Quênia e Tanzânia – Bom dia, Masai Mara!

O som do despertador foi uma intrusão dura na quietude de meu cérebro e de toda a cabana. Depois de uma noite de estrelas cintilantes com vistas para o Grande Vale do Rift – uma paisagem cinematográfica escandalosamente defronte à minha varanda – o sol acordou sem preguiça, embora eu ainda sentisse o peso da noite agitada pelos urros de hienas e rugidos de leões alarmantemente próximos de minha cama.

Nem preciso dizer que aquilo teria sido o bastante a qualquer um deixar de dormir, contudo era só o Masai Mara se apresentando selvagemente, como afinal eu queria e ele sempre o faz. Mas certos acontecimentos são o que fazemos deles, então, não foi exatamente uma batalha entre a minha vontade de viver o momento e a consciência de que eu precisava dormir, senão alguma indecisão entre convencer-me da necessidade de repousar ou deixar que a aventura me deixasse desperto.

Pela manhã as coisas se acalmaram, ao ponto de que eu nem me lembrava de outra em que eu acordara tão feliz por estar na África. Não, aquilo não fora um sonho, senão algo tão real quanto a serenidade daquela manhã, tão perceptível quanto a temperatura fresca sentida sob o lençol e tão notável quanto a minha fome e a vontade de comer o desjejum.

Levantei-me com os sentidos inteiros e levei a cara amassada até o espelho, sem saudades de casa. Pelo menos, ainda não. Comecei assim o preparo para a exploração do poderoso Masai Mara – o Santo Graal dos safáris no Quênia – nada menos que 1510 quilômetros quadrados de savanas habitadas por uma infinidade de tipos de animais. A visita a uma tribo Masai, na periferia da reserva, consagraria o sítio como um dos melhores para o visitante perceber os dramas das sobrevivências selvagens e humanas, onde a vida segue progredindo incessantemente, por vezes uma escolha entre matar ou ser morto.

Precisava de um café, o combustível que abastece meu vício, o que por ali, além de prazeroso, era tomado à mesa do desjejum com o grupo, uma alegria adicional renovada a cada manhã, coroando o fim do despertar, anunciando o começo das atividades do dia. No caminho da tenda ao salão de refeições, uma lojinha de artigos masai – com tecidos a bijuterias – me fez recordar que se eu não aproveitasse a hora, à noite estaria fechada. E, provavelmente, sem a zebra à sua porta.

Pronto! Café tomado e lembranças adquiridas, o que queríamos estava lá fora: o safari, ou game drive como costumam tecnicamente denominá-lo. Para ver os cinco grandes: elefante, búfalo, leão, leopardo e rinoceronte, os quais sempre haveria antes a sorte, porque de nós não dependiam os encontros.

Fosse lá com que nome ou para que animais admirar, os games eram sempre experiências fabulosas, presenciar a dura brutalidade da vida selvagem, de animais em bom número nos ignorando e seguindo sua sina diária entre comer e não ser comido.

Logo estaríamos em nossos jipes com os tetos levantados para vivermos aquilo que minha capacidade de descrever é mínima, mas de sentir, uma entre as maiores da vida. Apesar de que não estávamos na época da Grande Migração, eu já havia compreendido que ela não era tudo, que qualquer altura do ano proporciona encontros excepcionais. E não me refiro apenas aos óbvios mais de um milhão de gnus e zebras em busca de mato verde do outro lado do rio.

Deixamos o lodge no Mara Triangle em direção ao Masai Mara National Game Reserve com o sol ainda nascendo. Eram 6:45 e ele subia no horizonte em menor velocidade do que o avistava passando à janela do jipe. Em pouco mais de 20 minutos chegamos ao Portão Musiara, com alguém tentando vender um colar ou pulseira, que sempre comprávamos.

Dentro da reserva seguimos duas linhas negras riscadas no verde gramado, a que poderíamos chamar de trilha, por onde as rodas de todos os jipes tentavam se manter a fim de provocarem o menor impacto possível no solo. De tal maneira que às vezes até atolavam-se nelas, devido aos profundos sulcos que cavavam seus pneus no solo negro.

As linhas encontravam-se graciosamente no fim do horizonte, quando convergiam tornando-se uma só. Havia apenas pasto, e nem mesmo um só monte de térmitas – ou cupinzeiro. O cenário era o que nenhuma fotografia conseguira até então tornar mais fabuloso do que vivenciar. Olhei para a direita e depois para a esquerda, e até o fim da vastidão do parque, nenhuma outra igual avistei.

Em dez minutos encontramos os primeiros leões. Belíssimos animais adultos e saudáveis caminhando com seus pelos dourados reluzindo ao sol. Tão diferentes dos que nos acostumamos a ver em zoológicos, embora aparentemente um pouco magros. Ativos e tão próximos que pudemos ver suas presas afiadas e línguas pendentes, ouvir suas respirações. Sequer olharam para nós, nem mesmo com desdenho.

A curta distância, gnus inconscientes do perigo pastavam, enquanto uns espreitavam com olhos largos a superfície da vastidão. A natureza seguia seu curso e cada novo encontro se convertia no novo mais belo momento do dia: hipopótamos cochilando em piscinas não muito profundas, macacos bagunceiros nas árvores e no chão, elefantes, zebras, gnus, búfalos, hienas, chetas, topis, gazelas de Grant e de Thomson, além de uma riqueza inesperada de pássaros.

