Adeus, deserto, sublime deserto.

As mudanças do tempo são poucas, mesmo passados milhões de anos. Exceto pela estrada, nada me sugeria alteração; nenhuma pedra, resto de toco, toco sozinho ou punhado de areia. Tirando nós e o jipe, tudo pertencia ao deserto, àquele pedaço do Namib-Naukluft, onde faríamos nossa despedida brindando e fotografando o pôr-do-sol. Em breve, tudo seria inundado pela luz dramática e quente do crepúsculo e por um silêncio que só há no deserto. A partir de então, a noite, e aquele céu reluzente do deserto, comandariam o espetáculo.
Uma longa reta de asfalto negro corta a areia, o rio Tsauchab e os resquícios de vida verde grudados às suas margens. A estrada passa defronte à Duna #1 e assim que passamos por ela, saímos para a areia e estacionamos o carro num refúgio sob árvores secas. Desço do carro e olho para a duna, esquadrinho seus detalhes e entorno, exerço minha paixão pelas paisagens e a natureza, bons motivos para disparos incontroláveis da câmera.

O Cânion de Sesriem
Antes da Duna 1, estivemos no cânion. Um quilômetro de comprimento, 30 metros de profundidade, 15 milhões anos. Um desfiladeiro natural esculpido pelo rio em solo de rocha sedimentar de areia e cascalho. Uma hora bastou para o explorarmos bem, de ponta a ponta. Um pouco mais seria preciso se tivéssemos olhos de geólogo, pois é um campo curioso mesmo para os não espertos no assunto. Não chega a ser como as dunas – primeiras atrações de Sossusvlei – mas fica tão perto de seus caminhos que deixar de conhecê-lo é perder um fenômeno geológico diferente daquela paisagem de areia e dunas. Muitos o fazem, por desconhecimento ou porque o cânion fica escondido, quase invisível. Só o vemos chegando a pé e caminhando até sua borda. Ainda assim é preciso olhar para baixo 30 metros, com vertigem ou sem, para reconhecer tratar-se de um desfiladeiro. Caso resolva descer – não resistindo à curiosidade – com ou sem babuínos espiando o movimento do topo do cânion – a contrapartida será caminhar por um território geologicamente atraente, que apesar de pouco acessível, de sua aspereza e aridez, tem vida.

Para nós, o cânion de Sesriem fazia parte do programa. A descida foi fácil, bem mais do que eu avaliava observando-o de cima. Vai-se por um caminho de pouca inclinação e com uma escada na rocha ao final, no trecho mais íngreme. Já em seus domínios, uma história visual rápida da geologia da área se revelou. As paredes curvas mostram camadas sedimentares de 15 milhões de anos, quando o deserto Namib era menos seco. O piso é plano e a caminhada tranquila, não há com o que se preocupar. Os mais aventureiros, como eu, praticantes de escalada em rocha na juventude, até os 45 anos, não resistirão a subir em algumas pedras.
Há trechos em que ele serpenteia e se estreita, outros bem mais largos, até com árvores dentro. Nas paredes, buracos naturais são moradas de pombos, arlequins, corvos e estorninhos. A vida selvagem adaptou-se para viver naquele lugar inóspito, todavia bem menos que nas dunas, porque, afinal, ainda restam poças de água. Há pequenos lagartos, o besouro preto tok tokkie (sp de Onymacris), corujas, babuínos da savana (ou babuínos chacma, Papio cynocaphalus ursinus) e a pequena toupeira do deserto, (Eremitalpa granti), espécie de mamífero confinado entre as dunas e o norte, na Baía Walvis, um animalzinho próximo da extinção. Vimos um. Estava morto havia pouco. Um bichinho tão raro, tão frágil de dar dó.

A Duna #1
Um pano de fundo, um coadjuvante de grande efeito cênico que, desta vez não estávamos para subir, como a 45 e a Big Daddy. A Duna 1 não tem a sinuosidade sensual e as curvas de suas irmãs, mas tem lá sua importância no cenário. Para o terreno que a cerca – variações de areia, cascalho, seixos do leito seco do rio, alguma vegetação e boas possibilidades de encontrar um órix – tínhamos uns 40 minutos reservados, até voltarmos para o refúgio e o jipe, onde François arrumava a mesa com snacks africanos e vinho. “Por que será que desertos me encantam? O que há de tão cativante nesses acidentes geográficos, dos mais desoladores do planeta, e com tão pouca vida?”, penso.

