In her family, de Pat Metheny, lançada em 1987, no álbum Still Life (Talking).
Eu já funcionava, mas não o sol. E apesar de tão cedo, fazia muito sentido estarmos ali. Eram cinco da manhã enquanto esperávamos para vê-lo nascer sobre uma das obras mais célebres do mundo, um símbolo de poder e do amor. Mas havia a névoa. E ela nos chegava aos narizes, como se nos avisasse “Não se animem!”
Acabáramos de realizar a proeza, a crueldade de acordarmos às quatro e meia da madrugada para aguardarmos a abertura dos portões do jardim do Taj Mahal, numa fila de perder o rabo de vista. Fila indiana, com parte da multidão que diariamente visita o lugar – cerca de 40 mil turistas -, todos na mesma espera. Embora ansiosos, aparentavam-se enfadonhos. Ou sonolentos, quem sabe. Eu, por exemplo, refletia: “É só ter calma que passa.”
O momento da verdade chegara, afinal, quando passava pouco das seis e abriram-se os portões. Sentíamos frio. E por razões de sobrevivência, também o corpo tremer. Caminhamos com celeridade desnecessária, embora aceitável, pois no fim das contas, o esperado encontro com o túmulo é ainda mais fabuloso sob os primeiros raios da manhã.
Adentramos o imenso jardim enevoado até chegarmos ao Charbagh[1], o grandioso portal de entrada com uma vista inspiradora para o mausoléu. A visita poderia terminar ali e já teria valido. E nem precisa aquele o sol nascer tão caprichosamente, vazando certeiro por uma das janelas do arco. Justamente ali começava o primeiro truque que arquitetos e artesãos do Taj Mahal usaram para arrebatar olhares, tocar corações, marcar mentes: quando o observador se aproxima do portão, o arco emoldura o Taj ao fundo, contudo, o monumento parece incrivelmente próximo e grande, mas bastam poucos passos em sua direção para que diminua seu tamanho, ilusão exatamente oposta à que se espera.
Assim que cruzamos o portal, o Taj apareceu envolto numa névoa tão espessa que embaçava a visão até ao nível do chão. E o tornava um pavão, nada misterioso, mas uma intencional obra com pompa e ostentação, num símbolo maior da glória, da riqueza e esplendor do império mogol. Um luxo impensável para um túmulo, mas uma obra que tornou-se maravilha do mundo. Conta a história do amor do príncipe Shah Jahan pela princesa Mumtaz Mahal. E encanta. Há séculos. E a tantos outros visitantes, poetas, seresteiros, namorados, escritores e fotógrafos que parece fazer a todos acreditarem que amor, amor mesmo, só aquele. E quanto mais o olharmos, mais perfeito nos parecerá.
Um belo caminho central, cercado por gramados e uma linha de pinheiros cipriotas em ambos os lados, conduz à plataforma elevada e retangular, em cujo topo fica o mausoléu circular. Uma série de fontes de água encantadoras torna a caminhada até a entrada do mausoléu uma experiência memorável.
Distante dele percebe-se uma nova ilusão: embora os minaretes ao redor da tumba pareçam perfeitamente verticais, inclinam-se para fora, de tal modo que proporcionam um certo desconforto visual em relação ao equilíbrio estético. Mas a função proporciona aos pilares a capacidade de tombarem para o lado oposto ao do mausoléu, desintegrando-se sem prejuízo à cripta na eventualidade de um terremoto. Dentro dele, os túmulos de Mumtaz Mahal e Shahjahan, cercados – ou protegidos – por paredes esculpidas em puro mármore branco, artisticamente incrustadas com pedras preciosas, e inscrições do Alcorão nas paredes laterais, dão o toque religioso ao mausoléu.
É fácil entender o porquê de sua magnitude e riqueza: havia tanto dinheiro quanto amor e dor pela perda, condições para a reunião de safiras, ametistas, jades, ágatas, turquezas e lápis-lazulis vindas do Iêmen, do Afeganistão, da China, da Pérsia e do Ceilão, para serem incrustradas em mármore makrana branco extraído no Rajastão. Imaculadamente branco, diga-se. Pedras que através de um trabalho denominado pietra dura[1] revestem todo o mausoléu, num resultado magnífico, especialmente belo se observado à luz do sol nascente. Quando a névoa deixa, claro.
Xá Jahan, o imperador que apaixonou-se à primeira vista por sua futura esposa – Mumtaz Mahal -, e pela qual alimentou um amor obsessivo, perdeu-a aos 38 anos, quando deu à luz seu 14º filho depois de 19 anos de vida conjugal. A história desse amor ,depois da morte de Mumtaz, teve um final trágico: o filho de Shah Jahan – Aurangzeb -, farto dos desvarios do pai, que quase levaram o império à falência, tomou-lhe o trono, o poder e o aprisionou no Forte de Agra, onde permaneceu os últimos 8 anos de sua vida confinado num cômodo com vista para o mausoléu.
Ahistória tornou-se piegas, mas ainda toca. Talvez não tanto quanto a simetria e a qualidade do desenho, quanto os conceitos e o partido arquitetônicos, características que a consagraram como epítome da arquitetura mogol, bem mais que sua função, embora na Índia tantas outras existam com a mesma marca da cultura indo-islâmica.
