Okaukuejo. Contatos imediatos no Parque Nacional Etosha
Desperto antes do relógio. Uma algazarra de pássaros ronda ruidosamente minha janela. Tive sono solto, noite bem dormida e acordo bem-disposto. Inclino a cabeça e consulto a hora: faltam cinco minutos para as seis da manhã. Desmarco o despertador, me levanto, vou à janela, recolho a cortina e abro a porta da varanda. O apartamento é no térreo e com vista para a prainha da baía de Walvis, o lado Atlântico da Namíbia.
Olho para o céu e sorrio com o prenúncio de um dia ensolarado, ainda que encoberto, mas diferente da cinzenta atmosfera da tarde anterior. Sinto o ar litorâneo invadir o quarto e minhas narinas. Saio até um gramado, cinco passos depois da porta e sobre um piso de cerâmica. Observo um barco de pesca recém chegado ao porto junto ao hotel. Pescadores recolhiam uma rede e catavam os peixes presos nela. Jogavam-nos em caixas plásticas e os pelicanos na água tentavam a sorte. Não sei se esperando por furtivas oportunidades ou a generosidade dos homens.
A cena bucólica era um convite a correr para vê-la de perto. O quadro era bonito, de coisas familiares a mim – como barcos de pesca, redes, pescadores, peixes e mar – mas de outras raras, como os pelicanos. Dou mais uma espiada e retorno ao apartamento. Deixo abertas a cortina e a porta. O sol e o verde entram comigo, mas param no meio do quarto. Sigo até o banheiro e não gasto mais que 5 minutos entre o banho e o barbear. Volto ao quarto enrolado na toalha e tenho a intimidade desvendada por gaivotas. No gramado, junto ao piso da varanda, me espiam desconfiadas. Ambos nos surpreendemos com o encontro. Penso em dizer-lhes,”Podem entrar, garotas!”, mas…
Saio para fotografar antes do desjejum, temendo perder a cena dos pelicanos no cais. Cruzo com François. Está lavando o carro num box de serviços atrás do hotel. O jipe já não tem vestígios da fina poeira do deserto, que no dia anterior grudara em todo o veículo, dos vidros ao chassi. Nos cumprimentamos e sigo ao cais. Encontro Haroldo fazendo o mesmo para que eu fora ali. Desejo-lhe bom dia e percebo que embora com nossas câmeras, nos deleitávamos mesmo era com a paisagem. Fotografamos, claro, e logo retornamos ao coffee-shop para o desjejum. A turma já havia se servido enquanto eu e Haroldo admirávamos a cena da baía. A refeição deles ia em meio, então tratamos de correr, pois nossa saída seria em vinte minutos. Não havia mais tempo para relaxarmos, 500 quilômetros nos esperavam até Okaukuejo.
Nos sentamos juntos e Haroldo explica o roteiro do dia ao grupo:
– Hoje passaremos por cidades pequenas, como Omaruru, Kaalcop, Kalkfeld, Outjo e Ombika, e no final da tarde, nos aproximando das quatro horas, chegaremos à vila de Okaukuejo, dentro do Parque Nacional Etosha, onde nos hospedaremos. Nos esperam as maravilhas da vida selvagem no parque, os grandes animais africanos e, com sorte, possibilidades de contatos imediatos com eles.
Encerramos a hospedagem com um check-out rápido e entregamos nossa bagagem a François, que ajudado por um funcionário do hotel a colocou no reboque.
– Bom dia, aventureiros! Hakuna Matata! Estamos começando nossa jornada para o nordeste até o Etosha National Park, diz ele com sua habitual simpatia e voz de locutor.
A jornada começou pelo perímetro urbano de Walvis, às sete e meia da manhã, pontualmente como determinava o programa. Uma hora depois estávamos a atravessar um fascinante cenário de deserto. Havia alguma diferença em relação às paisagens que víramos até então. Uma parada no caminho para o almoço haveria de ser num lugar a cerca de metade da jornada. Logo, retornaríamos à estrada até o Anderson gate, um dos portões do Parque Nacional Etosha.
– Pessoal, quando chegarmos ao parque farei o check-in de vocês no Okaukulejo Camp enquanto vão ao banheiro. François deixará o reboque com a bagagem de no estacionamento e logo sairemos para nosso primeiro game drive no Etosha. O dia será longo, acordamos muito cedo hoje e só voltaremos ao lodge depois do pôr-do-sol, quando nos refrescaremos antes do jantar, explica Haroldo.
