The Bat, de Pat Metheny Group. Álbum Offramp – Grammy de 1982
A História de Elsa
Uma placa entalhada em madeira, um nome feminino em destaque. Pregada a uma parede do Archer’s post gate – um dos portais da reserva, ornado à pele de zebra – chamou-me a atenção. Dizia: “Em memória de Elsa, que ajudou a salvaguardar esta reserva de caça”.
Mais do que atrair, a placa levou-me anos atrás no tempo, com a surpresa do inesperado. Embora nenhuma outra referência houvesse, imaginei tratar-se da jovem leoa, cria órfã adotada como animal de estimação pelo guarda florestal George Adamson e sua esposa Joy, ativistas africanos da vida selvagem e conservacionistas nos anos 50. Não podia haver outra Elsa. Tem que ser esta!, pensei entre surpreso e encantado com o “encontro”.
Eu estava na casa de Elsa, da leoa que fez grande história no Quênia, na África e no mundo. Contada num livro que vendeu 5 milhões de exemplares, e mais tarde no filme Born Free – ou A História de Elsa – conta a vida da leoa criada como membro da família, que se recusou a mandá-la a um zoológico, destino de suas duas irmãs, ao resgatá-la de uma leoa recém abatida. Ainda que um animal de estimação, criaram-na para sobreviver na natureza.
“Nascida livre, tão livre como o vento sopra, tão livre como a grama cresce, livre para seguir seu coração” dizia a letra da bonita canção tema de Elsa no filme, cuja trilha sonora foi composta por John Barry. Vencedor de um Óscar, em 1966, época de minha adolescência, o filme ajudou a consolidar de vez meu desejo de conhecer esta parte da África. Era admirável que Elsa ainda estivesse tão fresca em minha memória, que tão inesperada quanto surpreendentemente tivéssemos nos “encontrado” ali…
Quando Elsa tornou-se adulta, os Adamson perceberam que chegara a hora devolvê-la à liberdade, esperando que pudesse sobreviver por sua conta. Tempos depois, a encontram e foram surpreendidos com um acolhimento muito especial. Meu Deus, quantas lembranças me voltaram da mente e, discretamente, me emocionaram.
Uma outra placa, ao lado da de Elsa, homenageia a leoa Kamunyak, que adotou um bezerro de oryx. Pronto! A apresentação da reserva Samburu estava feita, e de modo inesperado e romântico.
A história inspirou milhares de pessoas a se engajarem na causa da preservação da vida selvagem e pensar que eu estava no território de Elsa foi uma auspiciosa introdução ao Samburu National Park. Hoje, anos depois de Elsa, a presença de leões continua a ser notável na reserva e eu estava certo de que o adoraria.
Para mim, fora uma estupenda graça. E livre, tão livre como o vento sopra, retornei ao tempo presente, com o Quênia vivo nos olhos e os ouvidos despertos por alguém me dizendo discretamente ao pé do ouvido:
– Não há água nos banheiros!
A seguir:De Nairobi ao Samburu – Longe, tão longe e distante
Nairóbi, o começo ________________________________
Waltz For Ruth, de Pat Metheny (Beyond the Missouri Sky (Short Stories), com Charlie Haden)
Sei lá por que motivo eles nascem com dentes tão brancos que parecem saídos de uma seção de clareamento. Assim era Vincent – o elegante e simpático queniano que nos recebeu no aeroporto de Nairobi.
– Jambo!, disse ele em swahili e sem economizar sorrisos. Parecia orgulhar-se deles. E nem na simpatia se conteve. Este sentimento de afinidade mágico, que atrai e identifica as pessoas imediatamente, é uma sensação espontânea que levou-me a estabelecer uma certa harmonia com ele. Longe de criar laços de amizade, mas boa, que se repetiria em novos encontros na Capital e no meio da viagem. Logo ali estabeleceu-se o tom do que seria – ainda sem sabermos – a nossa relação com os demais quenianos e tanzanianos que encontraríamos ao longo de toda a jornada.
Passava das duas da manhã quando pisamos no chão do país das Acácias. Do dia seguinte que saí de casa, às 3 da tarde! O cheiro e a temperatura na madrugada eram frescos, como se o ar da savana estivesse às portas do aeroporto. Embora o avançado da hora, não foi a alegria de em pouco tempo estar com chave do quarto do hotel o que me dominava, senão um grande alívio: ver nossa bagagem alojada e intacta nos três jipes. “Alojada”, aqui, é um eufemismo para atulhada.
No quarto do hotel, a expectativa parecia não me deixar pregar olho, a despeito de poucas horas faltarem para o Sol vir do Japão e nascer na África. Contudo, o tempo de olhos cerrados tentando atrair o sono não foi morto nem perdido, pois deitado no travesseiro do quarto escurecido, ocorreu-me editar na memória as primeiras palavras deste post. Palavras e frases. Também é nessas horas cinzentas que algumas inspirações me ocorrem, transformam pensamentos em escritas criativas. E como sempre, pensadas nos leitores caprichosos que um dia as lerão com cuidado, alguns até com o mesmo que dispensei a elas. As imagino, mas não as escrevo, imerso no meu universo de curtas sentenças e poucas palavras, dado à minha falta de erudição acerca do Quênia e da Tanzânia, por suposto. Foram bem cuidadas, contudo. Um caminho que julgo indispensável para não escrever besteiras. E foi com elas que o sono me pegou.
Logo partiríamos rumo às reservas de Samburu e Buffalo Springs, sete horas de viagem de Nairobi ao destino, 304 km metidos num jipe, sem conforto, mas carregando um grupo que conectara-se tão bem desde o primeiro instante que tudo converteu-se em satisfação. Com paradas pelo meio para comida e outras necessidades, os doze brasileiros de São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Minas Gerais, Pará, Distrito Federal e Rio de Janeiro, liderados pelo paulistano Marcio Lisa – às nove da manhã, respeitando o briefing, reuniu-se no desjejum à espera da hora de sairmos para resolvermos questões práticas, como troca de moeda, compra de petiscos para a viagem, garrafas de vinho sul-africano e coisas pessoais de cada um. Dormimos mais uma noite, entramos no fuso horário e a partir da manhã seguinte entramos em nossos três Land Cruisers, veículos que por 16 dias seriam nossos cárceres privados. A capital foi abandonada para seguirmos o roteiro em direção ao norte do país.
Os carros, 4×4, estilo safári, onipresentes na África subsaariana, têm três sequências de bancos, teto retrátil, cooler e um garrafão de água mineral com bomba para enchermos nossas garrafinhas. Alternávamos entre nós os lugares, e embora neste trecho a maioria das estradas fossem de asfalto, para mim, a sensação logo convertera-se em desconforto, um anúncio do que seriam os próximos dias percorrendo os parques nacionais e estaduais durante os game rides. Conduzidos pelos melhores motoristas que poderíamos esperar: Wiki, Kaled e Oburu. E ainda não sabíamos o quanto conheciam da fauna e flora de cada um dos parques e reservas por onde passaríamos. Em resumo, a viagem prometia!
Dois mil quilômetros ao todo, muita aventura por um oceano sem limites de pradarias nesse microcosmo da África. Preocupação nenhuma, a não ser o foco no dia, porque há muito o que saborear entre experiências e encontros. Chances de algo dar errado sempre há, nos advertiu o guia. “Como em qualquer viagem, mas nada com que devamos nos preocupar”, concluiu. “Uma atolada aqui, outra ali”, Márcio ia relembrando-se de perrengues passados e nos preparando para o futuro.