Então, toda sua histórica vem transcendendo dinastias, indivíduos, poderes e domínios, e quer queiram, quer não, permanecendo tanto uma ode ao amor quanto “Um sonho em mármore, desenhado por fadas e acabado por joalheiros.”[1]
Shah Jahan terminou seus dias aprisionado aqui, no Forte de Agra, confinado num cômodo com vista para o mausoléu
[1] Rabindranath Tagore, conhecido como Gurudev, foi um poeta, romancista, músico e dramaturgo bengali do final do século XIX e início do século XX, que assim definiu o Taj Mahal.
[1]Pietra dura ou pietre dure, chamada de parchin kari no sul da Ásia, é uma técnica de incrustação utilizando pedras coloridas, muito polidas, cortadas em formatos específicos e encaixadas para formar imagens. É considerada uma arte decorativa.
[1]Charbagh (chahār bāgh) é a denominação que se dá ao jardim em estilo persa, cujo layout tem quatro lados didividos por caminhos e por canais de água. Em persa “Chār” significa ‘quatro’ e “bāgh“, ‘jardim’.
Beyond TheMissouri Sky, por Charlie Haden e Pat Metheny
Nesses tempos difíceis, cada um arruma seu jeito de suavizar em si os maus efeitos. Há quem faça exercícios, coma compulsivamente ou não faça nada mesmo, se entregue. Eu ouço música, leio, escrevo e trabalho. Não necessariamente nesta ordem, mas tal qual a fome em dia de apetite, as duas primeiras atividades ligam com voracidade minhas memórias de viagens ao desejo de descrevê-las. Pouco mais de dois anos depois, vivo a força da lembrança de um desses dias marcados feito cicatriz na memória. Dele sinto até os cheiros da chegada a Fatehpur Sikri – antiga capital do império mogol, de beleza espantosa – que tornou-se inapagável em minha mente.
Chegando à pequena cidade, não era, mas o que eu avistava parecia miragem. E como para mim todas as coisas devem ter que fazer sentido, destinei-lhe um olhar não resumido, um ato inconsistente que aquela vista majestosa jamais perdoaria. Ao contrário, o meu era de uma polidez e prudência recompensadas por uma das vistas mais superlativas que eu já experimentara, e de uma beleza e equilíbrio que minha capacidade de descrever inibem. Não era devaneio, senão tão concreta quanto não seria possível às ilusões.
A soberba estrutura de arenito apresentava uma simetria admirável, paredes enormes com esculturas detalhadas. Nenhum de seus espaços aparentava estar mal preenchido. Eu não estava ali para encontrar defeitos e, afinal, não acreditava que houvessem. Tomado pela admiração corri os olhos pelo topo, encerrado com pequenos e grandes chattris, cujas formas e desenhos iguais se repetiam podendo sugerir tédio, mas sequer um deles fora mal colocado, senão demonstravam que não havia qualquer linha se perdido no papel de quem os imaginou. Entre os desenhos geométricos da marcheteria também. Embora aos milhares, nenhum minúsculo pedaço de mármore branco ou preto fora erradamente assentado. E como se não bastasse, arrematava-se o portão por colunas altíssimas, esguias e elegantes, com invejável efeito sobre a observação do espectador. Assim foi minha primeira impressão do fabuloso Buland Darwaza – ou “Portão da Vitória” – de Fatehpur Sikri.
Logo que descemos do micro-ônibus lotado de nós e de outras sardinhas indianas, deparamo-nos com uma obra que me desafiava a razão. Talvez apenas olhares negligentes não experimentassem a sensação de hipnose. Sim, havia gente displicente, não tocada por sua grandeza, que subia os 42 degraus sem olhar para cima ou para a frente. E então, depois da travessia “perigosa” do portão, era engolida pela enorme boca para ser expelida no interior.
Quanto mais eu me aproximava, mais agradável e estimulante se tornava a ideia de reviver a experiência: atravessar pela segunda vez o maior portal do mundo, guarda da ainda mais impressionante cidade abandonada de Fatehpur Sikri.
Para além de elegante e de exemplo eterno da magnífica arquitetura mogol, o monumento é um dos mais representativos da genialidade de Akbar, de tal maneira que chegar novamente ali tornara-se um presente, sobretudo depois de um dia de viagem. Não que o caminho fosse transtorno. Ao contrário, fora de saborear cada quilômetro de retas e curvas, de povoados e descampados entre Jaipur e a “Cidade da Vitória”, mas nada se igualava ao poder daquele portal. Comprometedor de minha razão e equilíbrio, lugar onde toda a Índia mogol parecia caber, embora natural minha admiração, era inesperada a sensação de cruzá-lo para chegar ao imenso pátio interno. Permanecemos mais de uma hora visitando a Jama Masjid, o Buland Darwaza, a Tumba de Salim Chishti, o Diwan-i-am e o Diwan-i-Khas. E para um apreciador da arte e arquitetura, Fatehpur Sikri consagrava-se para mim num local imperdível, cujo estilo hindo-islâmico consagrava-se num conjunto de notáveis exemplos onde se percebem a personalidade do grande imperador.
Nada na Índia é banal, e qualquer visitante estrangeiro perceberá isso bem antes de visitar Fatehpur Sikri. Mas terá sido ali que se reconhecerá ordinário diante de tamanha grandeza. Terminada a visita, em sabia que estivera num lugar fabuloso a menos para conhecer no mundo.
