Sevilha – Capítulo 1: O céu não estava azul

Refflejo de la Luna– Paco de Lucia
Sevilha com névoa, vista do topo da torre La Giralda

Sem nuvens correndo, nem vento. Quieto, mas eloquente. Mesmo não transbordado em azuis – daqueles de encher os olhos ou um quadro de Van Gogh – eu não o avistava cinza, e nele ainda havia muito para se admirar. E era aquele, afinal, que nos recebia. Eu quase gostava dele, embora não fosse de pintar, cantar, descrever ou poetizar.

Às 9:20 da manhã, com o pouso quase feito, numa olhada pela janela do avião, estava encoberto, mas embora assim, por uma nebulosidade aceitável. Por favor, não me leve a mal, você sabe que eu não gosto de dias nublados e que turistas também não os engolem muito bem. Em viagens, esperamos todos por dias azuis e com a beleza da luz. Assim como são de esperar os de agosto em Sevilha, que se prolongam até quase às dez da noite, com uma beleza e funcionalidade tão úteis quanto admiráveis para os que viajam. Não chego a aplaudi-los como os cariocas de frente para o sol no Arpoador, mas como os desejo! Dentro de mim sempre haverá um céu azul a desejar.

Pouso feito, no saguão do aeroporto já sentíamos na pele a proximidade da costa africana e a intrusão do Saara na Península Ibérica. Uns 30 graus àquela hora. É assim mesmo em agosto, o Sol parece morar em Sevilha. A vida toda. E o calor, vir de Marte. Não parece humano, nem terrestre.

Nosso lugar por duas noites, no Bairro Santa Cruz, nos deixava bem próximos das atrações mais estreladas da cidade, do museu de coisas extraordinárias que há em Sevilha, de seu conjunto icônico e nítido de imponentes edifícios mudéjares, góticos, barrocos, que em maior parte atraem e seduzem o visitante, embora, em primeira hora, nos cativasse o aconchegante quarto do hotel.

Quarto de bom tamanho, de espaço bem aproveitado, com cortinas espessas para a privacidade, embora lá fora apenas uma insuspeita igreja nos espreitasse. A boa cama com lençóis ainda esticados era um convite que encaramos com naturalidade, cuja sensação de querer usá-los depois de um longo, embora confortável voo transatlântico, creio deva sentir todo ser humano viajante que atravessa fusos horários. Malas depositadas, algumas roupas retiradas, abrimos as cortinas e a claridade da rua já não mais filtrava a luz do sol, entrava por tudo, por nós, nos impulsionava. O reconhecimento da habitação foi ao banheiro e nos mostrou toalhas dobradas e um chuveiro muito atraente esperando por um banho reconfortante.

Pela janela do quarto

Aprontamo-nos logo. Nos chamavam a nitidez das ruas, a precisão do olhar, a dimensão da realidade. Foi bom, e sempre é, imaginar um lugar, embora por mais que o façamos bem, nunca se consagra como vivê-lo. É algo assim como contar e escrever. Então, ouso dizer sem modéstia, que em minha espiada à janela, as calles pareciam prontas e esperando por nós, e que por assim estarem, como reconhecimento, desejávamos destinar-lhes nosso melhor, toda a atenção, até à raiz dos cabelos, embora a cama e o jet lag ainda nos convocassem. Não demos chance à dúvida da espreguiçada e nos preparamos para o dia de caminhadas. Me sentia imensamente bem regressando a Sevilha, como se fosse a primeira vez, embora a quarta, porque sempre há coisas já vistas que mostram novos elementos quando reencontradas, e novos jeitos de vermos o que já conhecemos. Estávamos inteiros para as ruas e sabíamos que a noite aqui seria doce, o que nos confortava e impulsionava às ruas com um gostoso desejo tardio pela cama.

A Juderia

 Entre laranjeiras e azulejos, no labirinto de dobras e quebradas das calles da antiga juderia – o bairro judeu em terras de mouros – por caminhos estreitos e tortuosos, fomos primeiro às Setas de Sevilha – ou Metropol Parasol – uma construção de madeira na praça La Encarnación, bem próxima de nós. Compramos chips para nossos celulares e nos conectamos em 5G a nós e com o mundo.