A expedição peloQuênia e Tanzânia partiu então da capital em direção às Reservasde Buffalo e de Samburu, num sábado ensolarado, rumo ao estado de Laikipia, no planalto central do Quênia, cuja paisagem do percurso ia de paisagens de cerrado a pequenos vilarejos com barracas de legumes, frutas e verduras à beira, animais domésticos, gado e gente à beira. Era o país nos sendo apresentado às janelas.
Chegamos aoSamburu após percorremos alguns poucos quilômetros de estrada de chão batido e poeirento já dentro do parque, até desembarcarmos no simpático Simba Lodge. Tudo o que queríamos era descanso, um banho renovador e uma cama cujo conforto certamente seria uma abundância comparada à dos jipes.
O que têm a ver Henry Mancini, John Wayne, Bert Kaempfert e um hi-fi a válvula com um safári na África? Bem, pelo menos para mim, tudo! Corria o ano de 1962 quando eu era um moleque e nada marcou tanto minha vida àquela altura quanto o filme Hatari! – uma comédia dramática rodada na África pelo diretor Howard Hawks, um notável filme de ação entre as savanas recheadas de animais, ao som de uma espetacular trilha sonora de Henry Mancini. Quem não se lembra do tema O Passo do Elefantinho (Baby Elephant Walk)?
“Hatari”, em swahili, significa “perigo”. E perigoso era o trabalho do personagem de John Wayne em busca da captura de animais para mandá-los a zoológicos de todo o mundo. Nada mais politicamente incorreto hoje mas, tinha a Elsa Martinelli…
Então, eis que surgem Bert Kaempfert e Henry Mancini na minha vida. Meu pai era um aficionado por música e, no começo dos anos 60, possuia o que era a última palavra tecnológica em termos de equipamento de som: um amplificador monaural – a válvulas! – e um toca-disco inglês que tinha uma inacreditável agulha de diamante. Tudo montado em um armário tipo cômoda, bem típico daquela época, que ocupava um belo lugar de destaque na sala de visitas. Pois bem. Aos 10 anos de idade eu ficava ali, sentado no chão e com o ouvido bem perto de uma enorme caixa de som que tinha a minha altura, ouvindo jazz e clássicos. Foi quando fui arrebatado, pela segunda vez depois de Hatari!, pelo LP Afrikaan Beat, de Bert Kaempfert. Eu me lembrava de cada cena do filme, numa atmosfera auto-hipnotizante, enquanto a música rodava no prato do toca-discos Garrard. Assim fui apresentado à África e desde então jamais deixei de desejá-la.
Foi apenas em Março de 2007 que consegui realizar o desejo de ir à África para um safari fotográfico. Mas essa e outra história. A que quero contar agora é de meu retorno à savana africana para avistarmos os big five.
DE VOLTA À ÁFRICA
Todos sabem a importância que dou quando regresso à casa. Mas, depois de uma viagem, ando uns dias sem viajar e pronto, parece que a vida fica insossa. E quase sempre é do mesmo jeito: os dias que antecedem uma nova jornada têm uma certa aura de festa. Ou, como num sonho frequente, quase diário, voltam a inspirar-me os destinos da nova partida.
Mal acabáramos de chegar da Jordânia e Istambul – minha preferida, um dos lugares mágicos que estou sempre a repetir, e se todos temos nossos lugares, Istambul é o meu. Em minha cabeça estava fresca a cidade. Fazia um mês em que estivéramos lá, mas também era o tempo que nos separava da próxima viagem: um Overland pelo Quênia e Tanzânia.
Sei lá o que me alimenta essa fome, mas me apraz senti-la e mais saciá-la. Contudo, não vou me alongar – seja no sentido literal ou poético – a explicar a voracidade. É só mesmo uma ligeireza da minha parte contigo, caro leitor, leitora, ao mencionar que uma viagem é sempre um prazer, embora também tudo o que cabe entre elas o seja. Acho que é o que chamam de ‘pragmatismo poético’ essa minha espécie de jeito de ser. Ou, como a própria vida, as coisas vão se tornando tão mais valiosas e intensas quanto menos tempo nos sobra.
Recordo-me de quando eu era jovem e achava que o tempo era infinito, não fosse ele, de fato, tão efêmero quanto agora o percebo. Tudo isso torna tão ambicioso qualquer planinho meu que converte-se numa empolgação contá-lo, provavelmente porque estou a descontar os instantes perdidos na pandemia, com a imposição do isolamento, da solidão, da falta de abraços e de encontros, de viagens e liberdade. Era tão bom ir vivendo as obrigações da vida e estar vivo que nem nos dávamos conta dessa beleza. Mas foram os limões que a vida nos dá. Alguns fizemos limonada com eles.
VAMOS DE JIPE!
Três jipes, doze brasileiros, dezessete dias, 2000 quilômetros, uma expedição de observação ao sabor da natureza selvagem, de filmagem e fotografia a bordo de Toyotas Land Cruiser. Os objetivos, a Grande Migração de animais no Serengeti, as Reservas Maasai Mara, a Cratera de Ngorongoro, as reservas de Samburu e Buffalo, o Lake Naivasha e o Lake Nakuru, além dos povos Maasai e Samburu, acompanhados pelo guia e fotógrafo Marcio Lisa – e com nada de melhor poderíamos contar! – durante toda a viagem que começará e terminará em Nairobi, Capital do Quênia. E como a perfeição é a meta, além disso estarei com minha querida, animada, perfeita companheira de aventuras e de vida.
Embora hoje os safaris sejam coisa sem vestígios do charme de Hatari ou de Robert Redford com Meryl Streep, em Out of África, ainda são muito, muito atraentes, surpreendentes, cativantes e encantadores. Paga-se uma boa grana, é verdade, para participar de uma odisseia turística-comercial com um grupo de gente bacana, um pessoal que gosta de bichos e se reúne por horas num jipe, seus cárceres privados por quinze dias. E nem sempre para ver todos os animais que esperava. E, certamente, em alguns locais, mais jipes do que leões, leopardos e chitas. Além do fato de que em algumas dormem-se umas noites em barracas de lona montadas no meio da savana, às vezes com banho externo em chuveiro-balde, cuja água fumegante fora aquecida numa fogueira, contudo em banheiros adequados às mínimas necessidades e tudo muitas vezes iluminados por luzes de parafina, porque não pense que eletricidade há por ali em todo canto. Ao menos não as que chegam por fios.
Eu aceito o que cada viagem me dá, porque são planejadas e conferidas. Aceitar é o que nos torna bons viajantes, afinal. Alguém já disse que apreciar é viver. Mas comparado à “simplicidade” mencionada acima, essa, ao contrário, terá fartura de conforto, de segurança, prazeres, boas surpresas e descobertas. Resumindo, ainda que planejada, terá tudo para ser uma “caixinha de surpresas”.
Não teremos com o que nos preocupar. Os animais não nos caçam, por exemplo. Se a gente não se aventurar para fora do jipe, está bem claro. Para eles somos uma pacata, inofensiva intrusão em bestas de lata verdes ou beges. Contudo, são selvagens. E quase sempre famintos. E nós, vulneráveis, provavelmente saborosos. Então, não esperam que demos sopa na aspereza das savanas. Por ali caçam-nos os homens. Se bem me entendem, os Masai. Vendem pelo triplo do preço seus badulaques. Dizem que mesmo assim valem a pena.