Me entrego às reflexões na estrada. Viagens por terra, especialmente as mais longas, costumam me levar à leitura e aos pensamentos. O jipe já me permitia essa intimidade de esticar as pernas para o corredor, reclinar-me sobre a poltrona, cruzá-las sobre ela, o relaxamento e o bem-estar. Quase fazia parte de mim. Sorte de termos um condutor bacana e um grupo de companheiros de viagem bem integrado. Mesmo já havia alguns dias juntos, cada manhã começava diferente, peculiar, surpreendendo com novidades. Assim como as noites também eram momentos de consagramos os belos dias vividos, brindando-os com vinho tinto sul-africano.
Assim, relaxado, ora lendo, ora olhando a paisagem, percebo-a mais verdejante que desértica, lugar apropriado à proteção ambiental que na região onde iríamos, se consagra numa das mais reconhecidas no mundo. O parque promove o restabelecimento da população animal – entre elas a do rinoceronte negro, elefantes e chitas – mas também atrai o turismo e recursos importantes para o país. Mas é turismo maduro que se pratica na Namíbia. Nada se vê daquela coisa tailandesa de andar em elefante, morder rabo de tigre e entrar em jaula de animal selvagem dopado para tornar-se “domesticado”. Como resultado, o país vem se tornando um destino perfeito para observação animal, atraindo cada vez mais viajantes.
A viagem ia em meio e o que eu pensava seria alimento às expectativas e ansiedade pelos encontros com os animais. Contudo, a paisagem era tão absorvente, os momentos tão positivos, que não sobrava lugar para inquietação.
O Parque Nacional Etosha ______________________
A estrada foi boa todo o tempo. Até mesmo dentro do parque Etosha, que com seus 22.000 km2 – dois mil a mais que o Parque Nacional Kruger, na Àfrica do Sul -tem toda sua área protegida servida por uma principal, asfaltada, e várias vicinais. A fauna selvagem vive (ou sobrevive, como é comum à saga de quase todos) livremente sem interferência humana. Parte do imenso território é dominada por uma enorme panela de sal e pelos prados que a circundam, numa gigantesca planície aberta.
Água, fonte natural fundamental para a vida, naturalmente está disponível nos raros charcos, mas seria insuficiente para o projeto ambicioso de crescimento da população animal. Então, bombeiam-na das profundezas de grandes nascentes por todo o parque. É a única interferência humana a seu favor. Então, é para lá que vão, quase sempre em bom número, beber nos pequenos lagos que se formam com a água jorrada do subsolo. Também é para vamos nós, turistas, estacionados, esperando ou contemplando-os os que já ali estão. É a oportunidade para predadores e expectadores. Mais de 110 espécies de mamíferos, 300 de aves, além de anfíbios, répteis e peixes circulam por ali.
Não há dúvida de que os animais são o foco de qualquer visitante. Mas também pode ser a geologia do Etosha, nome que se origina no idioma Ndonga, significa “grande lugar branco”. Sobretudo a panela de sal – ou Etosha Pan – uma das paisagens mais impressionantes do país, depois das dunas de Sossusvlei. A crosta branca e brilhante de sal da superfície se estende por 120 quilômetros, ininterruptamente. Contrasta com o céu azul e a faz parecer um mar branco rodeado de terra.
Mas são eles, os animais, os protagonistas nesse palco geológico e geográfico, em número surpreendente. É fácil encontrá-los, principalmente ao fim do dia e de manhã cedo. Encontrar elefantes, girafas, zebras, gnus, leões e tantos outros é extremamente estimulante. Nossa expectativa, nos dois dias no parque, seria, desde então, a chegada, de trafegarmos cerca de 400 quilômetros dentro do parque atrás de animais em seus diferentes sítios.
As planícies abertas mantinham os tons de verde de quando saímos, até chegarmos aos limites do parque, no Anderson’s Gate, próximo a Ombika, a 22 quilômetros de Okaukulejo – onde nos hospedaríamos. Essa distância percorrida até o alojamento já seria nosso primeiro game drive. Me sinto bem integrado à natureza da planície, graças à temperatura agradável e à propriedade do lugar de ser tão belo e sedutor. Haroldo aproveita a parada diante do portão para que François preencha os requisitos normais para nossa entrada no parque e nos diz:
– Amigos. Em minha última viagem à Índia comprei pequenos Ganesha artesanais, de fibra natural, pensando em dá-los a cada um de vocês neste nosso safari fotográfico à Namíbia. Que ele nos traga sorte!