Uma manhãde domingo à primavera, um sol magnífico, um dia desses que se podem chamar de “macios”, quando tudo é bom, funciona e cai bem. Lá fora e aqui dentro. Um olhar neutro pela janela e outro para a estante de livros. Neutro, mas não insensível. E embora a abertura esteja hermeticamente fechada ao ar e ruídos, a vista penetra e perde-se dentro de mim e da casa.
A melodia deMozart toca na caixinha de som e me segue os passos. Enquanto busco um café, ela vai minguando nos ouvidos à medida que me afasto, mas não morre. Volto e olho para o mapa-múndi preso à parede. Detenho-me nele, mais uma vez exercendo o simples, eterno grande prazer de viajar num mapa. Olhando assim, o mundo até me parece pequeno, mas a carta é um vasto mural onde tenho a sensação de que mesmo num vislumbre, encontro mais lugares desejados do que eu daria conta visitar. Perco-me neles e depois aponto o olhar atenciosamente para o Marrocos e nada mais me prende ali. Sento-me à escrivaninha e navego na Internet, tomo as primeiras ondasde nossa road trip pelo país do Magreb[1]. Componho, nas teclas do notebook – e inspirado por Wolfgang – as notas iniciais desta viagem, que mesmo antes de sairmos já gruda em mim.
Meses depois, no escritório, observo pela janela a serra da Tijuca e avisto os extravagantes picos da Pedra da Gávea, da Tijuca e do Bico-de-Papagaio. Reconheço a sorte e o privilégio de ter vistas assim desde minha mesa de trabalho e em casa, de tal maneira que digo sempre: “ah, que sorte essas minhas janelas!” Em breve eu estaria a viajar com quem tanto amo, admiro e aprecio a companhia. Que belo e inspirador motivo para escrever.
Ao meu irmão, cunhada e companheira dedico estepost.
Ali e assim continuei a anotar as palavras e frases que acentuavam meu entusiasmo criador para a narrativa desta viagem. Um fragmento do que leio, em especial me atrai: “Não há nada além do vazio, e isso é beleza”[1]. Ditas por Paul Bowles em “O céu que nos protege”, referem-se ao mesmo percurso rodoviário que faríamos entre Casablanca e Marrakech.
Ah, as minhas janelas…
A mente transborda-se de lembranças das minhas outras idas ao Marrocos, imagens descem da memória como água em cachoeira, sinto sensações na pele e prazeres na mente enquanto rememoro cada uma das surpresas sucedidas desde o oceano às dunas, todas tão inesquecíveis e bem marcadas que nem eu imaginava estarem guardadas com tal fidelidade e transparência. Reajo aos estranhos costumes, às cidades modernas com ares europeus, às outras antigas e paradas no tempo, aos tetos de madeira entalhados e delicadamente pintados das madrassas, aos intrincados mosaicos cerâmicos e à natureza, não só a das montanhas do Alto Atlas – com seus picos nevados – mas às da planície do pré-deserto, o Saara[2].
Não me dou conta e já estou às portas dos confins do profundo Marrocos. Vejo-me admirando os palmeirais, avistando camelos sem rumo no deserto, plantações impecáveis de verduras, tudo sob um céu azul pleno e dolorido nos olhos. Não me contenho e sento-me num tapete dentro de uma loja especializada num souk e gosto de deslizar a ponta dos dedos sobre a lã. Depois, chego a sentir o cheiro das especiarias vendidas a granel e o sabor da comida. Foram tantas as vezes que estive no país que minha imaginação já não precisa mais inventar um Marrocos, sua integridade e originalidade estão comigo em tudo: terra, arte, ar, sabor e cheiros.
Vagueio naquelas ruas estreitas, sinuosas, vazias de gentes e vozes
Vagueio por uma rua qualquer, igual às muitas que há no Marrocos. Rua sem fim, estreita, sinuosa, vazia de gentes e de vozes, um cânion de paredes altas chapiscadas e pintadas. Sinto uma inquietação sem propósito, como se ao fim de cada curva um perigo me esperasse. Sem sentido, porque não há nada nem ninguém a me olhar de esguelha por um vidro de janela.
Chamado pela força do Marrocos, movo-me num voo excitante até pousar em Casablanca, não pela primeira vez, mas, ah!…o litoral Atlântico… Dali, o rigor do planejamento segue a longa viagem desde a borda do mar até o pré-deserto. Devo parar ou seguir o curso do imaginário? Não tenho a insensibilidade da apatia, então deixo em aberto o que a mente quiser, porque, afinal, imaginar-me viajando e perder-me por países e lugares, não dar raízes aos desejos e não pertencer sequer a mim costuma ser quase tão bom quanto o viajar de fato. Flanar assim também é viagem. Você que me lê, me entende, sobretudo quando o faço pelo mundo islâmico. Deixo, então, que a fantasia siga seu curso lógico pelos 1.200 km de asfalto até Marrakech. A estrada é boa, um belo contraste entre o preto do asfalto e o ocre da terra. Passo por Rabat, Chefchaouen, Meknes e Fez antes de entrar no pré-Saara. Não fosse o silêncio, eu pensaria já viver cada quilômetro do roteiro, como se já rolasse a vida turístico-mundana, embora a realidade presencial só mesmo em dezembro, quando o inverno chegasse ao Marrocos e a imaginação desse lugar à visita.