Na cabeçaa expectativa que uma viagem não faz caber. Na mala, toda a roupa de safari que ela consegue. Em caquis, cinzas, beijes, brancos e neutros. Mesmo que não haja um código de vestimenta, é sábio misturar-se com o ambiente. Então, cores bege, marrom e verde-oliva são práticas. E as roupas “respiráveis”, confortáveis, fortes e laváveis. Cores brilhantes devem ser evitadas, pois tornam o observador um destaque na vida selvagem. As escuras, como azul e preto, tendem a atrair insetos, sobretudo moscas tsé-tsé. Levo também uma respeitável farmacinha para eventualidades nada eventuais. E meus troços de filmar e fotografar. E já que viemos, vamos com tudo: binóculos, lanternas, baterias extras, cabos, adaptadores, cartões de memória…
Todo o roteiro será por destinos inéditos para mim, e embora fundamentalmente para avistar bichos, também para conhecer uma quantidade embaraçosa de outras riquezas na forma de paisagens surpreendentemente variadas, para encontrar gente encantadora e interagir (dentro do possível) com suas culturas, entre elas as de duas diferentes etnias, os Samburu – no Quênia – e os Maasai, na Tanzânia.
Cinema Paradiso – Pat Metheny & Charlie Haden – Álbum BeyondTheMissouri Sky (Short Stories) 1997
Desembrulhando o passado
O mundo é acolhedor, e apesar das tentativas de alguns tornarem-no antipático, até onde consigo me lembrar, sempre me pareceu assim. Desde moleque, 11 ou 12 anos de idade. Foi no começo dos anos 1960, do século passado, que desejei conhecê-lo, tornar-me um viajante explorador e desbravar nosso planeta agradável. Mas eu não fazia ideia de como realizar tal sonho, tampouco se seria possível fazê-lo. Quem poderia prever? Contudo, sonhar com viagens foi o primeiro passo.
Em 1961 os soviéticos haviam acabado de enviar o primeiro homem ao espaço, Iuri Gagarin. Os norte-americanos ainda precisariam de mais oito anos para tornarem Neil Armstrong o primeiro homem a pisar na Lua. Por aqui a gente estava perto de entrar numa ditadura, altura em que me recordo mais limpidamente ter-me ocorrido o desejo de tornar-me um desbravador do mundo. Contudo, de nada eu tinha certeza, exceto de que viajar àquela altura era um luxo imperial, assim como do quanto nosso planeta me parecia belo e atraente, de quantos lugares e possibilidades havia nele esperando por mim. Era um simples desejo, mas enormes as probabilidades de não acontecer. Precisei de duas décadas para começar a viajar e perceber que o mundo tornava-se fácil
Eu costumava contemplar para fora da janela de meu quarto e avistar o céu, o que tornava minha a vida nada insossa e me fazia viajar no horizonte, às vezes, hipnotizado por aqueles trilhos de nuvens deixados pelos jatos a grandes altitudes. Depois eu passava horas refletindo acerca das pessoas dentro daqueles aviões, imaginando uma gente sem rosto, mas bom gosto, indo a lugares tão exóticos quanto distantes. Sião e Timbuktu. Eu dormia sonhando conhecer mil destinos exóticos, como Istambul, por exemplo, que foi-me apresentada na capa de uma revista Seleções do Reader’s Digest colecionada por meu pai. Desde então, aquele lugar da capa, com uma portentosa mesquita, entrou em mim e tornou-se um parasita.
Meu futuro, contudo, não era tão previsível. Ao menos não como me parecia acolhedor o mundo. Tanto que daquela época até o dia em que escrevo estas linhas, seis décadas separam o sonhador do turista deste obstinado – sendo realista e não pretensioso – do moleque que se imaginava um futuro aventureiro desbravador.
Decorrido tanto tempo e após cinco visitas à cidade, Istambul permanece em mim feito tatuagem. Mas algo diferente sinto agora, um certo desconforto ao escrever de novo sobre a “minha” cidade, pouco antes de visitá-la pela sexta vez, em breve. Ao fazê-lo, tal qual um arqueólogo à procura de tumbas inéditas no Egito, ou de um senhor revolvendo camadas do passado no cérebro, abro baús empoeirados onde num mundo em preto e branco encontro lembranças da juventude e da primeira vez em que estive em Istambul.
Corria o ano de 2007, e era Inverno. Recordo-me de minha crônica sobre a cidade, a qual deu início a este blog, inaugurado em 2006, num outro sítio que já não existe. E hoje, pela primeira vez, ocorreu-me que depois de tantas visitas em diferentes etapas da vida, a cidade poderá deixar de exercer em mim tanta atração, não mais representar o que foi ininterruptamente por seis décadas.
Sinto-me ainda como se fôssemos amigos que se alegram por reunirem-se de novo após algum tempo sem encontrarem-se. Agora me ocorre que esta deva ser a última visita, a fim de que eu preserve minhas doces lembranças da década de 1960. Então, nesta derradeira vez que visito a velha senhora, ao despedir-me, que seja para sempre, pois não suportaria perceber que tornou-se “mais uma”, ordinária, e que deixasse de figurar entre as minhas cinco prediletas no mundo. Então, que seja assim, que fique em mim para a vida inteira, sempre e para sempre.
Há ainda muitos lugares nunca visitados que desejo conhecer. Completarei, em 2023, 71 anos de idade. E em Istambul, o que considero um privilégio. E o tempo, nesta fase da vida, passa furiosamente pra mim. Além da idade, também naquele ano completarei setenta e um países visitados, porque Quênia e Tanzânia estão definidos como os próximos destinos, e Bulgária, Montenegro do Norte e Sérvia estejam muito bem encaminhados. A contabilidade não tem nenhuma importância, embora me pareça uma curiosa coincidência. Afora isso…
Refflejo de la Luna– Paco de LuciaSevilha com névoa, vista do topo da torre La Giralda
Semnuvens correndo, nem vento. Quieto, mas eloquente. Mesmo não transbordado em azuis – daqueles de encher os olhos ou um quadro de Van Gogh – eu não o avistava cinza, e nele ainda havia muito para se admirar. E era aquele, afinal, que nos recebia. Eu quase gostava dele, embora não fosse de pintar, cantar, descrever ou poetizar.
Às 9:20 da manhã, com o pouso quase feito, numa olhada pela janela do avião, estava encoberto, mas embora assim, por uma nebulosidade aceitável. Por favor, não me leve a mal, você sabe que eu não gosto de dias nublados e que turistas também não os engolem muito bem. Em viagens, esperamos todos por dias azuis e com a beleza da luz. Assim como são de esperar os de agosto em Sevilha, que se prolongam até quase às dez da noite, com uma beleza e funcionalidade tão úteis quanto admiráveis para os que viajam. Não chego a aplaudi-los como os cariocas de frente para o sol no Arpoador, mas como os desejo! Dentro de mim sempre haverá um céu azul a desejar.
Pouso feito, no saguão doaeroporto já sentíamos na pele a proximidade da costa africana e a intrusão do Saara na Península Ibérica. Uns 30 graus àquela hora. É assim mesmo em agosto, o Sol parece morar em Sevilha. A vida toda. E o calor, vir de Marte. Não parece humano, nem terrestre.