Distribui a pequena imagem cor laranja a cada um de nós, um simpático Ganesha, dos mais populares entre os milhares de deuses indianos. Acreditássemos ou não na divindade, o gesto era auspicioso. Guardo o meu ainda dentro de seu saquinho plástico e dali em diante em nenhum momento cheguei a tocá-lo ou invocá-lo. Hoje, “mora” junto a outras figuras na seção “Índia” de uma estante de livros, guias e objetos de viagens que mantenho em casa. De vez em quando olho para meu Ganesha e penso na naquela viagem. Não chego a refletir sobre o tema da religiosidade, mas concluo: “quem sou eu para desvendar os mistérios e crenças da humanidade?”.
Entramos num lugar com mais de uma centena de espécies de mamíferos selvagens em liberdade total, o que significa não controlados por humanos, a não ser a manutenção da garantia de sua liberdade total. Esse bem-estar gozado pelos animais significa também que estão sujeitos ao que ocorre em sua saga pela vida: fome, sede, desconforto, dor, lesões, doenças, medo e aflição, diferentemente das reservas particulares, onde são protegidos mais amplamente, com ações humanas interferindo em suas vidas.
François aproveita a oportunidade para nos dar instruções de conduta e comportamento dentro do carro. Estaciona assim que passa o portão, num dos lados da estrada, ajoelha-se sobre seu assento, vira para nós e diz:
– Nossa aproximação de qualquer animal será sempre com cautela e com o menor ruído possível. No caso dos elefantes, que se aproximam do jipe até podendo tocá-lo, embora possa ser intensamente satisfatório, vê-los assim pode assustar a gente. E dependendo da nossa reação, isso tem lá seus perigos. Vocês podem ficar de pé nas poltronas mas fiquem parados, calados e não façam gestos bruscos.
Os elefantes – um dos big five (*) de um game drive africano – estão entre os animais mais perigosos da África, em virtude de seu tamanho, presas, de seu tronco forte e velocidade de até 40km por hora que alcança quando corre. Numa reação violenta pode facilmente abalroar e tombar um jipe como o nosso. Todavia, estão acostumadas aos jipes, bem como aos seres humanos dentro deles. Se bem comportados, claro. Ali há cerca de 2500 indivíduos. Graças à argila branca e à areia que se encontram no entorno dos pequenos lagos, são conhecidos pela aparência esbranquiçada de sua pele, devido aos banhos regulares dessa lama, que jogam sobre o dorso toda vez que vão beber água, hábito para arrefecer o corpo durante o dia e proteger a pele do sol. E porque precisam de muita água, permanecem nas proximidades, nunca se distanciam muito das poças de água.

Animados com a possibilidade de encontrarmos os maiores destes paquidermes no mundo – o Elefante Africano da Floresta – consequentemente maior animal caminhando pela terra, no lugar mais acessível para ver estes animais, seguimos para nosso lodge.
A estrada de asfalto – rodeada de arbustos espinhosos e de um verde para surpreendente – tinha inúmeros caminhos secundários de cascalho, e a luz da tarde ainda era boa, tornando-se quente à medida que se aproximava o poente, dali a cerca de 3 horas. Favorável às fotografias não só pela luz como pelo momento em que os animais saem para caçar, passear, pastar e beber água.
– Vejam, um elefante! É Ganesha a nosso favor! Não se passaram cinco minutos e já encontramos esse enorme macho. Acho que é meu record, fala Haroldo entusiasmado.
Consulto o relógio: 16:33h. Empunho a câmera e subo na poltrona, encosto o peito no teto – convenientemente acolchoado na parte interior do veículo – abro os braços e os apoio com a câmera segura pelas duas mãos, apontando para o paquiderme. Não era uma novidade para mim, eu já havia feito dois safaris anteriormente, na África do Sul, onde encontrei elefantes também bastante próximos do jipe, todavia em manadas e não daquele tamanho. Oh!, santa adrenalina! O solitário, enorme animal com presas veio em nossa direção, tinha o estilo “fantasmagórico” de se “vestir” típico do Etosha.
– Por favor, não balancem, disse alguém no jipe enquanto eu me levantava e subia na poltrona.
Aquele exemplar do maior mamífero terrestre saíu de trás de um arbusto e caminhou a passo de elefante para a estrada. François colocou o jipe de modo a que o animal viesse em nossa direção. Ao nos avistar, parou e nos esquadrinhou detidamente. Uns segundos que parecerem minutos e favoreceram bons registros fotográficos. Após ter-nos identificando como um exemplar de “animal estranho e barulhento”, já comum por ali, sabendo não haver perigo, retornou ao seu caminho. Com o jipe parado, nossa respiração também e, creio, quase os corações, ele decide aproximar-se até ficar a dois metros da lateral do carro. Os disparos são intensos e constantes, único som que ousamos fazer, além de nossa respiração. Seleciono o modo “silencioso” do disparador de minha câmera, temendo ser mais um a incomodá-lo e o ruído tléc tléc tléc vira tlâc, tlâc, tlâc.
