NAMÍBIA – A caminho do mar, a última noite no deserto.

A caminho do mar_NIK3927
Nosso jipe nas areias do Atlântico, no Pelican Point em Walvis Bay: focas e pelicanos

Dias intensos, noites tranquilas ___________________________________________________

                  Lembro bem daquela noite. Eu só queria viver o momento. No mais completo e aprazível silêncio, na solidão do meu chalé, deitado na cama e usufruindo até onde eu pudesse os minutos que antecediam o adormecimento. A quietude era revigorante, contribuía a favor da sonolência, mas eu lutava pelo privilégio de ficar acordado no árido solo africano. O esforço era grande, o maior das três primeiras noites da fase inicial da viagem. Ainda eram vivas, dançando na mente, as imagens de cada momento. Voltavam com tal esmero, precisão e acuidade que pareciam as sensações que vivi. Da descida do avião – na chegada à Namíbia, no aeroporto de Windhoek – ao Pôr do Sol na Duna #1, poucas horas antes.

                 A viagem até ali estava perfeita e me contemplara com boa contagem de mamíferos, aves e paisagens de outro mundo. Meu corpo, em escombros, obedecia à superioridade da mente. Conspirava contra o físico um cérebro fervilhante, inconformado com a precocidade do sono. Viro a cabeça, pego o bloco de anotações e  escrevo palavras que temo perder, como um ensaio para esses parágrafos. Mesmo para um turista com afeição pela escrita, sempre pode ocorrer o imprevisto do esquecimento. Contudo, eu sabia: o cansaço e sonolência eram parte inescapável do charme daquela viagem, ainda que às vezes me parecesse chegar cedo demais, junto ao poente.

O tempo voa… parece que foi ontem, mas já estamos no terceiro dia de viagem… Falo sozinho no delicioso chalé do lodge enquanto olho para o céu galáctico pulsando em cada estrela.

             Temendo ser mal interpretado por algum companheiro do grupo cruzando meu chalé a caminho do seu, continuo no tema em pensamento. “O tempo passa mais rápido quando nos damos conta disso”, concluo em sussurros mentais.

         Neil Peart me vem à cabeça. O reservado, tímido e introspectivo compositor e baterista do Rush, lendário grupo de rock canadense, dublê de escritor de relatos de viagens e viajante dos melhores, em seu primeiro livro – “O Ciclista Mascarado” – descreve uma viagem de bicicleta pela África. Na introdução, diz que “se viaja à África Oriental pelos animais e para a Ocidental pelas pessoas.” Conheço ambos os lados do continente e não tenho porque discordar. Mas se conhecesse a Namíbia, imagino que Peart não erraria inserindo o país numa nova classificação, acrescendo à sua lista uma terceira categoria: “Viaja-se à Namíbia pelos animais, pelas paisagens e pelas pessoas.”

          Os animais. Vendo-os assim, selvagens, em liberdade e em sua saga pela vida, nos sentimos protagonistas de um documentário da National Geographic. Contudo, poucos pensam na Namíbia para safáris fotográficos, porque ali colado em suas linhas fronteiriças imaginárias fica a África do Sul, a super-potência do ramo. Mas se ambos são lugares igualmente perfeitos para realizar esses sonhos, a Namíbia é menos turística, ainda não perdeu autenticidade em nenhum metro de seus parques. Naquele terceiro dia eu já saboreava o prazer de ter visto bom número de mamíferos. E ainda havia os próximos dias, todos dedicados aos animais, às enormes possibilidade de ver leões, zebras, girafas, elefantes, rinocerontes pretos, avestruzes e hienas que habitam o Parque Nacional de Etosha. O parque alcançaríamos na terceira etapa da viagem, depois das focas e dos chacais, dos flamingos e pelicanos daquela tarde em Walvis Bay.

            Mas se é natural o imaginário coletivo da humanidade primeiro lembrar dos animais quando pensam na África, também é que, depois que qualquer indivíduo que goste de animais selvagens visitar o continente, reconhecer que apenas por eles não estará a faz justiça à fantástica e enorme massa de terra. E provavelmente também verá grudar em si, uma vez tocada a terra africana. Seja pela diversidade e pela beleza das paisagens, seja pelas possibilidades de experiências ou pelo patrimônio cultural e arquitetônico. Além de comida boa e de uma gente ainda melhor. Depois de experimentados cada um destes, a África passará a agir como uma imã, atraindo e trazendo os pensamentos de volta ao continente. Como fez com Peart, sujeito com quem compartilho alguns gostos comuns – motocicletas, aventuras, viagens e escrever – e que depois de se inscrever numa excursão de bicicleta – cujo título era o clichezíssimo “Camarões: terra de contrastes” – ao fim da estoica jornada, jurava jamais fazer uma “coisa daquelas” outra vez. Um ano depois, Peart voltava a pedalar na África, desta vez por Togo, Gana e Costa do Marfim.

             Mesmo com  pensamentos tão estimulantes, o sono me derrubou e a noite não se estendeu como eu queria. Apago o abajur do criado mudo, me aconchego com o travesseiro, fecho os olhos e respiro o ar fresco da última noite no deserto. Durmo escutando no celular a trilha sonora selecionada para aquela noite: Bill Evans. Tocavam Lucky to be me, My foolish heart, entre outras. Mal chego à terceira: durmo embalado por Peace piece, a lindíssima e sonífera canção(*). O sono me convoca, definitivamente, sem me dar tempo de desligar o telefone.

            Não acordo de madrugada. Sequer para o costumeiro xixi. Vou até as seis da manhã, estourando a bexiga, mas restaurado. E o celular, descarregado. Tocou Bill Evans, coitado, até morrer. Faço tudo o que é rotineiro depois do despertar e saio do chalé. De mala e cuia. Sinto um arrepio que vai da pele à carne, um frio do deserto que interdita involuntariamente meu bom-humor matinal. Despenca, como a temperatura, na mesma medida em que sobe a fome pelo desjejum. Adeus, Sossusvlei.

Orix blog(*) Clique aqui https://bit.ly/1XIR7aZ para escutar Bill Evans – Peace Piece – enquanto lê. Se voltar ao começo da leitura, ainda melhor. Boa viagem na música e pela Namíbia!

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Continuamos juntos? Próximos capítulos: 

Capítulo 6 – De novo a estrada. Do deserto à costa, pelo deserto

Capítulo 7 – Walvis Bay. Onde o deserto encontra o Atlântico.

Capítulo 8 – Okaukulejo. Parque Nacional Etosha

Capítulo 9 – Onkojima e o encontro com chitas e leopardos

 

 

Um comentário em “NAMÍBIA – A caminho do mar, a última noite no deserto.

  1. Cada dia mais essa viagem fica próxima do que sempre sonhei e seria maravilhoso ver. Tantos mamíferos, uma experiência única e emocionante tão bem descrita por Você ! Esperando o próximo capítulo!

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