Nosso lugar por duas noites, no Bairro Santa Cruz, nos deixava bem próximos das atrações mais estreladas da cidade, do museu de coisas extraordinárias que há em Sevilha, de seu conjunto icônico e nítido de imponentes edifícios mudéjares, góticos, barrocos, que em maior parte atraem e seduzem o visitante, embora, em primeira hora, nos cativasse o aconchegante quarto do hotel.
Quarto de bom tamanho, de espaço bem aproveitado, com cortinas espessas para a privacidade, embora lá fora apenas uma insuspeita igreja nos espreitasse. A boa cama com lençóis ainda esticados era um convite que encaramos com naturalidade, cuja sensação de querer usá-los depois de um longo, embora confortável voo transatlântico, creio deva sentir todo ser humano viajante que atravessa fusos horários. Malas depositadas, algumas roupas retiradas, abrimos as cortinas e a claridade da rua já não mais filtrava a luz do sol, entrava por tudo, por nós, nos impulsionava. O reconhecimento da habitação foi ao banheiro e nos mostrou toalhas dobradas e um chuveiro muito atraente esperando por um banho reconfortante.
Pela janela do quarto
Aprontamo-nos logo. Nos chamavam a nitidez das ruas, a precisão do olhar, a dimensão da realidade. Foi bom, e sempre é, imaginar um lugar, embora por mais que o façamos bem, nunca se consagra como vivê-lo. É algo assim como contar e escrever. Então, ouso dizer sem modéstia, que em minha espiada à janela, as calles pareciam prontas e esperando por nós, e que por assim estarem, como reconhecimento, desejávamos destinar-lhes nosso melhor, toda a atenção, até à raiz dos cabelos, embora a cama e o jet lag ainda nos convocassem. Não demos chance à dúvida da espreguiçada e nos preparamos para o dia de caminhadas. Me sentia imensamente bem regressando a Sevilha, como se fosse a primeira vez, embora a quarta, porque sempre há coisas já vistas que mostram novos elementos quando reencontradas, e novos jeitos de vermos o que já conhecemos. Estávamos inteiros para as ruas e sabíamos que a noite aqui seria doce, o que nos confortava e impulsionava às ruas com um gostoso desejo tardio pela cama.
A Juderia
Entre laranjeiras e azulejos, no labirinto de dobras e quebradas das calles da antiga juderia – o bairro judeu em terras de mouros – por caminhos estreitos e tortuosos, fomos primeiro às Setas de Sevilha – ou Metropol Parasol – uma construção de madeira na praça La Encarnación, bem próxima de nós. Compramos chips para nossos celulares e nos conectamos em 5G a nós e com o mundo.
Las Setas
Depois, caminhamos em direção à Torre del Oro – às margens do Rio Guadalquivir – e, então, à Maestranza, plaza de toros mais antiga da Espanha. Para amanhã ficarão os tesouros mais desejados de Sevilha, cidade abarrotada de preciosidades mouriscas, mudéjares, maneiristas, renascentistas e barrocas como os Reales Alcázares, a Catedral La Giralda, o Arquivo Geral das Índias, a Casa de Pilatos, a Torre la Giralda. Depois, à bela Plaza de Espanha com o céu cinzento e pingos de chuva. Lembramo-nos do que nos dissera o motorista que nos levara do aeroporto ao hotel: “Nunca chove em Sevilha em Agosto” e rimos de sua furada previsão, sentindo alguns pingos parrudos caindo do céu sobre nós.
Torre del Oro
Apraz-me voltaraSevilha, e embora já não me sendo mais cidade estranha, ainda que não tão íntima quanto foi a João Cabral, poderia até viver a aventura de “perder-me” na Cidade cítrica – como a poetizou Melo Neto. Mas não, precisávamos andar com sentido e mapa, pois foi viagem planejada ao pormenor, devido ao pouco tempo. Era viagem nossa, assim como o tempo, mas este era pouco e de nada me serviria perdê-lo. E o tempo, em viagem, sempre me parece naturalmente que mal dá conta.
O percurso de quatro quilômetros tortuosos foi acompanhado pelo Astro Rei com toda sua força andaluza, sua claridad invasora num céu vivo, pronto a assassinar os transeuntes. Surpresas nos esperavam. E nós por elas. Contudo, em Sevilha há algo invisível, talvez os duendes citados pelo poeta espanhol Federico Garcia Lorca, o menestrel da Andaluzia, que não sei ao certo. Talvez sejam eles que animem e impulsionem meu espírito poético e romântico ao escrever estas linhas e, para além, me façam compreender o motivo por que esta cidade produziu tantos grandes poetas.
Plaza de Toros Real Maestranza de Sevilla
Embora eu não os veja – os duendes, não os poetas – percebo no ar o que sugeriu sua existência, pois parecem mesmo escondidos por toda parte. Embora não concretos, aparentes, expostos, dizem que eles costumam guardar em si o poético mistério da cidade. Daqui, com estes meus olhos de setenta anos, já os “enxergo” sem problemas, apesar de um antimístico convicto e orgulhoso.
“Nunca chove em Sevilha em agosto”…
Dizem que para além dos duendes de Lorca há lendas nos labirintos de Santa Cruz, e que basta mergulharmos em seu traçado complexo, às vezes impossível, para que se revelem sob a agradável sensação de que o tempo se detém, que a descoberta de preciosidades – como o barroco Convento de Los Venerables, surgida como uma aparição depois de passarmos por ruas tão estreitas quanto inimagináveis -, nos faça desembocar na rua mais estreita da cidade – a Rua dos Beijos, ou Calle de los Besos. Que cidade tem uma rua com tal nome? E a história dos duendes? Parecerá exagerada depois da caminhada pela juderia em meio às casinhas típicas sevilhanas e às plazuelas? Entre fachadas de sobrados que muros altos proíbem, mas sombreiam as ruelas no verão inclemente? E janelas com persianas externas rústicas, de enrolar, de madeira, usadas para sombreá-las?
Há pouco som, o cheiro é agradável e a brisa nenhuma. Agosto vai em meio, o Sol quase lá, mas nem é preciso olhar o termômetro para senti-lo feroz, seja na pele exposta ou na coberta. A manhã não é mais pura, já esbarra na tarde e o calor exige sombras, chapéus e goles d’água para a sobrevivência do transeunte.
Caminhamos a par e de vez em quando eu sentindo minha ansiedade desejar dizer-lhe: “Estás gostando?” Bom mesmo seria pararmos para umas tapas e perguntar-lhe, olhos nos olhos, entre um gole e outro de vino rosado. Não seria uma façanha, pois é mulher de bom gosto e personalidade, difícil de agradar com superficialidades. E embora Sevilha, queira ou não, abrace e contamine como germes, bons germes, nem todos os pegam. Daquele momento em diante deixei que tudo corresse com naturalidade, embora intimamente desejando que acontecesse como com Istambul, onde nossas energias e gostos se comunicaram tão bem, embora de maneiras e em tempos diferentes, mas às vezes fundindo-se surpreendentemente. Deixei que o redemoinho de tudo o que estava por vir, viesse. E, quem sabe, de lá saísse concordando com o poeta, porque quem a visitou e leu J.C. de Melo Neto, haveria de concordar que Há que sevilhizar a vida. Há que sevilhizar o mundo.
Paramos para comer num restaurante encantador. Nos sentamos entre turistas e turistas. Locais eram garçons e cozinheiros. Comemos tapas e bebemos sangria fresca. Tudo delicioso. Como Sevilha, que é sempre uma boa história, que acaba, mas nunca termina.