Las Setas

Depois, caminhamos em direção à Torre del Oro – às margens do Rio Guadalquivir – e, então, à Maestranza, plaza de toros mais antiga da Espanha. Para amanhã ficarão os tesouros mais desejados de Sevilha, cidade abarrotada de preciosidades mouriscas, mudéjares, maneiristas, renascentistas e barrocas como os Reales Alcázares, a Catedral La Giralda, o Arquivo Geral das Índias, a Casa de Pilatos, a Torre la Giralda. Depois, à bela Plaza de Espanha com o céu cinzento e pingos de chuva. Lembramo-nos do que nos dissera o motorista que nos levara do aeroporto ao hotel: “Nunca chove em Sevilha em Agosto” e rimos de sua furada previsão, sentindo alguns pingos parrudos caindo do céu sobre nós.

Torre del Oro

Apraz-me voltar a Sevilha, e embora já não me sendo mais cidade estranha, ainda que não tão íntima quanto foi a João Cabral, poderia até viver a aventura de “perder-me” na Cidade cítrica – como a poetizou Melo Neto. Mas não, precisávamos andar com sentido e mapa, pois foi viagem planejada ao pormenor, devido ao pouco tempo. Era viagem nossa, assim como o tempo, mas este era pouco e de nada me serviria perdê-lo. E o tempo, em viagem, sempre me parece naturalmente que mal dá conta.

O percurso de quatro quilômetros tortuosos foi acompanhado pelo Astro Rei com toda sua força andaluza, sua claridad invasora num céu vivo, pronto a assassinar os transeuntes. Surpresas nos esperavam. E nós por elas. Contudo, em Sevilha há algo invisível, talvez os duendes citados pelo poeta espanhol Federico Garcia Lorca, o menestrel da Andaluzia, que não sei ao certo. Talvez sejam eles que animem e impulsionem meu espírito poético e romântico ao escrever estas linhas e, para além, me façam compreender o motivo por que esta cidade produziu tantos grandes poetas.

Plaza de Toros Real Maestranza de Sevilla

Embora eu não os veja – os duendes, não os poetas – percebo no ar o que sugeriu sua existência, pois parecem mesmo escondidos por toda parte. Embora não concretos, aparentes, expostos, dizem que eles costumam guardar em si o poético mistério da cidade. Daqui, com estes meus olhos de setenta anos, já os “enxergo” sem problemas, apesar de um antimístico convicto e orgulhoso.

“Nunca chove em Sevilha em agosto”…

Dizem que para além dos duendes de Lorca há lendas nos labirintos de Santa Cruz, e que basta mergulharmos em seu traçado complexo, às vezes impossível, para que se revelem sob a agradável sensação de que o tempo se detém, que a descoberta de preciosidades – como o barroco Convento de Los Venerables, surgida como uma aparição depois de passarmos por ruas tão estreitas quanto inimagináveis -, nos faça desembocar na rua mais estreita da cidade – a Rua dos Beijos, ou Calle de los Besos. Que cidade tem uma rua com tal nome? E a história dos duendes? Parecerá exagerada depois da caminhada pela juderia em meio às casinhas típicas sevilhanas e às plazuelas? Entre fachadas de sobrados que muros altos proíbem, mas sombreiam as ruelas no verão inclemente? E janelas com persianas externas rústicas, de enrolar, de madeira, usadas para sombreá-las?

Há pouco som, o cheiro é agradável e a brisa nenhuma. Agosto vai em meio, o Sol quase lá, mas nem é preciso olhar o termômetro para senti-lo feroz, seja na pele exposta ou na coberta. A manhã não é mais pura, já esbarra na tarde e o calor exige sombras, chapéus e goles d’água para a sobrevivência do transeunte.

Caminhamos a par e de vez em quando eu sentindo minha ansiedade desejar dizer-lhe: “Estás gostando?” Bom mesmo seria pararmos para umas tapas e perguntar-lhe, olhos nos olhos, entre um gole e outro de vino rosado. Não seria uma façanha, pois é mulher de bom gosto e personalidade, difícil de agradar com superficialidades. E embora Sevilha, queira ou não, abrace e contamine como germes, bons germes, nem todos os pegam. Daquele momento em diante deixei que tudo corresse com naturalidade, embora intimamente desejando que acontecesse como com Istambul, onde nossas energias e gostos se comunicaram tão bem, embora de maneiras e em tempos diferentes, mas às vezes fundindo-se surpreendentemente. Deixei que o redemoinho de tudo o que estava por vir, viesse. E, quem sabe, de lá saísse concordando com o poeta, porque quem a visitou e leu J.C. de Melo Neto, haveria de concordar que Há que sevilhizar a vida. Há que sevilhizar o mundo.