Perdendo-me deliciosamente por este pedaço de bom caminho do oriente islâmico, revejo a harmonia dos desenhos ornamentais, da arquitetura árabe, da combinação magistral da geometria com as cores e traços dos mosaicos cerâmicos. Como os admiro! São engenhosas formas que mesmo repetidas não me cansam o olhar. Sua desmesura imensa dão-me sempre o sentimento de que fitá-las é sempre viver o prazer do fascínio, da admiração, seja num estuque, entalhe, mosaico ou grade de ferro.
Nas ruas vejo homens vestidos com gelabas de capuzes pontudos, cuja aparência fazem-nos parecerem sábios místicos da Idade Média, embora gente comum. As mulheres usam lenços coloridos, e sabendo ou não, tornam-se belos contrapontos à sisudez dos cinzas masculinos. Imagino que lá as nossas queridas e insuperáveis companheiras de viagem também não resistirão, haverão de adornarem suas belezas tal qual o jeito marroquino, com belas pashiminas e lenços de seda ou boa lã de camelo e carneiro comprados no frenesi do coração secular do souk de Fez, como se não bastassem as trazidas da Índia um ano antes, em cuja pose “desinteressada” capto com um olhar apaixonado e a lente de minha câmera.
A visita virtual começa pela moderna Casablanca e já antes do passeio inaugural da primeira manhã, me vejo tomando um café espresso na Marilyz Delice, boulangerie e pâtisserie instalada numa loja em bonito prédio no estilo Art déco, bem às portas de nosso hotel.Ora, já não era mais um sonho!, senão a viagem por um Marrocos visível e audível, a realidade transcendendo a imaginação, a magia do início da jornada pela agradável capital à beira do Atlântico, a realidade, a viagem tornando real o sonho.
Em Casablanca, muito embora evoque imagens hollywoodianas do filme homônimo mais romântico de todos os tempos, não se ouve sequer um sussurro do romantismo que o filme sugere. É bem aí que começa o problema para quem procura cenários do filme de HunphreyBogart e Ingrid Bergman. Melhor, então, saber que sequer um segundo do filme foi rodado na cidade, tampouco no país, senão todo num estúdio de Hollywood, a 10.000 quilômetros de distância. As lembranças da história de amor passada em Casablanca, contudo, ficaram e ainda inspiram. De fato, há um Rick’s Café na cidade, inspirado no do filme, feito para turistas por uma estrangeira, instalado numa mansão e projetado para lembrar o clássico do cinema de 1942. Dizem que fizeram um bom trabalho, mas não pude constatar, pois embora eu tenha tentado reservar uma mesa para quatro, sequer me deram resposta aos dois e-mails que enviei pelo canal do site.
Ah, o litoral Atlântico…
A avenida marginal litorânea é comprida, larga, clara e bem calçada, tem restaurantes e cafés, espaçados, gente caminhando, simplesmente observando o mar ou assistindo ao pôr do sol. Paramos diante da Mesquita Hassan II, obra de arte arquitetônica monumental à beira do Atlântico e, mais tarde, caminhamos pelo Bairro de Habous – um dos mais antigos da cidade – passando diante do Palácio Real, que não se visita.
O sol foi se pondo e voltamos para o hotel. A noite foi bem dormida. Na manhã seguinte pegamos a estrada em direção a Rabat, e no caminho visitamos, Chellah – um sítio arqueológico da romana Sala Colônia, necrópole medieval de uma dinastia berbere – além da Kasbah dos Udayas.
Ao meu irmão, cunhada e companheira dedico este post.
[1] O Magreb é a região ocidental do norte do continente africano. A palavra tem origem árabe e significa “onde o Sol se põe”. Países do Magreb: Marrocos, Tunísia, Argélia, Mauritânia, Saara Ocidental (território controlado pelo Marrocos).
[2] Paul Bowles, autor de “O céu que nos protege” (Thesheltering sky), levado para o cinema por Bernardo Bertolucci com muita dignidade, em 1990, em algum momento de sua autobiografia.
[3] O “Deserto do Saara” é a maior redundância do mundo: ṣaḥārā é a transcrição em alfabeto latino da palavra árabe صحارى, que significa ‘desertos‘. O resultado, se você traduzir, é algo como ‘deserto dos desertos‘, ou simplesmente ‘deserto deserto‘.
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A seguir
Do mar à montanha: Casablanca a Marrakech (com fotos!)
Sempre e para sempre, uma canção: Always and Forever
Muitas vezes viajei numa música. Acontece, e sempre que acontece é inesperado, as canções entram e asilam-se no coraçãoe na mente. Algumas, até bem mais que melodias, tornam-se relações, e como as cicatrizes, permanecem sempre e para sempre, embora nem todas sejam veículos que carregam momentos e histórias; tenho mesmo muitas que marcam-me simplesmente por sua beleza e harmonia. Assim, desse jeito, sem outra pretensão, vão ficando no corpo feito tatuagem, sem dor, mas com a beleza da naturalidade, a delicadeza de um toque, embora com a profundidade de uma raiz. Não preciso desejo, assim com o elas não de intenção, para que no coração passem a palpitar e na mente a vibrarem, sempre e para sempre, umas levemente, outras arrasadoras, e quando acionadas por gatilhos emocionais ou pelo simples prazer da audição, voltam a emocionar. As mais antigas, em sépia ou preto e branco, as recentes, em multicoloridas lembranças.