Seguimos nosso destino, turistar. Com prazer, que embora com sentido, direção, sem perder-nos, pela beleza das ruelas inesperadas, entre gradis de ferro bem trabalhados, vasos de plantas nas janelas, floreiras presas às paredes, chafarizes, azulejos, bancos e jardins, por meandros como se fossem rios, ruas com nomes ora históricos, ora românticos como Patio de Banderas, Callejón del Agua, Calle Vida, Susona, Pimienta, Lope de Ruda, Santa Teresa, Rodrigo Caro e Santa Maria La Blanca, enfim, como disse o poeta, por “lugares todos ao alcance do pé”.[1]
Sangria
Eu não sei se ruas podem ser denominadas assim sem incorrer em exageros, mas essas de Sevilha me parecem ter saído de dedos com boa dose de graça e nomeadas com o coração e imaginadas para caminharmos a escutarmos os próprios passos, não sentirmos o passar do tempo. Que resultado esplêndido!
Entre as ruelas que percorrem o bairro como se fossem rios, o túmulo de Colombo e o berço de Velásquez e de Murillo, com cheiro de laranja e gosto de azeite, entre igrejas como a do Sagrario e a de Santa Cruz, a Capela de Santa María de Jesús, os conventos de San José del Carmen e o de La Encarnación, pracinhas bucólicas e silenciosas, chegamos à meta, o Rio Guadalquivir.
O Rio Guadalquivir
AMaestranza, plaza de toros mais antiga da Espanha, lugar polêmico, de uma arte lancinante, de morte que é vida. Não discuto, mas muito me agrada, razão por que não me arriscarei em julgamentos. Ali, em dias de luta, cinco touros têm seus momentos mais impressionantes: de preservar suas vidas, o que significa desempenhar uma bravura indômita no espetáculo e contar com o raro indulto de seu diretor ou, mais fácil, de matar ou ferir gravemente o toureiro. De outro lado, o matador, cuja única medida matar, pois jamais admite ser morto, embora arrisque-se com os cornos a perfurarem-no. Esta é a base fundamental do terrível jogo, mas Sevilha, devemos compreendê-la, é assim: sagrada e profana, passional e apaixonante, religiosa e sensual, crente e descrente.
La Maestranza
De volta ao hotel,com as luzes acesas, imagino alguém dedilhando uma guitarra e outro sapateando sobre um palco. A voz do cante, autêntica, de pura música e grandes floreios, é coisa que vem de dentro, e quem dança o flamenco, operário da arte andaluza, sua enquanto a expressa. Não vejo, mas os imagino e buscam-me os pensamentos. É bonito mesmo assim sem ver, ou ver não vendo. O bailado, uma das marcas ciganas e mouras da Andaluzia, inspira. Tal qual os atos de As Bodas de Fígaro, de Mozart, que embora estreada em Viena, em 1786, com libreto em italiano, era a continuação da vida de Fígaro, iniciada em OBarbeiro de Sevilha. Aqui, também se aprende ouvindo. E tudo é tão rico, tão pitoresco, que mesmo nesta pequena amostra de grandiosidade, num recorrido de um dia, encheu-me de coisas para sonhar esta noite.
Bairro Santa Cruz
[1]João Cabral de Melo Neto, o escritor e diplomata brasileiro, viveu na cidade nos anos 50 e 60 e escreveu nos livros Andando Sevilha e Sevilha Andando poemas revelando costumes e tradições espanholas, revelando sua admiração pela cidade.
Sempre e para sempre (Always and Forever – Pat Metheny Group)
De volta ao começo, ao normal, ao admirável mundovelho
Às vezes eu estava lá, porque, afinal, o sonho é livre. Contudo, a maior parte do tempo, estive por aqui mesmo, em casa, mascarado e preso à falta dos sabores especiais de viajar. O cérebro transbordava em memórias e desejos, e entre nostalgia e esperança – dois sentimentos perigosos (se mal controlados) – surpreendia-me com recordações percorrendo os labirintos da mente, sempre pródiga em suas assimetrias a alimentarem memórias, da vida mesmo, de tudo, da cruel realidade da ausência das relações, dos milhões de beijos perdidos, de abraços proibidos, da devastação humana, das vidas salvas e das perdidas, da arrogância à negação dos cuidados, dos heróis e dos vilões da pandemia, da prisão imposta pela abstinência pandêmica, das fronteiras fechadas e das incertezas do livramento do maldito risco de morte. Restavam-me, então, as jornadas virtuais e um sentimento de “nunca mais” poder viajar.
Sei que não estava sozinho. Nem aqui, nem no mundo. Havia amigos, filhos, familiares, amada, sócios. Eu e a Terra vivendo a rude incerteza do presente. A dor que nos cercava, e a muitos aniquilava, às vezes fazia parecer sobre-humano lutar, que nossa hora iria chegar, cedo ou tarde, e que em breve as forças do mal arrombariam as portas de nossa vida confinada.
Cada um sentia suas coisas; uns morriam de medo de sair, outros de vontade de botar os pés fora de casa. Até que veio a primeira dose, uma emoção que não consigo contar, embora tenha sido um privilégio que desse ‘pra escrever um livro, uma sorte da qual jamais esquecerei, significativa, importante, tal como “viver de novo”.
Me lembro bem daquele dia. Enquanto eu estava na fila observando os que tomavam sua primeira dose, uns apavorados, outros sorridentes, chegando minha vez levantei a manga da camisa, fechei os olhos inspirei e expirei profundamente. Silencioso, confiante, como se assim eu potencializasse o poder da vacina com o poder da minha mente. “Pode abrir os olhos, senhor!”, disse a moça que me aplicara a injeção. Assim o fiz e notei sua expressão: um sorriso sugerindo que eu sentia medo, sem saber que eram êxtase, emoção, felicidade e agradecimento. Agradeci carinhosamente à jovem, que e talvez por isso não lhe tocasse o significado daquela vacina para cada um dos idosos da enorme fila. Ou, pior, para os integrantes dos grupos de risco mais graves. A sensação de “voltar a viver” era verdadeira, um presente, um privilégio. Então, senti-me vigoroso, verdadeiramente orgulhoso, e percebi que a desde ali as coisas começariam a mudar.
Então, apesar de persistirem resquícios de lembranças do passado, chegaram as esperanças no futuro. As minhas, vivas, remoíam no cérebro. A quarentena me fez compreender a necessidade de esperar com paciência e seguir pensando em lugares, imaginários ou desejados, alimentando meu desejo de um dia tornarem-se realidade em novas viagens. Aqueles dias, anos, em verdade, demoraram e, hoje, sabemos que continuarão para sempre. Agora, contudo, dois anos, oito meses e quatro doses depois da última viagem – gracias a la vida! – estamos libertos das suspensões e voltados às expectativas. Apesar de Agosto – que dizem ser do desgosto – quanta alegria poder voltar a voar neste mês.
Aceito com reconhecimento, singeleza e humildade o privilégio de voltar a olhar o mapa mundi com olhos exploradores e inspiração, sobretudo o de começar a pôr em prática – sem desvios repressivos – novos planos que recuperam meu enorme, delicioso prazer de planejar viagens, de arrumar malas e de partir. Meu regresso à vida viajante torna esta viagem mais marcante, não ordinária e com mérito libertário, uma consequência memorável, embora me pareça que isto tudo soe sem originalidade, pois meio mundo parece ter tido a mesma ideia ao mesmo tempo e resolveram partir antes que fosse tarde demais, tal qual estouro de boiada.