O belo paquiderme se distancia de nós e segue seu destino, o water hole próximo. Chegando lá, zebras e springboks aguardaram seu espetáculo terminar, para depois também saciarem a sede. Leva água à boca com a tromba, depois a asperge sobre o dorso. Depois pega água mais do fundo, com lama, e começa a jogá-la sobre si, parecendo a melhor parte de sua ida até ali. Satisfeito, sai e dá lugar ao bando de zebras que o aguardavam.
Após o encontro, Haroldo exclama, aparentemente tão animado quanto nós:
– Que Ganesha continue nos acompanhando!
Nunca ultrapasso a fronteira entre a realidade e a crença, mas balbucio algo parecido com “amém”. “Sorte de ser eu!” penso exclamando. Uso título da canção de Bill Evans – Lucky to be me – pois poderia não ter sido eu a estar ali, a pegar o último lugar disponível no grupo “Safari fotográfico na Namíbia” do Viajologia.
– Não entraremos nos quartos. Vou fazer o registro de vocês na recepção, deixaremos a bagagem no reboque e quando voltarmos vocês já terão as chaves de seus quartos. Enquanto faço isso, podem ir ao banheiro e comprar algo para comer na loja do hotel. Esperem aqui. Não vai levar 15 minutos, diz Haroldo.
Os primeiros animais que vimos depois de deixarmos o Okaukulejo Camp foram avestruzes e chacais. Minutos depois, uma família de girafas cruzava a estrada defronte ao jipe. Pararam num descampado amplo logo depois de atravessarem a pista de cascalho, e ali ficaram bom tempo nos observando, um momento que aproveitamos para novos disparos intensos.
Zebras estão entre os mais bonitos e comuns animais no parque, e sempre em grupos com muitos filhotes. A Namíbia tem duas espécies destes equídeos: a zebra de Hartmann e a zebra de Burchell. A primeira é maior e se assemelha às da África do Sul, ou Cape Mountain. Encontram-se no Etosha e no Parque Nacional de Naukluft. Já a zebra de Burchell é mais facilmente reconhecida pelas listras marrons claras e por que preferem terrenos rochosos, como no Etosha ocidental, ainda que sejam encontradas noutras reservas naturais da Namíbia, desde que haja pasto adequado.
São brancas com listras pretas ou pretas com listras brancas? Segundo o biólogo da Fundação Parque Zoológico de São Paulo, Guilherme Domenichelli, não há dúvidas de que sejam animais claros com listras escuras, embora outras definições, defendidas faça com que o assunto não seja consenso. Atribuem à sua pelagem a particularidade do preto e branco contrastando-se em listras, confundirem predadores. Mas há quem ache que esta não aparente ser a melhor cor e padrão para camuflagem.
De volta à “casa”, bastante cansado, mas extremamente bem recompensado, mais um pôr-do-sol magnífico registramos às 7 e meia da noite, no Okaukeujo Camp, o mais antigo e popular lodge dos três que há dentro do parque. Este tem seu próprio poço de água, tão popular entre os animais, que o pessoal do hotel fez uma fileira de bancos para os hóspedes observarem-nos. Nossos chalés eram próximos do poço mas não exatamente defronte.
Jantamos no buffet do hotel. Pratos variados que comemos com vinho sul africano. Depois do jantar fui o primeiro a me retirar para o chalé, para dormir cedo, pois às 6:30 da manhã seguinte, para depois do café, às sete da manhã começarmos nossa exploração do Etosha, em direção ao Namutoni, onde nos hospedaríamos no Namutoni Camp, a 176 quilômetros distante dali, se não entrássemos em rotas secundárias.
Dormi ouvindo a música Lucky to be me – de Bill Evans. Sorte de ser eu!

(*) Big Five é o nome escolhido para num safari fotográfico – ou game drive – definir os cinco animais – leão, elefante africano, búfalo-africano, leopardo e rinoceronte – escolhidos pela dificuldade de serem caçados, não pelo tamanho, motivo porque o leopardo encontra-se na lista e o hipopótamo não.
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Continuamos juntos? Próximo capítulo:
NAMÍBIA – Capítulo 9 – Dia de rinoceronte
Realmente o dia mais emocionante de todos, o encontro com os animais do parque. Nossa, eu ia pirar se estivesse aí no seu lugar vendo esses animais de tão perto. Lendo seu texto senti sua emoção e as fotos mostram com muita perfeição esse encontro tão único. Inesquecível dia ! Aguardando o próxima dia!
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