São canções e não quaisquer, porque não é provável que no meu espaço mental se abra algum lugar para ascambaleantes, as que deixam apenas rastros ou, nem assim, até coisa nenhuma. Refiro-me às que incompreensivelmente ou com razões infinitas voltam da consciência trazendo fragmentos da minha vida, dando ainda mais beleza à existência. Se eu pudesse, agradeceria a cada um de seus autores, especialmente ao desta melodia – Always and Forever – o tema musical escolhido para este post, compostapor Pat Metheny e publicada em 1992. Desde então – e já na primeira nota – tornou-se a “minha” canção. Creio que seja uma ode ao amor mas, estou certo, foi feita à luz de uma sensibilidade invejável, um talento talvez superado apenas pela própria emoção do autor. Mais do que uma bela canção que vem marcando alguns dos mais belos momentos de minha vida, tornou-se uma companheira, como se fosse parte de meu destino, melodia que assim como tantos lugares que já visitei, sempre e para sempre me acompanharão na lembrança.
Uma data para não esquecer
Dezembro virou Janeiro e completei mais um ano de vida. Eu e ela. Sessenta e oito anos juntos, feitos um para o outro, falando com igual fluência a mesma língua. Ainda moleque dei-me conta da paixão e lhe propusunião eterna. Jamais recebi sua resposta, contudo, persisto – resiliente – para a cada novo aniversário voltar ao pedido. Espero tocar-lhe um dia, que a relevância de minha profunda falta de gosto pela morte supere seu silêncio. Levo a vida, sempre dura – às vezes deliciosa, noutras hedionda – consciente de que vou morrer, não sei o dia, mas será a contragosto e levarei saudades da Bahia. E ainda que a morte não me cafungue a nuca, não ando por aí dando sopa. Ela sabe que seja lá quando for, ficarei tiririca da vida e tomarei as providências cabíveis.
Até aqui fiz minha parte: se existia algo que eu pudesse fazer, foi feito; se não, paciência. E se a morte achar que merece ser bacana comigo, conto com seu derradeiro gesto de boa-vontade: deixe que eu vá sem perceber ou, então, que não seja afoita, senão um tipinho desses impontuais. E se por acaso a sorte resolver estar comigo na hora, que o carreto que leva a gente desta para melhor esteja tão apinhado que eu fique para depois. Mas, quando chegar o irremediável “grande final, o dia do salto mortal”, que eu seja da morte um distante espectador.
Ao completar 68 anos de idade – embora ainda não arraste os pés, nem use bengala – sei que sou idoso, razão porque lembro-me como nunca das palavras do filósofo: “todo velho tem mais apego à vida que as crianças, sai dela com mais má vontade do que os jovens”. Rousseau estava certo. Penso nisso sobretudo aqui na terra dos faraós, que ao contrário de mim, acreditavam poder levar o que adquiriram na vida para depois da morte. Já que não, concentro-me exclusivamente em aproveitar intensamente a vida – “Que nem jacaré tomando conta dos ovos” – como disse o grande e saudoso “filósofo” João Saldanha.
Meucafé da manhã foi assim, com estas intensas e arrojadas divagações que, embora estranhas, são de uma pessoa normal. Normal, ainda que não leia Paulo Coelho ou assista novelas. Podem acreditar, eu jamais frequentei a poltrona de um analista. Não sei bem se porque não acredito em psicanálise ou por temer que nunca me concederiam alta. Então, no desjejum, não precisei mais do que uma boa xícara de café forte, matar quem estava querendo terminar comigo – a fome – e refletir sobre a maravilha de viver. Logo a mente se ocupava da vastidão de coisas magníficas que há para se fazer na vida, entre elas, viajar. E, naquele dia, especialmente, o privilégio de conhecer Karnak e Luxor. Assim, após os dois milhões de caminhos que o pensamento tomou até chegarmos à entrada do complexo, meu aniversário já se tornara umadata para não esquecer, e pouco mais tarde, eu combinava a nova idade com a alegria e os prazeres do dia: a visita aos templos com adoráveis companhias.
Karnak e Luxor
Nada de investigações teóricas, de pesquisas históricas profundas ou leituras acadêmicas. Meu conhecimento era bastante básico, mas se resguardava na intenção de enriquecer-se com a prática da observação, vivendo a experiência da visita e o que dissesse o guia. Ambos os complexos me pareciam tão inspiradores, atraentes e fornecedores de experiências que não me dei conta de que marcavam o término de nossa viagem pelo Egito e do bom cruzeiro pelo Nilo. Nos ocupariam o dia com descobertas que jamais poderíamos supor, mesmo que antes as imaginássemos extraordinários.
Todos os turistas que faltaram aos outros sítios encontravam-se ali, agrupados ou dispersos, mas como em nenhum outro lugar no país. Nem mesmo nos espetaculares Museu do Cairo ou nas Pirâmides de Gizé. Na margem do grande Nilo, e cercada como sempre por deserto, Luxor é uma das grandes cidades da região, tem cerca de meio milhão de habitantes vivendo junto a um dos maiores museus ao ar livre do planeta. O sítio arqueológico remonta aos anos 3.200 a.C., embora apenas na 11ª dinastia tenha crescido ao ponto de tornar-se cidade. Igual a tudo ao longo do Nilo, é nas proximidades de suas águas que tudo acontece, cresce e prospera.
Há lugares que nem sempre correspondem às expectativas, e entre o que se espera e a realidade, alguns podem desapontar. No meu caso, para a felicidade deste otimista, encontrei muito maior número das boas e bem correspondidas expectativas do que o contrário, com o enorme complexo honrando a posição de destaque que ocupa no patrimônio faraônico, selando nossa visita com o sentimento de ter valido a pena tanta espera por visitar o Egito.