Estou de volta ao passado, ao de um turista intencional, embora dando os primeiros passos nesta escapada a uma de minhas cinco cidades prediletas no mundo, Sevilha, um caso de amor à primeira visita há mais de 30 anos, quando me ocorreu uma sequência infindável de belezas que me abraçaram e infectaram feito germes desde o primeiro instante. Experimento agora um “dejà vu” sem estranheza, uma agradável sensação de estar onde quero e escolhi, embora imaginando que não vá sentir os impactos dos encontros inesperados de outrora, talvez porque concentre todos esses desejos em que sejam agora dirigidos à companheira, o motivo fundamental desta jornada: mostrar-lhe, tão logo possamos, as minhas cindo cidades prediletas do mundo: Istambul, que já conheceu comigo, Bangkok, Sevilha, Barcelona e Praga, planos em sérios planejamentos.
Não preciso me lembrar, nem a você, minha companheira, do inesquecível: nossos momentos juntos no auge da crise, nossos medos, nossas precauções, as escapadas à rua com tudo cerrado, nossas voltas de moto pela serra de Petrópolis ou Teresópolis como se emoreendêssemos uma aventura ao Atacama, ao bairro da Urca, àquele café, único café aberto em toda a cidade, das nossas noites diante da TV, da limpeza das camadas de ferrugem pelas caminhadas no condomínio, de nossos jantares em casa, das viagens off Road à Serra da Canastra, de todas as lembranças que jamais desaparecerão, sobretudo de imaginarmos – com os olhos abertos ou fechados – qual seria o lugar perfeito para comemorarmos o fim das privações. Por bem, estamos aqui agora!
Apraz-me, então, tanto escrever quanto viajar. E escrevo o que sinto com a mesma genuinidade de sempre, usando as palavras com respeito ao leitor e cuidado às suas convicções. É bom saber que a escrita tomará corpo, vida, caminho e independência, que na virtualidade da Internet, pelas vias deste blog, alcançará os olhos de alguém e se tornará quase um personagem. E assim como num conto, tal qual uma janela que se abre, que seja com ele generoso, que toque seu coração e mente, o motive, inspire, contudo deixando-lhe toda a liberdade do veredito final: divertir-se ou não, encontrá-lo aqui novamente ou vê-lo sumir.
Going Ahead – Pat Metheny – Works Albun, by Pat Metheny Group
Palavras funcionam, embora às vezes não tanto quanto as imagens. É claro que as primeiras dependem do poder e da arte de quem as escreve, mas embora sejam a matéria prima deste blog, são as segundas que tornam mais efetiva minha intenção de cativar o leitor, motivo pelo qual recorro aos filmes e às fotografias, bem mais do que de fato eu precisaria se tivesse pleno domínio da escrita. Sem as imagens eu não iria tão longe na intenção de mostrar ao leitor o que vi e senti, e embora histórias bem narradas tenham grande valor, por vezes, quando ilustradas, ficam ainda melhores.
De todo modo, qualquer viagem, mesmo escrita por um mestre, perde muito do seu encanto aos olhos de quem a viveu. É possível, com palavras, descrevermos o que vimos e sentimos, mas não creio ser possível fazer alguém chegar a sentir a mesma emoção, causar-lhe o mesmo arrepio e as venturas e desventuras de quem as experimentou. Escrevo sempre com o melhor de mim, não apenas por respeito ao leitor, também por gosto, contudo sem jamais acreditar ser possível fazê-lo vivenciar o mesmo que trago guardado em minha cabeça. Mas ah, como eu adoraria ter o poder fazer isso!
Estávamos em Agra, numa rua a caminho de uma atração secundária, desviando de vacas sagradas, de tuc-tucs apinhados, de bicicletas lentas e respirando ar poluído. Vivendo, enfim, o caos indiano organizado e com sentido, aquela mais absoluta loucura asiática, coisas que só acontecem na Índia que a tornam tão única e peculiar e a convertem numa preciosidade. Desfrutávamos com toda intensidade o momento, e não apenas porque nos agradavam soberbamente suas atrações monumentais, sua arquitetura sublime, seus templos encantadores, palácios e fortalezas notáveis, mas as pessoas e as experiências que essas particularidades nos possibilitavam viver.
Creio que será assimagora, ao tentar descrever minha primeira impressão à vista daquele mausoléu. Seguramente ele seria, em qualquer lugar do mundo, um monumento espetacular, mas ali, situado próximo ao Taj Mahal e ao Forte Vermelho de Agra, tornou-se, inexoravelmente, deles uma eterna sombra.
Não houveempatia nem emoção. Pareceu-me mesmo atarracado, embora luxuoso, um caixote de mármore feito para abrigar algumas tumbas, sem lá muito apreço pelo desenho, embora tanto pela ornamentação. Mas bastou aproximar-me dele para que a crueza do olhar imediato fosse compensada pela atenção de um mais cuidadoso. E era este intencional, que sob silêncio, tornava o objeto observado mais invasivo ao observador. Parado diante de alguns detalhes, como se estivesse acomodando minha visão, lembrei-me de meu prazer de olhar assim, com mais presteza.
Recordo-me até de quando senti-me impulsionado a observar as coisas de tal jeito: foi com a releitura – anos depois da publicação – de uma crônica de Otto Lara Resende – “Vista Cansada” – publicada no jornal Folha de São Paulo em 23 de fevereiro de 1992, em que dizia “…de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo…”. Mais tarde, confirmei a simpatia pelo jeito de olhar com o poeta inglês William Blake, quando em algum lugar afirmou que “Se as portas da percepção estiverem limpas, tudo parecerá ao homem como de fato é…”.
Desde então, tornou-se um exemplo a imitar, o qual tenho me tornado assíduo na prática, evitando os descuidados, para os quais tornei-me vacinado.
Pois bem. Não tem aquele mausoléu – sob qualquer ponto-de-vista – a grandiosidade das obras da Índia mogol que até então havíamos visitado. E isto não o deixaria menor, não fosse a proximidade aos seus irmão gigantes. Contudo, conhecida sua história, observados seus detalhes, torna-se ele um estímulo à exploração mais cuidadosa. Com um olhar mais demorado o observador percebe uma beleza menos ostensiva, então discreta e delicada. E nem tanto pelo desenho, mas pela ornamentação. De tal maneira que a Tumba de I’timād-ud-Daulah – uma atração quase secundária em Agra – torna-se de tal modo, uma curta e agradável visita para qualquer visitante, mesmo o não apreciador da arquitetura mogol.
A “caixa de joias” – como costumam descrevê-la – não tem a glória, o romantismo e talvez nem o amor que inspirou a construção do Taj Mahal. Mas sabendo-se que foi nela que inspirou-se o projetista para desenhar aquele, o símbolo do amor eterno – o Taj, que mais tarde consagrou-se como obra prima da humanidade e uma de suas maravilhas da humanidade – esta pequena caixa toma outro valor.
À beirado rio Yamuna, construído entre 1622 e 1628 num pequeno terreno ladeado por jardins e córregos, muito embora discreta, é obra de grande importância arquitetônica, já que marca a transição entre a primeira fase da arquitetura monumental mogol – em arenito vermelho e com decorações em mármore branco e preto – e sua segunda fase, esta a qual me refiro. Além do mais, foi o primeiro monumento construído inteiramente em mármore branco na Índia, com o qual inaugurou-se o ciclo de construções monumentais baseadas naquele material e também o emprego da técnica de ornamentação denominada pietra dura, usada no Taj Mahal, aquele trabalho magnífico, de inspiração italiana, que consiste na incrustação de pedras semi-preciosas na pedra branca polida.
