EGITO. Karnak, Luxor e eu

Há canções, momentos e lugares

Sempre e para sempre, uma canção: Always and Forever

Muitas vezes viajei numa música. Acontece, e sempre que acontece é inesperado, as canções entram e asilam-se no coração e na mente. Algumas, até bem mais que melodias, tornam-se relações, e como as cicatrizes, permanecem sempre e para sempre, embora nem todas sejam veículos que carregam momentos e histórias; tenho mesmo muitas que marcam-me simplesmente por sua beleza e harmonia. Assim, desse jeito, sem outra pretensão, vão ficando no corpo feito tatuagem, sem dor, mas com a beleza da naturalidade, a delicadeza de um toque, embora com a profundidade de uma raiz. Não preciso desejo, assim com o elas não de intenção, para que no coração passem a palpitar e na mente a vibrarem, sempre e para sempre, umas levemente, outras arrasadoras, e quando acionadas por gatilhos emocionais ou pelo simples prazer da audição, voltam a emocionar. As mais antigas, em sépia ou preto e branco, as recentes, em multicoloridas lembranças.

São canções e não quaisquer, porque não é provável que no meu espaço mental se abra algum lugar para as cambaleantes, as que deixam apenas rastros ou, nem assim, até coisa nenhuma. Refiro-me às que incompreensivelmente ou com razões infinitas voltam da consciência trazendo fragmentos da minha vida, dando ainda mais beleza à existência. Se eu pudesse, agradeceria a cada um de seus autores, especialmente ao desta melodia – Always and Forevero tema musical escolhido para este post, composta por Pat Metheny e publicada em 1992. Desde então – e já na primeira nota – tornou-se a “minha” canção. Creio que seja uma ode ao amor mas, estou certo, foi feita à luz de uma sensibilidade invejável, um talento talvez superado apenas pela própria emoção do autor. Mais do que uma bela canção que vem marcando alguns dos mais belos momentos de minha vida, tornou-se uma companheira, como se fosse parte de meu destino, melodia que assim como tantos lugares que já visitei, sempre e para sempre me acompanharão na lembrança.

Uma data para não esquecer

Dezembro virou Janeiro e completei mais um ano de vida. Eu e ela. Sessenta e oito anos juntos, feitos um para o outro, falando com igual fluência a mesma língua. Ainda moleque dei-me conta da paixão e lhe propus união eterna. Jamais recebi sua resposta, contudo, persisto – resiliente – para a cada novo aniversário voltar ao pedido. Espero tocar-lhe um dia, que a relevância de minha profunda falta de gosto pela morte supere seu silêncio. Levo a vida, sempre dura – às vezes deliciosa, noutras hedionda – consciente de que vou morrer, não sei o dia, mas será a contragosto e levarei saudades da Bahia. E ainda que a morte não me cafungue a nuca, não ando por aí dando sopa. Ela sabe que seja lá quando for, ficarei tiririca da vida e tomarei as providências cabíveis.

Até aqui fiz minha parte: se existia algo que eu pudesse fazer, foi feito; se não, paciência. E se a morte achar que merece ser bacana comigo, conto com seu derradeiro gesto de boa-vontade: deixe que eu vá sem perceber ou, então, que não seja afoita, senão um tipinho desses impontuais. E se por acaso a sorte resolver estar comigo na hora, que o carreto que leva a gente desta para melhor esteja tão apinhado que eu fique para depois. Mas, quando chegar o irremediável “grande final, o dia do salto mortal”, que eu seja da morte um distante espectador.

Ao completar 68 anos de idade – embora ainda não arraste os pés, nem use bengala – sei que sou idoso, razão porque lembro-me como nunca das palavras do filósofo: “todo velho tem mais apego à vida que as crianças, sai dela com mais má vontade do que os jovens”. Rousseau estava certo. Penso nisso sobretudo aqui na terra dos faraós, que ao contrário de mim, acreditavam poder levar o que adquiriram na vida para depois da morte. Já que não, concentro-me exclusivamente em aproveitar intensamente a vida – “Que nem jacaré tomando conta dos ovos” – como disse o grande e saudoso “filósofo” João Saldanha.

Meu café da manhã foi assim, com estas intensas e arrojadas divagações que, embora estranhas, são de uma pessoa normal. Normal, ainda que não leia Paulo Coelho ou assista novelas. Podem acreditar, eu jamais frequentei a poltrona de um analista. Não sei bem se porque não acredito em psicanálise ou por temer que nunca me concederiam alta. Então, no desjejum, não precisei mais do que uma boa xícara de café forte, matar quem estava querendo terminar comigo – a fome – e refletir sobre a maravilha de viver. Logo a mente se ocupava da vastidão de coisas magníficas que há para se fazer na vida, entre elas, viajar. E, naquele dia, especialmente, o privilégio de conhecer Karnak e Luxor. Assim, após os dois milhões de caminhos que o pensamento tomou até chegarmos à entrada do complexo, meu aniversário já se tornara uma data para não esquecer, e pouco mais tarde, eu combinava a nova idade com a alegria e os prazeres do dia: a visita aos templos com adoráveis companhias.