Com nossos olhos selvagens, atentos es exploradores, com a mentes inquietas, embora os corpos serenos, seguimos placidamente deslizando pela savana ouvindo o som dos pneus dos Land Cruiser no cascalho da estrada. Sentíamos uma brisa suave entrando pelo teto aberto enquanto observávamos o belo, límpido azul azulino. Mais adiante paramos diante de um lago onde hipopótamos com apenas os dorsos aflorados na água pareciam ilhas de pedra escura. Olhei para o espelho de água e ambas as imagens – a presencial e a imaginária – pareciam reais.

Continuamos na direção do campo de pouso Musiara por um ecossistema em que até um besouro parece essencial. Chegamos a uma pequena aglomeração de jipes e avistamos búfalos e leoas espreitando-os escondidas em moitas. A cena parecia promissora, desenhava-se o ritmo do que todos ali desejavam, sobretudo pela equipe de filmagem de algum Nat Geo num jipe e enorme equipamento filmagem sobre a caçamba de uma picape, esperando a sorte de registrar um ataque dos felinos.

Mas naquela manhã os búfalos estavam espertos, de modo que depois de muito tempo ali sem que nada mais acontecesse, decidimos seguir em frente por um lugar que se apresentava como microcosmo das reservas do Quênia. Para além dos numerosos gnus, zebras, antílopes e seus predadores, elefantes, girafas, hipopótamos e uma dezena de outros animais.

A velha ordem selvagem se renovava a cada dia ao alcance da vista, à meia-distância, no horizonte mais distante ou entre as árvores, num pasto alto, num arbusto à beira da estrada ou no chão próximo ao carro, numa chita solitária empoleirada, num leopardo sobre uma árvore, numa família de javalis atravessando freneticamente a savana aberta.

Cruzamos um pequeno rio e encontramos uma grande manada de topis. Depois, outra de búfalos e, mais adiante, uma família de hienas em volta e dentro de uma poça de lama. Seguimos os avisos do rádio e nos dirigimos até uma árvore solitária em cuja sombra descansava um leão igualmente só.

Afastava-se, sob o sol, em direção a um arbusto onde guardava uma presa que aquelas hienas tentavam roubar. Seguimos e avistamos elefantes, mais adiante um belíssimo leopardo em movimento e pulando sobre um pequeno lago. Nos aproximamos e o vimos bem de perto, ao ponto de notarmos uma pelagem intacta de um animal jovem e saudável.

Estávamos próximos à divisa do Quênia com a Tanzânia, onde o Masai Mara passa a chamar-se Serengueti. Estacionamos os jipes na margem queniana do Rio Mara, num dos pontos onde ocorre a frenética travessia dos gnus na Grande Migração, defronte ao Hippo Pool Viewpoint, onde avistamos a maior concentração daqueles animais. Descemos dos carros, passamos pela ponte Purungat até o Sekenani Gate e fizemos uma caminhada pela margem do rio, acompanhados de guardas armados, num lugar chamado Condado de Narok, a poucos passos do território tanzaniano.

Fizemos fotos no marco da fronteira entre Tanzânia e Quênia e seguimos até o portão Oloololo para sairmos definitivamente do fabuloso Masai Mara. Retornamos ao nosso ótimo lodge, de onde na manhã seguinte continuaríamos nossa jornada, desta vez em direção à Tanzânia. Um pôr do sol fenomenal, uma noite agradável, um jantar delicioso e muitas conversas sobre nosso intenso dia de safari encerraram nossa estada no Masai Mara. Saudades? Ora…

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A seguir – Dia de Estrada para a Tanzânia, rumo ao Serengueti

5 comentários em “Quênia e Tanzânia – Bom dia, Masai Mara!

  1. Já fazia algum tempo que não líamos os belos posts do Arnaldo. Melhor assim, lembrar aquela bela jornada a conta gotas. Obrigado Arnaldo!!

    Curtido por 1 pessoa

  2. Prezado Arnaldo,

    Grato por mais um belo texto.
    Grato pela mais linda foto de TODOS os blogs… kkkkkk

    Ter a oportunidade de vivenciar aquelas experiências e poder ler este teu texto, me faz ter vontade de rever essa viagem tão marcante.

    Ora junto a aquele nosso grupo tão especial e agora pela tua visão algumas vezes Machadiana outras vezes “à moda Eça de Queiroz”, me deleito com tuas inversões gramaticais de grande efeito descritivo e sensorial, nunca longe da norma culta e sempre próximo dos sentimentos mais precisos que saboreamos naqueles gratos dias de viagem.

    De fato, a África inspira, os olhos se enchem e a alma se refaz das novas emoções, mescladas com as experiências prévias e as expectativas dos próximos momentos.

    Grato pelo texto que nos faz reviver essas coisas todas, mas de forma melhorada e ampliada.

    Grato e feliz pela tua cortesia e amizade de sempre.
    Forte abraço
    JLD.

    Curtido por 1 pessoa

  3. Que delícia de texto…

    Uma descrição tão perfeita sobre o que foi vivido que me fez imaginar estar no grupo de viagem.

    Rendo-me ao seu talento, meu amigo. Poucos revelam essa capacidade de escrever tão deliciosamente os sentimentos.

    Obrigada pela ‘viagem’ e continue nos encantando.

    Curtido por 2 pessoas

  4. Descrição tão precisa quanto sensível, que nos fez reviver a semana que passamos percorrendo a reserva Masai Mara de sul a norte. Aquela semana habita nossa memória desde então. Sentir aquilo tudo de novo, como se fosse hoje, é particularmente feliz. Obrigado!

    Curtido por 1 pessoa

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