Sobre umaplataforma de arenito, ele tem este trabalho nos quatro lados e ornamentações islâmicas admiráveis, que muitas vezes atenuam a por vezes severa demais simetria do “caixote”, o que lhe confere grande personalidade, além de beleza e uma aparência muito peculiar.
A entrada para o jardim é feita cruzando-se um portal de arenito vermelho, da fase anterior, de frente para o rio Yamuna. Logo depois o túmulo aparece e domina a paisagem, tirando do visitante toda a sua atenção. Ao aproximar-se, este perceberá que cada milímetro do mármore foi decorado com as incrustações em topázio, lápis-lazúli e ônix, entre outras, cujos motivos ornamentais de origem persa, representam ciprestes, taças de vinho, frutas e vasos de flores, até os afrescos ainda relativamente bem visíveis do interior.
Uma caminhada pelo complexo revela ainda outras pequenas dependências, um jardim e canais de água e a ausência de turistas, algo que me surpreendeu, tal a importância da obra. Ao chegar à margem do Yamuna avistei uma Agra diferente da que até então visitáramos: altas chaminés de tijolos de indústrias hoje desativadas, outrora poluentes, e do rio seco e assoreado, provavelmente também poluído. Foi uma breve visita, contudo da qual trouxemos agradáveis lembranças.
Cinema Paradiso [Love Theme] by Pat Metheny and Charlie Haden – Beyond the Missouri Sky (Short Stories) 1996
Ainda era manhã cedo no Mehtab Bagh. Não mais madrugada, quando estivéramos no Taj Mahal, contudo logo depois disso. Ali, do outro lado do Rio Yamuna tem-se uma vista incomum e a possibilidade de um Taj só para si. E assim foi. Quero dizer, praticamente, pois se bem me recordo, além de nós havia dois felinos pingados, vacas pastando, um bando de pardais e um casal de jovens a quem atrapalhamos o namoro. Sem intenção, mas quebramos – e, pior – talvez irremediavelmente, o encanto daqueles olhares apaixonados, da troca de sorrisos cúmplices e até dos suspiros que atravessavam a cidade. Ignoravam o mausoléu dando-lhe as costas, seu único pecado, é bem verdade. E com justa razão não devem ter feito de nós um bom julgamento, embora apenas eles, os astros e Shiva saberiam dizer o que pensaram de nossa interferência naquele jardim perfeito, em seu momento no único pedaço sossegado, vazio e desocupado de gente e de turistas nas proximidades de Agra. Ainda por cima com vistas para o Taj Mahal, o monumento ao amor eterno.
Os namorados, de costas para o Taj Mahal…
Mas já era tarde, estávamos ali onde nem as buzinas da cidade chegam, embora sim os murmúrios dos turistas lá no belíssimo, icônico mausoléu do amor eterno de Sha Jaham por Mumtaz Mahal. O lugar é simples, embora surpreendente, tanto que dele trouxemos a segunda mais bela recordação de nossa visita do Taj Mahal. Só para nós e o casalzinho.
Do outro lado do rio, como vimos o Taj Mahal…
Seguimosem frente com celeridade em direção ao rio e ao que nos interessava, caminhando por uma aleia rodeada de árvores verdes e bem cuidadas, pequenas e de copas bem aparadas. Chegamos às proximidades da margem do rio e pudemos avistar os contornos, não todos os detalhes, com a nitidez que o céu indiano permite, e o pedestal elevado do mausoléu.
Ainda sob a intensa névoa que marcara aquela manhã, misturada então à poluição atmosférica indiana, o monumento permanecia fabuloso, quase igual ao que eu conhecera antes daquele mesmo ângulo em fotos magníficas vistas na Internet, provavelmente porque eu o avistava não como enxergam os olhos, mas um sentimento..
Do outro lado do rio, como na Internet vimos o Taj Mahal…
Olugar pouco conhecido pertence ao lado B turístico de Agra, é raramente visitado e para ali vão apenas os que procuram além do óbvio e do conforto. Muitos não imaginam a esplêndida vista e as experiências marcantes que se podem viver ali, embora nem seja de fato preciso, pois o Taj Mahal é lindo observado de qualquer ângulo.
Concebido para ser apreciado à luz da lua, o antigo jardim público em estilo indo-persa foi desenhado com base nos quatro jardins do Paraíso do Alcorão. O rio Yamuna, importante afluente do rio Ganges, no Inverno não parece um rio, senão um arroio, e sabendo tratar-se de um caudaloso curso d’água na época das monções, é chocante vê-lo como a cloaca da cidade. Pilhas de lixo às suas margens assoreadas, vez por outra desgarram-se para preguiçosamente seguirem seu curso até a morte num ralo final. Ali já não não se encontra mais a fileira de templos, cujo único restante hoje está à beira a ruína.
À beira do Yamuna, o que restou dos pequenos templos do no o Mehtab Bagh
Enquanto eu observava, tentava conceber o lugar e o rio em seus tempos originais – do imperador e de sua amada – magicamente como os supunha, sob uma atmosfera esplêndida de contos islâmicos, um lugar romântico, encantador, bonito, sereno e apropriado às fantasias.
Curtimos bastante o breve momento que passamos no jardim, mas naquela altura eu só desejava o café da manhã. Retornamos ao hotel para o merecido desjejum de um dia em que despertamos às 5 da manhã para a visita ao Taj Mahal ao nascer do Sol. E ainda havia muito o que visitar em Agra.
Voltamos pelo mesmo caminho e passamos pelo mesmo casal. Observei-os de viés e provavelmente eles a nós. Meu pensamento era um só: de desculpas. “Nos desculpem por termos feito aquele pouquinho de sua vida parar de ter graça, porque só quem não sabe o gosto de namorar, não conhece o prazer de namorar escondido.”
Ainda não era noite, mas a natureza pontual já fazia o Sol encostar no horizonte. Enquanto admirávamos o espetáculo, seguíamos escorregando silenciosamente na água leitosa do rio Ganges, no mesmo lugar onde pela manhã víramos o sol nascer. Passávamos por palácios, por templos, escadarias grandiosas e hindus aglomerados em ghats praticando seus rituais sagrados. Já com o céu escuro, chegávamos ao Ghat Manikarnika, o mais sagrado lugar de cremação de toda a Índia, na capital espiritual do país. O fim da tarde havia sido bastante entusiasmante com o passeio a pé pelos becos escondidos da cidade onde muitos passam seus últimos dias, e por onde os corpos são carregados em padiolas em direção ao rio para serem cremados. E embora a experiência neste dia tenha sido intensa, nada se compararia ao que estávamos por experimentar.
Hindus aglomerados em escadarias defronte ao rio em rituais de banho
Estacionamos a dez metros de onde as fogueiras quase nunca cessam, e entre tantas que ardiam, uma esperava por um corpo que acabara de chegar. Envolto em tecido branco, era de um homem, já que em vermelho seria de uma mulher jovem, e em dourado de uma mulher idosa. Ao seu redor, enquanto alguns já ardiam, outros já haviam se tornado cinzas e alguns despejados no Ganges. Cães e vacas circulavam entre eles, como parte natural do ritual.
