NAMÍBIA – Dia de Rinoceronte

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Rinoceronte-negro (Diceros bicornis) ou Rinoceronte-de-lábios-pontudos Poça d’água Okaukuejo, dentro do Parque Nacional Etosha. Fotografado às 22:15 por © Haroldo Castro / viajologia.com.br

A poça d’água de Okaukuejo _________

             Poças d´água são um mundo mágico, disse Mario Quintana. É claro que o poeta não se referia às namíbias, senão às comuns, urbanas, acumuladas de chuvas nas ruas e calçadas. Segundo seu olhar, “elas refletem um céu quebrado no chão, onde em vez de tristes estrelas, brilham os letreiros de gás Néon”. Aquela, de Okaukuejo, era nobre, importante. Deram-lhe até um nome pomposo: King Nehale. Não era comum, do tipo que a gente desvia ou pula pra não molhar os pés. Ou feita das mesmas águas, pois ali mal chove. Rios, lagos e poças naturais não existem para os animais saciarem a sede, então bombeiam água do subsolo para enchê-las, mas ainda assim, artificiais, não mundanas e originais como romanticamente enxergou o poeta, tinha lá sua magia, mistérios e efeitos fantásticos.

          Apenas um muro de pedra à altura de minha cintura me separava dela, os mundos humano e animal, poça, dos espectadores. Preferida por rinocerontes negros, eles “sempre aparecem depois que o sol se põe”. Foi o que cansei de ler. O holofote é para as noites sem luar banhando a poça. Mas é discreto, o puseram com o cuidado e capricho para não exceder a luminância de um céu enluarado. Olho para o horizonte sem deter-me nela e ouço os murmúrios da savana respirando seu ar fresco, impregnado de sua fragrância. Como era agradável estar ali. Inspeciono o lugar porque não há nada de rinocerontes. Nenhum outro animal também. Apenas dois ou três humanos esperando na “arquibancada”. A espera, e a ausência, afetaram minha bexiga. Volto ao chalé e imagino que o grupo já tenha retornado.

           Duas horas e meia antes, saíram para o único safári vespertino de toda nossa jornada. Aquele que não fui. Sigo para o restaurante e os encontro entusiasmados. Contaram ter visto quatro rinocerontes negros e três guepardos. Quatro! Daqueles raros animais em vias de extinção. Lamentaram que eu tivesse perdido a experiência, mas os garotos disseram: “Estamos dois mamíferos à sua frente!”. Sofro calado. Alguém tem pena de mim e diz: “Vamos torcer para que Ganesha nos faça encontrar novos rinos e guepardos amanhã, Arnaldo!” Agradeço o prêmio de consolação.

              Jantamos e tomamos vinho tinto sul africano. Brindamos, mais uma vez à vida, à viagem e a nós. Deixo a mesa antes de todos e me despeço. Permanecem ali por mais uma hora, a julgar pelo tanto que havia nas taças e de animação na conversa. Volto ao chalé, exausto, mas sem culpas por ter perdido o único safári com o sol posto de toda nossa jornada. A opção – ficar no lodge recarregando energia – fora consciente, pois eu reconhecia estar no meu limite e a possibilidade de um dia seguinte de ressaca caso não repousasse.

            O breve repouso recarregou-me de energia. Não muita, um quarto talvez, mas suficiente para uma sobrevida antes do sono, um sopro para desejar sair do conforto da cama e conferir a poça d’água. Sou um cara saudável, disposto, dinâmico e entusiasmado. Motivado a conhecer tudo que o mundo tem de interessante, e acho mesmo que tudo o que ele tem é de fato muito interessante. Então, aquela poça me chamava. E, devo admitir, não era uma qualquer. “Quem sabe eu encontre animais agora?” Penso e acho que seria melhor ir logo antes que fosse tarde e o sono me pegasse definitivamente. Na manhã seguinte, eu sabia, acordaria arrependido. Sou daqueles que não precisam contar os anos de idade para reconhecer que nesta faixa a gente tem menos tempo pra viver do que já vivido. Tenho muito mais passado que futuro, como disse Mario de Andrade, não o nosso escritor, mas o político angolano, que sabiamente definiu esse “chamado da vida”. Para os da minha idade, este é um apelo irresistível para viver intensamente o que resta, porque o tempo torna-se escasso, porque a alma pede pressa.

                Lá fora estava escuro, um breu de não se enxergar nada, e apesar da ausência de nuvens, a visibilidade horizontal era ruim. Pego minha pequena lanterna, acendo e ilumino o caminho. Trago a luz do quarto nos olhos, mal acostumados então enquanto seguem meu andar titubeante. As estrelas – escondidas até duas horas atrás – já cintilam como só nos desertos, mas só elas não bastam para que eu apague a lanterna. Vou da escuridão até a penumbra sob aquele céu pulsante, caminhando até a poça por uma pista de cimento com metro e meio de largura, uns cem de comprimento, que aqui e ali se desdobra noutras e serpenteia até cada chalé, depois segue em reta segue até o muro de pedra.