Karnak e Luxor

Nada de investigações teóricas, de pesquisas históricas profundas ou leituras acadêmicas. Meu conhecimento era bastante básico, mas se resguardava na intenção de enriquecer-se com a prática da observação, vivendo a experiência da visita e o que dissesse o guia. Ambos os complexos me pareciam tão inspiradores, atraentes e fornecedores de experiências que não me dei conta de que marcavam o término de nossa viagem pelo Egito e do bom cruzeiro pelo Nilo. Nos ocupariam o dia com descobertas que jamais poderíamos supor, mesmo que antes as imaginássemos extraordinários.

Todos os turistas que faltaram aos outros sítios encontravam-se ali, agrupados ou dispersos, mas como em nenhum outro lugar no país. Nem mesmo nos espetaculares Museu do Cairo ou nas Pirâmides de Gizé. Na margem do grande Nilo, e cercada como sempre por deserto, Luxor é uma das grandes cidades da região, tem cerca de meio milhão de habitantes vivendo junto a um dos maiores museus ao ar livre do planeta. O sítio arqueológico remonta aos anos 3.200 a.C., embora apenas na 11ª dinastia tenha crescido ao ponto de tornar-se cidade. Igual a tudo ao longo do Nilo, é nas proximidades de suas águas que tudo acontece, cresce e prospera.

Há lugares que nem sempre correspondem às expectativas, e entre o que se espera e a realidade, alguns podem desapontar. No meu caso, para a felicidade deste otimista, encontrei muito maior número das boas e bem correspondidas expectativas do que o contrário, com o enorme complexo honrando a posição de destaque que ocupa no patrimônio faraônico, selando nossa visita com o sentimento de ter valido a pena tanta espera por visitar o Egito.

Logo à sua entrada, uma longa avenida ladeada por 1.350 esfinges conectava os dois templos, e depois uma nova rua, semelhante na aparência, embora menor e mais estreita, tinha igual impacto visual, conduzia ao indescritível conjunto, à fabulosa sucessão de pilons, obeliscos, estátuas, colunas, avenidas, ruas, templos e esfinges.

O encerramento da jornada foi sob um anoitecer encantador, como se não bastasse estarmos num dos mais belos templos egípcios. O som de um muezin numa mesquita vizinha fechava com chave faraônica de ouro nossa experiência memorável, selava com louvor a reputação do lugar, já bastante salientes.

Percebi, então, que os pensamentos matinais foram parte de um jogo da mente, um teste no qual ela pula de coisa em coisa até ter-me feito perceber o importante: o proveito que tiramos dela. E embora este relato seja de uma visita ao enorme templo da morte, à vida – a minha grande companheira de todas as horas – dedico estas mal traçadas linhas.

Deixo aqui o leitor sem mais palavras, com imagens dos adoráveis templos de Luxor e Karnak, lugares que hoje pertencem à parte especial da minha mente, reservada aos lugares mais encantadores em que já estive.

Próximo capítulo

Marrocos – Eternamente e ainda depois

5 comentários em “EGITO. Karnak, Luxor e eu

  1. Texto brilhante, que nos deixa a sensação de quase poder “tocar” a música proposta, a descrição do que ela representa e as lembranças que dela se originam! Mais um aniversário – dentre muitos que virão – comemorando em outro fuso e certamente em grande estilo. Desejo-lhe vida longa!

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  2. Uma crônica espetacular sobre a vida. Leitura agradável, com ares de divagação, que vai te conduzindo por entre os mágicos templos egípcios. Ouvi dizer que ainda houve um bolo ao final deste dia. Confere?

    Beijos,
    Mariana & Alcides

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  3. Viajando aqui nesta música linda, nas belíssimas fotos de um lugar que imagino ser incrível, e no seu texto que é uma declaração de amor à vida. Você, definitivamente, sabe comemorar aniversários! E que venham muitos ainda, e que você nunca deixe de viajar e compartilhar suas impressões e sentimentos. E que você continue vivendo intensamente a vida, porque, no final das contas, é isso que importa.

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  4. Sempre e para sempre ficará marcada em mim esta sensação gostosa e leve que é ler seus textos… ouvindo esta música linda.. bom demais! Regina.

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