Deve ter esperado emalgum albergue próximo sua vez de morrer, como muitos o fazem na cidade para onde vão os moribundos, contudo, agora, era apenas um corpo que em vida escolheu morrer em Varanasi – algo que um hindu tanto exalta, pois é como pode interromper seu ciclo de reencarnações, o jeito como sua alma encontrará a liberdade definitiva. Teimo em acreditar que mesmo assim nãolhe faltassem razões para viver. Contudo, chegara sua hora e, então, de tudo o que lhe aconteceu ou poderia acontecer em vida, já não importava, senão atingir o moksha, a libertação do ciclo de sofrimentos na vida terrena, um dos pilares da fé hindu.
Escorregando silenciosamente sobre a água leitosa do rio sagrado
Fé na morte e fé no rio
Enquanto eu observava aschamas devorando corpos, ouvia ossos e crânios estalando e percebia novos cadáveres chegando sobre padiolas de bambu. Carregadas por membros masculinos da família, o filho mais velho seguindo as tradições coordenava tudo, e nunca aparentava tristeza, embora ali, quem veja cara, não enxergue coração, pois sabe-se que lágrimas atrapalham o desprendimento do espírito. Ele deve encarar tudo com naturalidade, e caminhar três voltas ao redor da pira segurando um feixe de palha embebida em cânfora, assim como jogar pó de sândalo sobre o corpo para amenizar o odor de carne queimada – antes que um dalit acenda os trezentos quilos de madeira para que fogueira queime por três ou quatro horas.
Ouvíamos cânticos em hindi e orações dispersas, enquanto membros da família queimavam incensos. Assistíamos a um funeral, que muito embora não aparentasse ser festivo, também não nos permitia que o presumíssemos sofrido. Parecia mesmo um alívio, um momento auspicioso, algo antes muito esperado.
Nasuperfícieda água a luz de cada fogueira se espelhava, formava rastros compridos e chegava até nós, de tal maneira que pareciam ter a intenção de ligar a terra aos barcos, as cremações aos espectadores. Tingiam a água, os prédios, céu, gente, tudo de dourado. Tornavam o momento no único que eu pudesse considerar poético, e eu via naquilo tanto beleza quanto dignidade, ainda que sob uma atmosfera com energia estranha, intensa, nervosa e lúgubre. Mas o rio brilhava e a cena às vezes parecia de uma tela impressionista, que mesmo sem leveza era repleta de paz e com um silêncio encantador. O frescor também se notava na pele, vinha da superfície do rio, e formava uma bruma que nascia da água e sumia depressa no ar. Nós sentíamos muito frio e nos embrulhávamos do jeito que podíamos.
Permanecemos aliexercendo nosso “voyerismo” crematório, com os olhos pregados, os ouvidos atentos e as respirações inaudíveis, a não ser por um ou outro suspiro. Percebíamos vozes longínquas e esporádicas chegarem até nós. Vinham da terra, mas pareciam de um mundo paralelo e surreal, que embora triste e chocante, era bastante atraente. Não sei dizer se interpretavam nossa presença como uma perversão, ainda que não fosse nossa intenção, que nosso deleite visual era respeitoso, admirável e digno, mesmo sendo um funeral.
Na manhã seguinte, com o dia a Sol raiado, voltamos ao mesmo lugar. A água e o céu tinham outra tonalidade, eram rosados e não havia cremações. O frio, contudo, ainda era bastante inconfortável. Deixamos o barco e caminhamos por trás do ghat de cremação, passando por depósitos de lenha, avistando tudo de outra perspectiva, sobretudo do lugar onde os corpos na noite anterior foram cremados.
Ao mesmo tempo, as ruas paralelas e transversais que conectam a cidade ao Ganges, começavam a se encher de vida, de gente, de animais e crianças, com a proximidade entre vida e morte tornando tudo muito curioso e interessante. Fiz muitas fotos, retratos da vida na cidade da morte, e saí muito marcado dali, como acredito todos nós, sobretudo com o sentimento de que a vida é um enorme conforto, e o que acabáramos de assistir na noite anterior e naquela madrugada e alvorecer, um dos grandes privilégios que ela nos proporcionou. Concluí que há poucos lugares tão crus, tão chocantes e que não fazem questão de esconder suas verdades quanto Varanasi. E que dificilmente uma cidade ocupará um lugar tão marcante em minha vida de viajante pelas experiências que me proporcionou.
Piano Sonata no. 16 ‘Facile’, K. 545 – II. Andante – Mozart
O motorista sentou-se em silêncio, tomou seu lugar, fechou a porta, ligou o motor e partiu. Era cedo, eu sentia o evidente frescor do Inverno indiano, e na atmosfera, a inconfundível personalidade do Rajastão, mas muito embora os dias na Índia sejam quase sempre imprevisíveis – às vezes também indecifráveis – daquele eu esperava que corresse como eu o imaginara.
Meu olhar grudou-se na janela na rodovia a caminho de Jodhpur. Mergulhado em minha teimosia exploratória, vivia eu o gosto da ânsia de observar tudo, de admirar, contudo sem consumir ou profanar. A van era um exílio, o paraíso de onde confortavelmente avistávamos os sempre presentes dramas humanos do cotidiano indiano. Assim que saímos da cidade e entramos no deserto, ele nos engoliu. E embora com sua serenidade, diferentemente do jeito agressivo das cidades, também com um jeito desordenado e aleatório, revelou um desfile humano de graças e desgraças, de momentos perfeitos e imperfeitos, sublimes e entristecedores, tudo o que sempre todos que visitam a Índia vivem.
Mas ali, no deserto, aspessoas são mais esparsas. Não que sejam diferentes, contudo não se multiplicam como nas cidades, razão porque cativam mais os olhares. As mulheres, por exemplo. Enchem de graça e cor a cor do Deserto Thar, e de prazer os olhos de quem as avista. Vestem-se com tradição, usam ghagras, cholis e odhnis[1]de cores ácidas e intensas. Já os homens, não, bem mais discretamente. Elas carregam feixes ou bacias de água nas cabeças e andam com graça e equilíbrio. Já outras ficam à beira da estrada, aparentemente sem terem o que fazer. Não raramente, também avistam-se aleijados, cegos e toda a sorte de infelicidades que os tornam incapazes, para além de elefantes, camelos, cães sarnentos e magros, vacas, macacos, cabras e outros bichos.
Porque na Índia é assim, às vezes nos arrebata e encanta, emociona e alegra, noutras, faz doer, fere e marca como cicatriz, tal qual aquelas que um dia foram feridas, e que toda vez que as olhamos, percebemos não doerem mais, contudo lembram-nos de terem doído. Foi assim naquele dia. Não dói mais, mas lembro-me ter doído. Tão forte e de tal modo que agradeço à Índia por ter me dado tanto. Graças à vida!
Namastê, Índia!
[1]Ghagra, saia longa bordada e plissada, colorida, estampada, de seda, algodão ou crepe. Kanchli (ou choli ou kurti), vestimenta da parte superior do corpo, colorida e lisa, coladas no corpo. O toque étnico é dado por enfeites como espelhos, miçangas, lantejoulas, corais, conchas e bordados. O odhni, ou chunar, é um pedaço longo de tecido, com 2,5 metros de comprimento e 1,5 de largura, usado como véu, feito em tecido leve e transparente, bordados com contas ou outros enfeites.