EGITO – Kom Ombo e Edfu – Adeus à Núbia

Colunas do Pátio do Templo de Kom Ombo

Depois do azul do dia e de um pôr do sol encantador veio a magia da noite. Eu ainda não avistara o céu, mas o imaginava, e se fosse como tal, admirá-lo não seria escolha, mas destino. Haveria de ser tão soberbo quanto a natureza do Nilo? E tão elétrico, límpido, estrelado e carente de contemplação quanto o representado em minha mente, um Céu daqueles de ouvir estrelas?

Ora, direis, ouvir estrelas é perda de bom senso. Mas, sim, podem-se ouvi-las, como disse o poeta. Basta procurá-las num céu deserto e conversar com elas. E se toda noite possui beleza própria e seu tempo, se todo céu também nunca é o mesmo de ontem, aquele bem que poderia ser o poema que minha imaginação criara. Mas, se mesmo assim nada acontecesse como o inventado, a culpa seria tão só dela – minha mente criativa e sonhadora, a porta aberta para um romantismo que nem sempre se confirma na realidade. E se também não fosse perfeita a noite como fora o dia, um quase já me bastaria, de tal jeito que nem o frio glacial e o cansaço do corpo barrariam meu desejo de admirá-la.

No deck do navio talvez ela não fosse mesmo tão bela quanto a criatividade da mente, mas lá fora, sob o céu do Nilo, eu sabia que um mundo diferente, novo e curioso tomaria posse de tudo, dominaria o rio, o deserto e mais a gente que o estivesse a admirar. E posse não se daria só por estrelas, astros e satélites, também pela cacofonia de pássaros e insetos, o sussurrar gentil das folhas de palmeiras, um farfalhar de mato rasteiro e touceiras de junco ondulantes se esfregando às margens do rio, mas também de sons menores que só ouvidos atentos conseguem, como o cri-cri-cri dos grilos, as vozes quase inaudíveis de adultos, crianças e animais.

Naquele momento era a mente, com sua autonomia, quem me dominava, enganando o corpo fazendo-o suportar nos ossos um vento que já antes me congelara a pele. Alguns minutos depois, não sei quantos, já no limiar de minha capacidade de aguentar o frio por opção, encerrei a breve visita e a eterna procura por uma estrela mais brilhante. Voltei para o aconchego da cabine e dormi sob os agradáveis efeitos do cansaço, das lembranças de um dia fenomenal, de um jantar apetitoso e de meia taça de vinho tinto egípcio.

Ainda ancorados, despertei na manhã seguinte com a mente em sossego e a comodidade de uma noite bem dormida. De uma bela noite. E assim levantei-me para ir à janela espreitar o rio, como já de costume o fazia, contudo agora com certa intimidade. Em breve o navegaríamos até Kom Ombo e dentro do peito o coração saudoso daria adeus à Núbia para então, 45 quilômetros depois, rio abaixo desde Assuã, na sua margem direita, entre palmeiras e tamareiras, encontrarmos mais um belo templo faraônico.

Kom Ombo

Aos deuses Sobek – do crocodilo – e Hórus, com cabeça de falcão – o templo foi oferecido, embora parte dele também a Hathor – deus da fertilidade e criador do mundo – a Khonsu e a Tasenetnofret (a Boa Irmã) e a Panebtawy (o Senhor das Duas Terras). O templo é duplo, assim como sua entrada e os salões, que embora conectados, servem cada qual à sua divindade, tendo sido todos construídos no início do reinado de Ptolomeu VI, ali por volta de 180-145 a.C., cujo membro mais famoso da linhagem foi sua última rainha, Cleópatra VII, conhecida por suas habilidades políticas.

Assim que ancoramos saímos para a visita com o templo à vista, cujas colunas avistavam-se do terraço do navio como se brotassem da terra arenosa tal qual as palmeiras circundantes, mas, à medida que nos aproximamos da entrada, elas crescem e surpreendem-nos para converterem-se numa das atrações do templo, e torná-lo um dos mais cativantes da viagem, outro bom exemplo arquitetônico da civilização faraônica.

As colunas que capturam o olhar são parte da beleza do cenário, porque há também seus lindos capitéis, as arquitraves – vigas que se apoiam nos os capiteis das colunas -, as cornijas e os blocos de pedra esculpidos e gravados. Em alguns encontram-se os nomes de Ptolomeu e Cleópatra, mas por certo apenas depois de apontados pelo guia. Além do pórtico – ou pilon – tudo mais integra o típico exemplo de arquitetura egípcia antiga.  