Logo à sua entrada, uma longa avenida ladeada por 1.350 esfinges conectava os dois templos, e depois uma nova rua, semelhante na aparência, embora menor e mais estreita, tinha igual impacto visual, conduzia ao indescritível conjunto, à fabulosa sucessão de pilons, obeliscos, estátuas, colunas, avenidas, ruas, templos e esfinges.
O encerramento da jornada foi sob um anoitecer encantador, como se não bastasse estarmos num dos mais belos templos egípcios. O som de um muezin numa mesquita vizinha fechava com chave faraônica de ouro nossa experiência memorável, selava com louvor a reputação do lugar, já bastante salientes.
Percebi, então, que os pensamentos matinais foram parte de um jogo da mente, um teste no qual ela pula de coisa em coisa até ter-me feito perceber o importante: o proveito que tiramos dela. E embora este relato seja de uma visita ao enorme templo da morte, à vida – a minha grande companheira de todas as horas – dedico estas mal traçadas linhas.
Deixo aqui o leitor sem mais palavras, com imagens dos adoráveis templos de Luxor e Karnak, lugares que hoje pertencem à parte especial da minha mente, reservada aos lugares mais encantadores em que já estive.
Lá longe, uma escadaria. Tão distante de mim quanto seu passado. Situada ao pé de uma falésia, ao fim de um vazio desértico lunar, a arquitetura do templo tornava o conjunto uma paisagem estranha mas admirável, cujo ar misterioso fazia meu olhar se render. A mente, até então imperturbável, afobava-se com a proximidade da ação, do contato e do prazer do toque.
O Vale dos Reis
Às vezesolho para uma paisagem e enxergo mais do que ela, uma versão do que a mente pensa ser, de tal modo que ali minha pura fantasia abstrata fazia-me avistar um “palácio”, embora eu soubesse tratar-se do templo mortuário da Rainha Hatshepsut. E aparentava mesmo ser tão raro quanto eu pensava: dedicado a uma mulher, único a céu aberto no vale, as areias do deserto não o mantiveram em segredo por milênios, como todas as demais 63 tumbas descobertas ali. Mais do que ruínas de uma gloriosa civilização, um mausoléu faraônico era a casa da eternidade de reis e rainhas, e mesmo não sendo palácios em vida,edifícios suntuosos post mortem. Lugar de quietude e repouso, por certo, mas aparentemente tão vivo e pulsante de história que me inspirava, tanto pela beleza e exclusividade, quanto pela alegria e curiosidade que despertava, de tal modo que em nenhum breve momento me aparentou ser um lugar de luto e melancolia.
Obra das mais exclusivas e diferentes de todas as que visitáramos, sobretudo as tumbas subterrâneas do Vale dos Reis, onde estivéramos pouco antes, integra o conjunto de túmulos enterrados que arqueólogos precisaram de uma vida para descobrir. Impossível não inquietar-me, pois o de Hatshepsut, além de único exposto a céu aberto, tinha três terraços sobrepostos acessados através de rampas e escadas, cujo desenho, arte e arquitetura eu já podia identificar como típicas das moradas eternas faraônicas, ainda que aquela fosse tão inigualável.
Nem todos os faraós eram homens. Hatshepsut, por exemplo, ainda que não tão conhecida quanto Cleópatra, foi uma das mais importantes do Egito Antigo. Filha do Faraó Tutmés I, nasceu em 1490 a.C., morreu aos 50 anos de idade depois de comandar seu mundo. O mausoléu, localizado ao pé de um dos morros do vale, teve muito do que havia nele, destruído e vandalizado, motivo porquê sua reconstrução lhe dá a aparência de bem mais novo. Várias esculturas em pedra e pinturas representam a história da rainha, mas são as colunas e espaços abertos, que seguem uma geometria interessante e atraente, o que impõe ao templo sua característica tão expressiva e inigualável.
As tumbas escondidas
Em 1922, o arqueólogo Howard Carter descobriu uma tumba cheia de tesouros no Vale dos Reis. Desde então, diversas outras expedições e especialistas encontraram no mesmo espaço dezenas de outras, todas consistindo de um longo corredor inclinado que desce ao subsolo das montanhas até através chegarem a uma ou mais salas e, finalmente, à uma câmara funerária, entre elas a tumba de número 62, de Tutankamon e a de Ramsés IX, as grandes estrelas do vale. Descoberta em 1922, tudo o que foi encontrado está no Museu Egípcio, no Cairo. Escavações estão em andamento para a descoberta de novas tumbas, mas muitas das encontradas estão abertas à visitação, entre elas as mais populares aquelas ornamentadas nas paredes e tetos.
Dali seguimos para os Colossos de Mêmnon, duas estátuas gigantescas do faraó Amenófis III, situadas na necrópole da antiga cidade de Tebas, tidas como guardiãs do templo funerário do faraó. Depois, voltamos ao navio, carregados de boas lembranças e imagens que víramos no dia.
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A seguir:
Karnak, Luxor e eu
Uma data para não ser esquecida
A sonorizareste capítulo, A Map of The World, linda e inspiradora melodia de Pat Metheny tocada por ele mesmo, parte da trilha sonora de minha vida, que junto a outras tantas canções felizmente me seguem desde a infância sem que delas eu me esqueça e novas outras vão aderindo.
