MYANMAR – As lagartas de Kyaing Tong

Myanmar

Você quer comer lagartas?

– Como assim? Você quer dizer “lagartas”, insetos?

– Sim, de bambu.

-Vivas ou mortas, Patrício?

– Fritas!

– Vou tentar.

O homem tira de sua bolsa um saquinho plástico com as lagartinhas de bambu fritas, compradas na manhã anterior numa banca do mercado de Kyaing Tong, que assim como as frutas desidratadas, são um petisco popular na região. A embalagem – fechada com fita adesiva, – não tinha rótulo ou qualquer inscrição. Eu não contava com algo como “Não contém glúten”, uma tabela nutricional ou coisas afins, mas não havia sequer o nome do produto, embora fosse evidente tratarem-se de legítimas lagartinhas, perfeitamente identificáveis. Estavam ali íntegras suas cabeças, tronco rechonchudos brancos e perninhas. Aquelas que um dia foram serelepes habitantes dos bambús das florestas do montanhoso estado de Shan, estavam prontas para serem degustadas.

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Vivas ou mortas? Fritas!

– Do que são feitas, Patrício? São só lagartas? Têm algum tempero?

Estávamos sentados numa mesa de plástico sobre o chão de terra diante da pequenina venda defronte ao aeroporto. Mesa, venda e rua eram as únicas por ali. De sorte que éramos privilegiados por termos encontrado vago o lugar. Eu, Patrício – meu guia por toda a viagem – e Sing – o camarada birmanês natural de Kyaing Tong que nos guiou pelas colinas até as aldeias – nos sentamos para esperar a hora do embarque.

Patrício coloca a embalagem estufada de lagartinhas sobre a mesa e pede uma cerveja. Examino as lagartas mais de perto, sabendo que terei que encarar o desafio. Então, já que “Inês era morta”, tanto melhor ele seria se eu estivesse bem informado. Recoloco a embalagem no centro da mesa e espero alguém tomar a iniciativa. Sing abre, despeja um punhado na palma da mão e com a naturalidade com que eu como amendoim salgadinho, leva à boca e saboreia. Não mastiga, apenas remexe e pressiona o conteúdo com a língua contra o céu da boca. E não demonstra reação. Me agrada observar o comportamento das pessoas, tentar decifrar o que sentem, e todo momento elas dão pistas do que são, às vezes mais do que suas palavras. Não identifico nada, apenas naturalidade. O que eu queria era imitá-lo, de modo que quando chegasse minha vez, eu também parecesse natural. Pego a embalagem e pergunto:

– Como se chamam?

– Non mai phai. São muito comuns nos bosques de bambu do norte da Tailândia, do Laos e desta região de Myanmar. Dizem que também na província de Yunnan, na China, mas nunca estive lá. Quando estão maduras, com uns 3,5 a 4 cm de comprimento, eles as retiram da parte ôca entre os nós dos bambús e depois as fritam. Os pa-yit kyaw (grilos) e os bi-laar (besouros) também são populares aqui.

Sing passa para Patrício, que despeja igual punhado na mão. Também o observo atentamente e sua reação foi discreta, não como a do colega, porque olhava para mim, dava uma luz sobre o que pretendia: me provocar, desafiar. Chega a minha vez. Eu estava confiante. Tomo um gole de Myanmar – a única cerveja do país – ele estende sua mão com o saquinho do petisco, olha em meus olhos e diz:

– Prove!

Soava como desafio, não uma ordem. E, ainda que eu não seja um viajante destemido, aventureiro intrépido, audaz desbravador, tenho lá meus medos, sou bom turista e não corro de desafios, mas também não tenho inveja dos que comem cérebro de macaco vivo. Me comporto como quero; sei que viajar é isso, mas também infinitamente mais que isso. Quero dizer, na medida do possível (e de minha coragem), provo de tudo, mesmo nunca tendo me atrevido a comer insetos nem achar que precise. Além de repulsivos, penso conterem parasitas. Ademais, sempre que os vejo imagino aquelas patinhas cheias de farpas agarrando na minha garganta e que não haverá jeito de desgarrá-los. Contudo, aquelas lagartinhas não eram insetos, e bem me lembravam as do Brasil, maiores e mais gordas, chamadas gongo, tapuru, coró, morotó, fofó, boró ou bicho-do-coco, com a diferença de que aqui comem-nas vivas na floresta amazônica. Mas, como todo instante deve ser vivido intensamente, porque é irrepetível, resolvo fazê-lo.

Sem mais delongas, despejo um pouco na mão, a quantidade certa, medida antes com o olhar decifrador para Sing e Patrício. Aproximo o punhado do nariz e tento sentir o cheiro. Me preparo para engolir e olho para Patrício. Seguro o copo de cerveja com a mão esquerda e com a direita jogo as lagartinhas para dentro da boca como se fossem farinha. No primeiro instante não sinto sabor, logo depois, do óleo em que foram fritas. A textura era boa, seca e crocante, mas não o gosto, quase insípido, não fosse o óleo. Percebo olhares e expressões curiosos, então faço da espera algo positivo para mim, já que em minha boca iam bem as bichinhas. Com certa surpresa, depois regozijo, percebo sorrisos no partido que tiro.

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Os buracos entre os nós do bambu para retirada das larvas

Não têm muito sabor. Devem ser melhor de comer cruas e vivas, talvez temperadas com sal e umas gotinhas de limão, como saboreamos ostras frescas e vivas no Brasil ou as lagartas do coco. Fritas elas perdem o gosto.

Sing sorriu e disse:

– Quer levar pra comer no avião?