O santuário duplo tem salas erguidas de forma simétrica, duas entradas, dois pátios, dois salões hipostilos[1] e dois santuários. No interior há um pequeno, esquisito santuário que expõe crocodilos mumificados. Mas é a parede frontal, com as figuras dos deuses Sobek e Hórus, e um texto hieroglífico com 52 linhas, seus destaques, um dos elementos mais impressionantes de todos os templos do alto Egito. Três antecâmaras levam à área interna do templo, onde as paredes são cobertas por relevos finos e em excelente estado. Mas quer saber o que primeiro a gente percebe assim que entra no templo? Egípcios escondidos atrás de uma pilastra à espera de turistas para fotografá-los em troca de uma bakshish.

O templo de Hórus, em Edfu

Voltamos a pé ao navio ancorado bem defronte ao templo de Kom Ombo, que em breve partiria em direção a Edfu, a 63 quilômetros dali, onde visitaríamos o templo de Hórus, considerado o mais impressionante de todos os templos próximos às margens do Nilo no trajeto entre Luxor e Aswan, parada fundamental de todos os navios de cruzeiro que fazem este roteiro ao longo do Vale do Nilo.

Behedet, em egípcio antigo, ou Edfu, como se conhece no resto do mundo, é uma das maravilhas do Nilo faraônico, uma construção tardia, isto é, do período greco-romano, mandado construir por Ptolomeu III e Ptolomeu IV, com adições posteriores. É um templo completo que inclui desde o pilone construído pelo pai de Cleópatra, no século I a.C., até o salão que precede o santuário de Hórus, parte final e mais importante deste complexo do Novo Império, que consagra o templo de Edfu um perfeito e completo exemplo deste estilo arquitetônico.

Uma vez na margem do rio, pode-se chegar ao templo Hórus – deus protetor das famílias e dos faraós – com facilidade seja por taxi, tuk-tuk ou charrete. Optamos por tuk-tuk e cruzamos a cidade poeirenta sob um frenético, intenso e energético movimento de transportes levando passageiros turísticos desde o porto ao templo, para visitarmos uma das mais bem preservadas obras dos tempos ptolomaicos no Egito, construído entre 237 e 57 aC.

Sua porta é enorme, tem 37 metros de altura e guardam-na dois falcões, o deus dos céus e dos astros, como sempre, com paredes inteiras ornadas com desenhos, esculturas e hieróglifos em baixo-relevo incrivelmente conservados, inclusive aqueles destruídos a marretadas, desfigurados por cristãos. Nas paredes internas do templo há representações da procissão divina de Hórus e Hathor, estátuas do deus falcão protegendo om portal de uma colunata e diferentes cenas de um faraó rezando ou realizando oferendas. No interior há uma pequena sala a que chamam de biblioteca onde guardavam-se rolos de papiros científicos e administrativos, com paredes adornadas de imagens iconográficas.

Próximo capítulo

Luxor e Karnak


[1] Hipostilo, palavra grega, significa “teto sustentado por colunas” de um grande salão.

5 comentários em “EGITO – Kom Ombo e Edfu – Adeus à Núbia

  1. Escrever é uma brincadeira bem engraçada, as rejeições ajudam porque fazem você escrever melhor; as aceitações ajudam porque fazem você continuar escrevendo. Parabéns pelo belo trabalho. Foi como ouvir cada palavra e muitas eu nem conhecia. Bjs.

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  2. E lá vamos nós! Em meio a tantos receios e dores, está nosso amigo Arnaldo nos levando para passear, exercitar o imaginário, viver o quase impossível para o momento e reconhecer as belezas desse mundo. Agradecer é pouco. Quem mais poderia traduzir com tanta verdade o romantismo de um passeio onde a perfeição do céu faz ecoar o som das estrelas? Ouso dizer que a descrição das paisagens e cenários são dignas de um ‘escritor – fotógrafo- viajante’ de ‘primeira classe’.

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  3. Que texto encantador e convidativo. Se eu não tivesse visto com meus olhos, correria para conhecer o Egito. E como esse olhar romântico torna a viagem e, por que não a vida?, mais agradável, interessante e emocionante. Parabéns pelo belíssimo relato e muito obrigado pelas memórias despertadas.

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  4. Arnaldo, não conheço o lugar que vc descreve, mas foi feito com tal riqueza de detalhes e fidelidade que parece que estou ali vendo aquele mundo. Acho que se eu for para lá estarei familiarizada com o lugar….rs. Gosto muito da sua maneira de escrever, pois além da descrição, percebo também a emoção causada pelo que viu.

    Acho que se um dia vc descrever uma comunidade carente ou algo assim, conseguirá fazer com que o leitor descubra que além da pobreza deva haver alguma magia por ali.

    Parabéns! Continue, sua memória é bárbara.

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  5. Querido Arnaldo, o seu post mais que convidativo é elegante, preciso, reflete o que viu e sentiu, nos leva junto nessa viagem incrível. A introdução é linda, sensível, poética até; fruto de uma mente criativa, sonhadora, mas pragmática sem deixar de ser romântica, de uma vivacidade que poucos têm.

    Parabéns!

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