Desembrulhando o passado
O mundo é acolhedor, e apesar das tentativas de alguns tornarem-no antipático, até onde consigo me lembrar, sempre me pareceu assim. Desde moleque, 11 ou 12 anos de idade. Foi no começo dos anos 1960, do século passado, que desejei conhecê-lo, tornar-me um viajante explorador e desbravar nosso planeta agradável. Mas eu não fazia ideia de como realizar tal sonho, tampouco se seria possível fazê-lo. Quem poderia prever? Contudo, sonhar com viagens foi o primeiro passo.
Em 1961 os soviéticos haviam acabado de enviar o primeiro homem ao espaço, Iuri Gagarin. Os norte-americanos ainda precisariam de mais oito anos para tornarem Neil Armstrong o primeiro homem a pisar na Lua. Por aqui a gente estava perto de entrar numa ditadura, altura em que me recordo mais limpidamente ter-me ocorrido o desejo de tornar-me um desbravador do mundo. Contudo, de nada eu tinha certeza, exceto de que viajar àquela altura era um luxo imperial, assim como do quanto nosso planeta me parecia belo e atraente, de quantos lugares e possibilidades havia nele esperando por mim. Era um simples desejo, mas enormes as probabilidades de não acontecer. Precisei de duas décadas para começar a viajar e perceber que o mundo tornava-se fácil
Eu costumava contemplar para fora da janela de meu quarto e avistar o céu, o que tornava minha a vida nada insossa e me fazia viajar no horizonte, às vezes, hipnotizado por aqueles trilhos de nuvens deixados pelos jatos a grandes altitudes. Depois eu passava horas refletindo acerca das pessoas dentro daqueles aviões, imaginando uma gente sem rosto, mas bom gosto, indo a lugares tão exóticos quanto distantes. Sião e Timbuktu. Eu dormia sonhando conhecer mil destinos exóticos, como Istambul, por exemplo, que foi-me apresentada na capa de uma revista Seleções do Reader’s Digest colecionada por meu pai. Desde então, aquele lugar da capa, com uma portentosa mesquita, entrou em mim e tornou-se um parasita.
Meu futuro, contudo, não era tão previsível. Ao menos não como me parecia acolhedor o mundo. Tanto que daquela época até o dia em que escrevo estas linhas, seis décadas separam o sonhador do turista deste obstinado – sendo realista e não pretensioso – do moleque que se imaginava um futuro aventureiro desbravador.
Decorrido tanto tempo e após cinco visitas à cidade, Istambul permanece em mim feito tatuagem. Mas algo diferente sinto agora, um certo desconforto ao escrever de novo sobre a “minha” cidade, pouco antes de visitá-la pela sexta vez, em breve. Ao fazê-lo, tal qual um arqueólogo à procura de tumbas inéditas no Egito, ou de um senhor revolvendo camadas do passado no cérebro, abro baús empoeirados onde num mundo em preto e branco encontro lembranças da juventude e da primeira vez em que estive em Istambul.
Corria o ano de 2007, e era Inverno. Recordo-me de minha crônica sobre a cidade, a qual deu início a este blog, inaugurado em 2006, num outro sítio que já não existe. E hoje, pela primeira vez, ocorreu-me que depois de tantas visitas em diferentes etapas da vida, a cidade poderá deixar de exercer em mim tanta atração, não mais representar o que foi ininterruptamente por seis décadas.
Sinto-me ainda como se fôssemos amigos que se alegram por reunirem-se de novo após algum tempo sem encontrarem-se. Agora me ocorre que esta deva ser a última visita, a fim de que eu preserve minhas doces lembranças da década de 1960. Então, nesta derradeira vez que visito a velha senhora, ao despedir-me, que seja para sempre, pois não suportaria perceber que tornou-se “mais uma”, ordinária, e que deixasse de figurar entre as minhas cinco prediletas no mundo. Então, que seja assim, que fique em mim para a vida inteira, sempre e para sempre.
Há ainda muitos lugares nunca visitados que desejo conhecer. Completarei, em 2023, 71 anos de idade. E em Istambul, o que considero um privilégio. E o tempo, nesta fase da vida, passa furiosamente pra mim. Além da idade, também naquele ano completarei setenta e um países visitados, porque Quênia e Tanzânia estão definidos como os próximos destinos, e Bulgária, Montenegro do Norte e Sérvia estejam muito bem encaminhados. A contabilidade não tem nenhuma importância, embora me pareça uma curiosa coincidência. Afora isso…
Até a próxima!
Talvez não seja a última vez, mas com certeza será fascinante rever Istambul, a cidade mágica que aflora os sentimentos e traz uma profunda felicidade!
Parabéns pela crônica!
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O texto faz jus a Istambul, não à toa conhecida como “a cidade”. Não imagino um lugar melhor para comemorar o aniversário (e a vida). Parabéns!
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