Depois do azul do dia e de um pôr do sol encantador veio a magia da noite. Eu ainda não avistara o céu, mas o imaginava, e se fosse como tal, admirá-lo não seria escolha, mas destino. Haveria de ser tão soberbo quanto a natureza do Nilo? E tão elétrico, límpido, estrelado e carente de contemplação quanto o representado em minha mente, um Céu daqueles de ouvir estrelas?
Ora, direis, ouvir estrelas é perda de bom senso. Mas, sim, podem-se ouvi-las, como disse o poeta. Basta procurá-las num céu deserto e conversar com elas. E se toda noite possui beleza própria e seu tempo, se todo céu também nunca é o mesmo de ontem, aquele bem que poderia ser o poema que minha imaginação criara. Mas, se mesmo assim nada acontecesse como o inventado, a culpa seria tão só dela – minha mente criativa e sonhadora, a porta aberta para um romantismo que nem sempre se confirma na realidade. E se também não fosse perfeita a noite como fora o dia, um quase já me bastaria, de tal jeito que nem o frio glacial e o cansaço do corpo barrariam meu desejo de admirá-la.
No deck do navio talvez ela não fosse mesmo tão bela quanto a criatividade da mente, mas lá fora, sob o céu do Nilo, eu sabia que um mundo diferente, novo e curioso tomaria posse de tudo, dominaria o rio, o deserto e mais a gente que o estivesse a admirar. E posse não se daria só por estrelas, astros e satélites, também pela cacofonia de pássaros e insetos, o sussurrar gentil das folhas de palmeiras, um farfalhar de mato rasteiro e touceiras de junco ondulantes se esfregando às margens do rio, mas também de sons menores que só ouvidos atentos conseguem, como o cri-cri-cri dos grilos, as vozes quase inaudíveis de adultos, crianças e animais.
Naquele momento era a mente, com sua autonomia, quem me dominava, enganando o corpo fazendo-o suportar nos ossos um vento que já antes me congelara a pele. Alguns minutos depois, não sei quantos, já no limiar de minha capacidade de aguentar o frio por opção, encerrei a breve visita e a eterna procura por uma estrela mais brilhante. Voltei para o aconchego da cabine e dormi sob os agradáveis efeitos do cansaço, das lembranças de um dia fenomenal, de um jantar apetitoso e de meia taça de vinho tinto egípcio.
Ainda ancorados,mas em breve, a caminho de Kom OmboO Deus Sobek, com cabeça de crocodilo, num dos elegantes painéis do templo
Ainda ancorados, desperteina manhã seguinte com a mente em sossego e a comodidade de uma noite bem dormida. De uma bela noite. E assim levantei-me para ir à janela espreitar o rio, como já de costume o fazia, contudo agora com certa intimidade. Em breve o navegaríamos até Kom Ombo e dentro do peito o coração saudoso daria adeus à Núbia para então, 45 quilômetros depois, rio abaixo desde Assuã, na sua margem direita, entre palmeiras e tamareiras, encontrarmos mais um belo templo faraônico.
O pórtico do templo, dividido em duas partes, direita e esquerda
Kom Ombo
Aosdeuses Sobek – do crocodilo – e Hórus, com cabeça de falcão – o templo foi oferecido, embora parte dele também a Hathor – deus da fertilidade e criador do mundo – a Khonsu e a Tasenetnofret (a Boa Irmã) e a Panebtawy (o Senhor das Duas Terras). O templo é duplo, assim como sua entrada e os salões, que embora conectados, servem cada qual à sua divindade, tendo sido todos construídos no início do reinado de Ptolomeu VI, ali por volta de 180-145 a.C., cujo membro mais famoso da linhagem foi sua última rainha, Cleópatra VII, conhecida por suas habilidades políticas.
Assim que ancoramossaímos para a visita com o templo à vista, cujas colunas avistavam-se do terraço do navio como se brotassem da terra arenosa tal qual as palmeiras circundantes, mas, à medida que nos aproximamos da entrada, elas crescem e surpreendem-nos para converterem-se numa das atrações do templo, e torná-lo um dos mais cativantes da viagem, outro bom exemplo arquitetônico da civilização faraônica.
As colunas que capturam o olhar são parte da beleza do cenário, porque há também seus lindos capitéis, as arquitraves – vigas que se apoiam nos os capiteis das colunas -, as cornijas e os blocos de pedra esculpidos e gravados. Em alguns encontram-se os nomes de Ptolomeu e Cleópatra, mas por certo apenas depois de apontados pelo guia. Além do pórtico – ou pilon – tudo mais integra o típico exemplo de arquitetura egípcia antiga.
Colunas, capitéis e arquitraves
O santuário duplo tem salas erguidas de forma simétrica, duas entradas, dois pátios, dois salões hipostilos[1] e dois santuários. No interior há um pequeno, esquisito santuário que expõe crocodilos mumificados. Mas é a parede frontal, com as figuras dos deuses Sobek e Hórus, e um texto hieroglífico com 52 linhas, seus destaques, um dos elementos mais impressionantes de todos os templos do alto Egito. Três antecâmaras levam à área interna do templo, onde as paredes são cobertas por relevos finos e em excelente estado. Mas quer saber o que primeiro a gente percebe assim que entra no templo? Egípcios escondidos atrás de uma pilastra à espera de turistas para fotografá-los em troca de uma bakshish.