A manhã ensolarada ainda tinha frescor. Eu estava na segunda cidade de um roteiro que começara dois dias antes na Capital, Yangon, e as aventuras ali consistiram em dois dias de trekkings de seis horas cada, através das encostas rurais, por lindos campos de arroz cintilantes e plantações de chá, a fim de visitar aldeias de diferentes etnias, de povos animistas[1], a residência de um xamã [2] de uma importante aldeia e como vivem. Eu estava comendo lagarta, tomando cerveja quente enquanto esperava o pouso do turbo hélice da Air KBZ pousar no terminal muito simples, quase um casebre de paredes caiadas, para irmos até a cidade de Heho, porta de entrada para o lago Inle

Eu sentia saudades das experiências vividas, da comida deliciosa no mesmo lugar por duas noites, única opção de restaurante “chinês” que ficava numa rua residencial escuríssima, iluminada por postes de luz a cada cinquenta metros. A cozinha improvisada na garagem da casa era comandada por duas senhoras. O “salão” de refeições ficava do outro lado da rua: a calçada. Com o lago às costas e o pagode Wat Jong Kham na colina à frente. Duas mesas com quatro cadeiras sob uma árvore, de noite sob um breu iluminado por uma gambiarra de lâmpadas de 15 velas. O cardápio tinha pratos de comida chinesa com influências birmanesas, tudo a convenientes quinhentos metros da espelunca em que eu dormia.

O cardápio, sobre as opções e perguntando à moça que servia do que se tratavam. As respostas eram curtas, mas tinham um poder tão encantador quanto o da decifração dos textos egípcios por Jean-François Champollion: pork, chicken, noodle, vegetables, eggs.

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O pagode Wat Jong Kham e o lago de Kyaing Tong

Eu olhava para trás, no tempo, uma ocorrência psicológica que naquele momento me afastava do espaço que dividia com Sing e Patrício. Meu pensamentos me levaram a recordar o que me trouxera a Myanmar, escolha antiga, mas decisão tomada um ano antes. Eu estava tranquilo esperando o avião enquanto andava pelos pensamentos, mas começava a me tomar a impaciência, porque dali em diante o tempo gasto na espera me parecia perdido. Insisto no relógio, ansioso com a chegada do avião e a partida, ainda que não houvesse chance de perdê-lo, pois ainda estávamos a 30 minutos da hora da partida e o avião ainda em voo.

– Não é hora de irmos?, pergunto a Patrício.

– Ainda não. Quando ouvirmos o avião se aproximando, pediremos a conta. Estamos a quarenta metros do portão e já providenciei os cartões de embarque e o despacho da bagagem.

Aproveito a proximidade da hora do embarque e me despeço agradecendo a Sing, o guia especializado e indispensável para as visitas às tribos das colinas de Kyaing Tong. Era um camarada pacato, inteligente, educado e atencioso, que tornou a experiência nas tribos ainda mais rica, o que eu não compreenderia se estivesse só.

– Obrigado. Jamais esquecerei desses dois dias aqui. E além da memória, levarei tudo no coração.

Um abraço sela a despedida. Ouço o ruído do avião se aproximando do pouso e o impacto é instantâneo. Fico perplexo com a reação, a ansiedade acelerando o coração. É gênese do meu cérebro, nada além, e sempre que posso, tento escapar dela. Às vezes consigo. Me desola a convicção da inutilidade de uma situaçãomtão previsível, ao mesmo tempo condenável por minha autocrítica. Reflito, então, que se estou na terra do budismo, deveria pensar na prática zen, deixar passarem os pensamentos e buscar no enigma da consciência a paz, a fim de enfrentar agitações desnecessárias, permitir – na intimidade da consciência privada, quando um lado do cérebro discute com o outro a relação – o autocontrole.

Dou o último gole, pago a conta, levanto-me e caminho à frente de Patrício enquanto ele abraça o amigo. Entro no terminal desviando das mesmas galinhas que por ali circulavam na chegada. Espero Patrício, que logo atrás caminha ao meu encontro sorrindo. Num ritmo zen.

– Quer ir na frente, Affonso?, me pergunta sorrindo. “Quer seu cartão de embarque”, conclui.

– Você está certo. Obrigado por me trazer a tranquilidade. Rimos juntos e partilho com ele meu encantamento com os três primeiros dias em Myanmar.

A espera foi nada. Estamos entre os primeiros a entrar no avião. Tomo assento e com a porta ainda aberta sinto o último ar de Kyaing Tong. O embarque foi expresso e assim logo partimos, cinco minutos antes do previsto. “Tempo a mais para estar no lago”, penso.

Momentos depois, olho pela janela e vejo a cidade ficar pequena e para trás. Minha íris se enche de azul, de verde e de nuvens esparsas. Sinto prazer. De estar vivo, ter estado ali, escolhido aquela viagem e por reconhecer a magia que só elas me proporcionam. Deixo um bom pedaço de mim por ali…

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[1] Animismo: termo usado na antropologia da religião, é uma visão de mundo em que entidades não-humanas (animais, plantas, objetos inanimados ou fenômenos) têm essência espiritual. A crença de alguns povos tribais indígenas surgida antes das religiões mais organizadas. Animismo não é uma designação dada pelos povos que o praticam. Fonte: Wikipédia

[2] Xamã: portador das funções religiosas no animismo, pessoa que “entra” em outros mundos e tem contato com seus aliados (animais, vegetais, minerais), ou seres de outras dimensões, espíritos ancestrais. Um sacerdote ou sacerdotisa que, em transe nos rituais xamânicos, manifesta seus poderes invocando espíritos da natureza e incorporando-os a fim de receber orientações e ajuda para resolver as situações que desafiam as pessoas de seus grupos sociais. Fonte: Wikipédia

A seguir

MYANMAR Capítulo 2 – Yangon, o primeiro sabor birmanês

Myanmar (encerramento capítulo)