O Pôr do sol
Chegamos ao ponto onde a estrada negra de asfalto corta o rio Tsauchab, próximo à Duna 1. O sol poente já se anuncia nas sombras da duna, mas ainda cintila forte sobre nossas cabeças. François estaciona o jipe num refúgio tranquilo ao lado do leito seco do rio. Resolvo explorar a área. Caminho primeiro sobre o leito de areia e seixos rolados de um rio resignado, um lugar morto pela mesma natureza, mas que sabe um dia ela mesma voltará a fazê-lo vivo, aguardando a efêmera água voltar a correr dentro dele. A paisagem é dramática como sempre no Sossusvlei, mas ali expõe vestígios de vida. É o que dizem as árvores que o rodeiam e não se atrevem a avançar um metro além do rio. Sabem que suas profundas raízes não encontrarão a mínima umidade que as mantém vivas com ralas folhas. Seguem, como tudo mais, o que dita a regra de sobrevivência no deserto, registram a permanente guerra entre a vida e a morte.
Ando com passos incertos, bamboleando as pernas na areia instável. Dói-me ver rios mortos. Ao menos posso dizer que cruzei mais um rio em África. E que não havia risco de crocodilos e hipopótamos, apenas um remanso, de pura areia e pedras roladas por torrentes passadas. Caminho, penso, observo e fotografo. Resolvo subir pelas pequenas dunas da margem e ouço Haroldo chamar o grupo para uma caminhada até a base da Duna 1. O rio fica lá, impávido. Sigo o grupo que já avança metros adiante de mim.

– Vamos! Aqui é possível encontrar órix. Temos mais uma hora até o pôr do sol.
No caminho, seixos rolados pretos denunciam: ali já passou um rio. A luminosidade, a despeito da tarde avançada, era de sol a pino. Mas era luz de qualidade, para fotografar e admirar enquanto batia na duna. A amplitude visual era tremenda, já a paisagem, nenhuma novidade. E de órix, só vimos marcas de sua passagem por ali: pegadas e fezes. Em verdade, eu nem esperava algo novo, especial e marcante para além do que já havíamos visto, pois a primeira parte da viagem, que se encerraria ali, já me completara no que eu esperava.

De volta ao jipe, François nos aguardava com uma pequena mesa arrumada. Snacks, vinho e suco para os garotos. Havia tempo para descanso. Me sento na areia, recosto numa árvore e sinto o prazer de contato pleno com a natureza. Areia, pedaços de madeira, galhos secos, folhas e seixos ao meu redor. Novamente me sinto parte, integrado, quase pertencendo ao lugar. Enfio os dedos na areia e fico ali, desligado de tudo, a olhar o deserto.
Viro o rosto para o lado, enfio a mão na areia e vejo um ponto ideal para registrar o pôr-do-sol. Ficava por trás de uma pequena duna, e de uma árvore seca sobre ela, o sol já se preparava. Os outros não vão longe, ficam por ali olhando em direção à Duna 1, procurando seus cenários para fotos. Olho minha câmera sobre a areia. Pego-a e a coloco no colo. Observo as marcas dos tempos cascudos que passou comigo. Penso que merecia mais cuidados meus, tenho pena de vê-la assim tão arranhada e gasta. Sopro e passo a mão. Volto à contemplação. Eu não media o tempo, mas queria que ele parasse por um tempo para eu melhos absorver o fascínio daquele lugar.

– Como vai, Arnaldo? Cansado?
– Nem tanto. Estou aproveitando a sombrinha e sentindo a natureza. Um pouco velho, talvez, para um dia tão intenso…
François estende a mão e me ajuda a levantar. Daquele modo, com sorriso, em silêncio, ninguém recusaria. Gentileza, generosidade e simpatia de sempre. Ainda que interrompendo meu momento antes de eu desejar que terminasse, paro a contemplação e reflexão e me ponho de pé.
– Gente, vamos brindar!, convoca Haroldo. Ao nosso último dia aqui neste deserto, encerrando a primeira etapa da viagem. O sol já vai se pôr. Amanhã seguiremos para Walvis Bay, vamos viver a agradável companhia do ar refrescante da área costal da Namíbia.
Pouco a pouco vamos nos reunindo defronte à mesa e François enche nossas taças. Depois as seguramos acima de nossas cabeças, em direção ao céu e contra o sol. Brindamos como sempre. François diz:
– Cheers! Saúde! Hakuna Matata! To you and to Namibia,“Land of the Brave!”
Talvez o sentido poético que eu via naquele pôr do sol estivesse mais em mim do que na paisagem, mas o tempo que passei ali a admirá-lo e fotografá-lo foi um dos mais marcantes de toda a viagem.
Depois, jantar na pousada regado a vinho tinto e cama. Um belo jeito de encerrar nossa exploração do magnífico parque Namib Naukluft, de Sossusvlei e do deserto Namib.
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Que pôr do Sol lindo. Dá vontade de ficar horas admirando! O Cânion e as dunas são de tirar fôlego, bem retratados em seu texto, de uma forma que os tornam tão espetaculares quanto as imagens. Parabéns!
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