uma larga trilha de areia. Lá chegando, caminhamos pelas proximidades entre novos, belos, inspiradores cenários, enquanto François arrumava a mesa para nosso piquenique.
(*) Vachellia erioloba ou Acacia erioloba, conhecida como espinho de camelo ou espinho de girafa, uma acácia nativa das zonas áridas da África do Sul, Botsuana e Namíbia. (FONTE: Wikipédia)
Continuamos juntos? Próximo capítulo:
Pic nic sob as espinhosas acácias do deserto
Parabéns! Lendo seu segundo relato da viagem consegui viajar novamente com você. Sua forma de escrever contando com tanta riqueza de detalhes cada momento vivido e suas lindas fotografías me deixaram cada vez mais com vontade de conhecer a Namíbia. Espero um dia ter a mesma oportunidade que os garotos Pedro e Gabriel tiveram, mas enquanto não tenho estarei aguardando os novos capítulos dessa viagem tão apaixonante.
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Obrigado, Adriana, pela visita e comentário. Um beijo.
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