                Chego ao muro baixo para mim, mas alto para os animais, com cerca de três metros se medido do nível do solo do charco abaixo. Para nós, o muro é discreto, um limite quase imperceptível entre espectadores e animais, que nos faz sentir algo como estarmos num zoológico ao contrário, onde as pessoas estão “enjauladas” e os animais soltos perambulando. Uma fileira de bancos em forma de arquibancada nos dá o conforto de estar frente à frente, quase sem sentir a barreira entre os mundos humano e o selvagem com vista aérea. O charco é mal iluminado, para não tirar a impressão de noite, tem luminosidade semelhante à de um luar pleno, então, preciso ainda adaptar minha visão à pouca luz.

            Vejo a superfície do solo, grossa, seca, argilosa e pedregosa que rodeia o charco circular, um leito da vegetação de ervas e árvores esparsas, pontilhada por arbustos de acácias atrofiadas pela ação de elefantes, que assim plana se estende ao horizonte. Em outras palavras, é savana, como o nosso clássico cerrado brasileiro, mas que em solo africano tem esse nome romântico. É terra da mesma qualidade, ali no Etosha indo até onde os olhos conseguem ver, dando ao expectador a uma paisagem desafiadora que vai até a grande panela de sal, de puro sal seco, um mar seco, cenário para além da imaginação.

           Avisto dois vultos grandes e imóveis. Não identifico bem sua morfologia, então o cérebro associa o que vejo ao que lhe é mais familiar. E por culpa da má visão noturna que a vista cansada pela idade me impõe, penso ver elefantes. Começo a acostumar a vista à pouca luz do holofote e esquadrinho – seguindo a linha do dorso, do lombo à boca – e concluo, especialmente por sua pança, traseiro avantajados e pernas curtas, serem rinocerontes. Suponho que sejam negros, que em verdade são marrons, ou cinzas. Não tenho capacidade de definir mais, tanto por ignorância quanto por não enxergar bem, todavia, são da espécie que habita o lugar, diferentes dos brancos, dos de Sumatra, de Java ou dos indianos e de outras sete ou oito subespécies. A extinção daqueles animais que avisto é uma hipótese e, embora o evento não seja incomum no tempo geológico, é uma realidade dolorosa. Estariam ali daqui uns anos? Tornam-se, então, os troféus daquela viagem.

              Haroldo se aproxima em silêncio, pára ao meu lado e sussurra. “Tudo bem? São elefantes?”. “Tudo bem e vc?”, respondo. “Não são. Veja, não balançam os pés, não têm trombas nem orelhas enormes. Pelo contorno das bocas, parecem rinocerontes”, concluo. Eufórico, reconhece os raros animais e corre para seu chalé. “São rinoceronte negros! Vou apanhar a câmera e chamar os outros. Eles não podem perder isso!”. “Eu fico, não vou perder…”.

             Meus pés estão firmemente presos ao chão, mas eu parecia flutuar. Haroldo corre aos dois chalés e os chama. Rogério sai enrolado na toalha. Antes de chegar ao mirante, se dá conta e volta para vestir-se. Não leva um minuto e ele volta sorrindo: “Caramba, eu vinha de toalha, não sabia que tinha gente aqui!”. “Está tudo bem. Com esse breu ninguém ia enxergar mesmo…”, falo a ele e rimos juntos.

                Ter visto rinocerontes negros foi uma experiência por excelência e, para mim, um dos mais marcantes momentos da viagem. Faltava, todavia, ver as chitas, a fim de que eu voltasse a me igualar em número de mamíferos à contabilidade do grupo. Antes de dormir, Haroldo voltou à poça Okaukuejo e viu cinco rinocerontes, contabilizando naquela viagem o total de nove. Quem me dera eu pudesse ter parado o tempo para eu ir buscar minha câmera sem perder nada. Não os fotografei, com medo de perder a oportunidade. Haroldo me emprestou uma foto para ornar este post. A outra, peguei sem pedir. Mas está ali o crédito.

              Na manhã seguinte, iríamos de OkaukuejoNamutomi. Volto ao chalé e no silêncio do quarto jogo o corpo na cama. Deixo de ser homem para ser coisa. Durmo como uma pedra, porque pedra é coisa que também dorme.

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Fotografado por:
© Rich and Alice Go Globetrotting – Sept 2017 Etosha National Park
https://richandalice.wordpress.com/category/namibia/

         Orix blog

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Continuamos juntos? Próximo capítulo: 

Capítulo 11 – Bom dia, Namutoni. Adeus, Etosha.

 

                 

3 comentários em “NAMÍBIA – Dia de Rinoceronte

  1. Ver um rinoceronte de tão perto deve ter sido realmente uma experiência marcante de tantas outras que você já teve nessa viagem que venho acompanhando. Não sei se um dia poderei viajar , mas depois de suas postagens a Namíbia agora está no topo da minha lista de lugares que gostaria de conhecer.

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  2. Lendo este belíssimo artigo, a saudade que bate é quase esmagadora !
    Você escreve com precisão detalhes que minha mente já não guarda mais
    Simplesmente delicioso de se ler!!!!

    Curtido por 1 pessoa

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