Quênia e Tanzânia – Masai Mara – A árvore solitária

Ela grudou feito chiclete em sola de sapato. Eu quase sabia de cor e salteado a letra da bendita música: Jambo, Jambo bwana, Habari gani, nzuri sana, Wageni, Mwakaribishwa, Kenya jetu hakuna matata… a canção queniana, lançada em 1982 pela banda Them Mushrooms que tem no título uma saudação, que em swahili traduzido fica “Olá, senhor”. A danada tornou-se “minhoca de ouvido” e vivia saltitando na mente. À tarde no jipe, de noite na cama, durante o café da manhã e até no chuveiro. Às vezes era divertido, outras, bem…

Jambo, Jambo bwana, Habari gani, nzuri sana

Aprendi outras palavrinhas na língua deles: tembo – pra elefante, simba – pra leão, twiga – pra girafa e tumbili, o macaco. Mas, voltando à música-chiclete, a razão de seu grude era óbvia: minha exposição a ela, de tanto que a cantavam e, pelo que sei, porque era agradável ao cérebro. Não fosse ela – senão outra coisa e outro dia – talvez eu não me lembrasse tão bem daquela primorosa manhã de nosso primeiro safari no Masai Mara. Com a música agarrada “resolvi” me desligar e fui espiar a savana, concentrar-me em sua beleza. Sei lá se foi assim, mas a verdade é que ela resolveu sair de mim e colar noutro.

A árvore solitária

Chegando à savana, pensei em tantos lugares que já passei na vida e eles ficaram em mim. Como cicatrizes. Dos desertos às montanhas, das florestas às cidades, dos templos aos animais. Pessoas também, principalmente. A intensidade das cores daquele lugar tão especial parecia torná-lo mais um desses que viveriam para sempre nas minhas entranhas. Renovavam-se as expectativas de belos encontros no Triângulo de Mara e na Reserva Nacional Masai Mara. De animais, não preciso dizer. Mas foi uma árvore. O que mais gravei daquele dia – afora a bendita música – foi uma árvore.

Tem explicação. Sempre gostei delas, desde quando eu era moleque. Ainda as admiro e quero bem, devo dizer. Eu não podia ver uma que me dava ganas de subir. Peguei o jeito nas amendoeiras defronte à minha casa, na cidade do Rio de Janeiro, onde aquela urbana criatura verde era tão comum que parecia originária. Quem não é da minha cidade talvez não saiba que das 20 espécies mais frequentes na cidade, a Amendoeira (Terminalia catappa) é a primeira da lista, com o maior número indivíduos em toda a urbe. Depois virei craque e escalei de mangueiras a abacateiros. Da fazenda da Tia Manú, em Minas Gerais, ao sítio da Tia Cecília, no Estado do Rio de Janeiro.

A acácia solitária levava sua existência naquele vazio encantador. Uma águia pousada em sua tímida copa parecia ser sua única companheira. Não tinha vizinhas, não tinha filhas. Era de uma solidão de dar dó. Parecia conformada com seu estado e realidade, ainda que sem aparentar indiferença ao mar de savana, à imensidão de verde em três tons que a rodeava por, sei lá, quilômetros. Estava acostumada, embora não deva ser fácil viver assim – nem mesmo para uma acácia – contemplando o nada, uma realidade vestida de pureza, embora um despudor a sua pobreza.

Nem de alimento servia a pobre estrutura: era pau puro, sem folhas, apenas espinhos, da qual sequer as girafas se aproximavam. Tinha sua beleza, ainda que seu raquitismo anunciasse um fim próximo. Não parecia mesmo ter serventia. E não tinha escolha, era seu destino, já que era uma árvore, não podia percorrer a savana, afastar-se como os gnus em migração. Nem majestosa era. Não tinha ninhos e sequer sombra produzia. Mas contribuía generosamente para embelezar magnificamente a paisagem. E assim, como a música, feito chiclete em sola de sapato, aquela árvore grudou em mim.

A seguir

O fabuloso Masai Mara

5 comentários em “Quênia e Tanzânia – Masai Mara – A árvore solitária

  1. Olá senhor, mais uma delicia de leitura, Parabéns!
    Muito obrigada !

    “Andar por terras distantes e conversar com diversas pessoas torna os homens ponderados.” “Viajar é mais do que ver atrações turísticas; é uma mudança que continua, profunda e permanente, nas ideias de vida.”

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  2. Grande Arnaldo mais uma vez super inspirado ! Sua descrição de um pedaço da savana e uma árvore que “colou na sua mente “ terminou tendo um toque do puro existencialismo de Camus e Sartre. “Uma acácia contemplando o nada…” “não tinha escolha, era seu destino” e, por fim, encontrou até o sentido da existência da acácia: “embelezar magnificamente a paisagem”. Deu até vontade de reler O Mito de Síssifo de Camus.

    Abraços

    Rogério Braga

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  3. Confesso que neste artigo fiquei imobilizada (mais uma vez) contemplando a magia, a força, a graça, a aridez, a pureza, etc… da foto que contém a “acácia solitária com a águia pousada em sua tímida copa” num espaço mágico, enorme, potente e encantador! A lembrança deste lugar bate forte no peito!!

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