Paramos para comer num restaurante encantador. Nos sentamos entre turistas e turistas. Locais eram garçons e cozinheiros. Comemos tapas e bebemos sangria fresca. Tudo delicioso. Como Sevilha, que é sempre uma boa história, que acaba, mas nunca termina.

Seguimos nosso destino, turistar. Com prazer, que embora com sentido, direção, sem perder-nos, pela beleza das ruelas inesperadas, entre gradis de ferro bem trabalhados, vasos de plantas nas janelas, floreiras presas às paredes, chafarizes, azulejos, bancos e jardins, por meandros como se fossem rios, ruas com nomes ora históricos, ora românticos como Patio de Banderas, Callejón del Agua, Calle Vida, Susona, Pimienta, Lope de Ruda, Santa Teresa, Rodrigo Caro e Santa Maria La Blanca, enfim, como disse o poeta, por “lugares todos ao alcance do pé”.[1]

Sangria

Eu não sei se ruas podem ser denominadas assim sem incorrer em exageros, mas essas de Sevilha me parecem ter saído de dedos com boa dose de graça e nomeadas com o coração e imaginadas para caminharmos a escutarmos os próprios passos, não sentirmos o passar do tempo. Que resultado esplêndido!

Entre as ruelas que percorrem o bairro como se fossem rios, o túmulo de Colombo e o berço de Velásquez e de Murillo, com cheiro de laranja e gosto de azeite, entre igrejas como a do Sagrario e a de Santa Cruz, a Capela de Santa María de Jesús, os conventos de San José del Carmen e o de La Encarnación, pracinhas bucólicas e silenciosas, chegamos à meta, o Rio Guadalquivir.

O Rio Guadalquivir

A Maestranza, plaza de toros mais antiga da Espanha, lugar polêmico, de uma arte lancinante, de morte que é vida. Não discuto, mas muito me agrada, razão por que não me arriscarei em julgamentos. Ali, em dias de luta, cinco touros têm seus momentos mais impressionantes: de preservar suas vidas, o que significa desempenhar uma bravura indômita no espetáculo e contar com o raro indulto de seu diretor ou, mais fácil, de matar ou ferir gravemente o toureiro. De outro lado, o matador, cuja única medida matar, pois jamais admite ser morto, embora arrisque-se com os cornos a perfurarem-no. Esta é a base fundamental do terrível jogo, mas Sevilha, devemos compreendê-la, é assim: sagrada e profana, passional e apaixonante, religiosa e sensual, crente e descrente.

La Maestranza

De volta ao hotel,com as luzes acesas, imagino alguém dedilhando uma guitarra e outro sapateando sobre um palco. A voz do cante, autêntica, de pura música e grandes floreios, é coisa que vem de dentro, e quem dança o flamenco, operário da arte andaluza, sua enquanto a expressa. Não vejo, mas os imagino e buscam-me os pensamentos. É bonito mesmo assim sem ver, ou ver não vendo. O bailado, uma das marcas ciganas e mouras da Andaluzia, inspira. Tal qual os atos de As Bodas de Fígaro, de Mozart, que embora estreada em Viena, em 1786, com libreto em italiano, era a continuação da vida de Fígaro, iniciada em O Barbeiro de Sevilha. Aqui, também se aprende ouvindo. E tudo é tão rico, tão pitoresco, que mesmo nesta pequena amostra de grandiosidade, num recorrido de um dia, encheu-me de coisas para sonhar esta noite.

Bairro Santa Cruz

[1] João Cabral de Melo Neto, o escritor e diplomata brasileiro, viveu na cidade nos anos 50 e 60 e escreveu nos livros Andando Sevilha e Sevilha Andando poemas revelando costumes e tradições espanholas, revelando sua admiração pela cidade.

A seguir Capítulo 2 – Qual o segredo de Sevilha?

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