O templo de Hórus, em Edfu
Voltamos a pé ao navio ancorado bem defronte ao templo de Kom Ombo, que em breve partiria em direção a Edfu, a 63 quilômetros dali, onde visitaríamos o templo de Hórus, considerado o mais impressionante de todos os templos próximos às margens do Nilo no trajeto entre Luxore Aswan, parada fundamental de todos os navios de cruzeiro que fazem este roteiro ao longo do Vale do Nilo.
À beira do Nilo, ancorados para a visita ao templo de Hórus, em Edfu
Behedet, em egípcio antigo, ouEdfu, como se conhece no resto do mundo, é uma das maravilhas do Nilo faraônico, uma construção tardia, isto é, do período greco-romano, mandado construir por Ptolomeu III e Ptolomeu IV, com adições posteriores. É um templo completo que inclui desde o pilone construído pelo pai de Cleópatra, no século I a.C., até o salão que precede o santuário de Hórus, parte final e mais importante deste complexo do Novo Império, que consagra o templo de Edfu um perfeito e completo exemplo deste estilo arquitetônico.
Uma vez na margem do rio, pode-se chegar ao templo Hórus – deus protetor das famílias e dos faraós – com facilidade seja por taxi, tuk-tuk ou charrete. Optamos por tuk-tuk e cruzamos a cidade poeirenta sob um frenético, intenso e energético movimento de transportes levando passageiros turísticos desde o porto ao templo, para visitarmos uma das mais bem preservadas obras dos tempos ptolomaicos no Egito, construído entre 237 e 57 aC.
Sua porta é enorme, tem 37 metros de altura e guardam-na dois falcões, o deus dos céus e dos astros, como sempre, com paredes inteiras ornadas com desenhos, esculturas e hieróglifos em baixo-relevo incrivelmente conservados, inclusive aqueles destruídos a marretadas, desfigurados por cristãos. Nas paredes internas do templo há representações da procissão divina de Hórus e Hathor, estátuas do deus falcão protegendo om portal de uma colunata e diferentes cenas de um faraó rezando ou realizando oferendas. No interior há uma pequena sala a que chamam de biblioteca onde guardavam-se rolos de papiros científicos e administrativos, com paredes adornadas de imagens iconográficas.
Próximo capítulo
Luxor e Karnak
[1]Hipostilo, palavra grega, significa “teto sustentado por colunas” de um grande salão.
Não há mais mistérios, não há mais segredos nem pistas a seguir. Mas ainda magia e beleza. Hoje não se vai mais à procura de um mundo perdido, de peças que faltam para completar o mundo, templos submersos ou tumbas soterradas, senão para navegar o Nilo turisticamente. Mas isso quase basta, porque silenciosamente numa felucca[1] assistem-se passar os mesmos pedaços de Egito antigo às suas margens, tal qual experimentavam os exploradores pioneiros que pela primeira vez avistaram obras de um estranho, admirável mundo antigo. O rio ainda fascina do mesmo jeito e motiva tantos a sairem de casa em busca de seus tesouros faraônicos.
Somos agora apenas viajantes turísticos comuns, não mais pioneiros, e no exercício de deliciosas explorações mundanas. Seguimos o rio num entardecer encantador, em busca do Templo de Ísis na ilha de Philae, e não era nada difícil nos sentirmos na pele de exploradores de séculos passados.
A caminho do templo de Philae
O rio é eterno em sua beleza brilhante, no azul profundo que rasga o ocre e alimenta de fertilidade as terras às suas margens, preservando a integridade de sua gente e a identidade do país. Navegamos as mesmas águas cruzadas por embarcações cinco mil anos atrás, subindo o Nilo juntos às suas costas observando o desfilar de templos faraônicos. A atmosfera é soberba, e até possível descrevê-la, mas permanece coisa melhor de sentir do que contar. Naquela tarde, a felicidade parecia não vir de cada um de nós, senão do rio, e enquanto o barco seguia Nilo acima em direção à adorável ilha do templo, o entardecer na Núbia caía divino sobre nós, ajudando o protagonismo do rio, convertendo-se no pôr do sol mais estonteante, que embora sempre adorável em qualquer buraco do planeta, quando calha de ser daquele jeito torna-se arrasador.
A abordagem pelaágua é a coisa mais bonita
Os únicos sons vêm do bater suave do Nilo contra o casco do barco, do motor também e dos suspiros de não mais que oito passageiros. Não se sentem cheiros, a não ser de ar limpo, pois os perfumes, especiarias e incensos egípcios que carregam as narinas nos mercados não chegam a esta altura do rio. Não navegamos numa romântica dahabiya[2] movida pelo vento, senão numa embarcação anônima e ordinária, sem um convés repleto de sofás, futons e poltronas estofadas, mas a navegação me parece tão sedutora e mística quanto dos relatos de antigos viajantes. Sei que será breve, razão porque entregar-me a ela é o que melhor posso fazer. As vezes me ocorre não bastar olhar, precisar tocar para desfrutar plenamente o momento, então, inclino-me para fora do barco de madeira desgastada, ponho a mão na água e metade dos dedos arrastam no Nilo. Ele sobe pela palma até o pulso, com força, mas como carícia. Concentro-me no enorme prazer temendo os exageros, parecer tolo ou, pior, deslumbrado, ainda que intimamente justifique-se o tamanho do pazer de tocar as águas do Nilo. Sorrio, discretamente, um sorriso de “canto de boca”, mas deixo livre o curso dos meus pensamentos: “Que mundo maravilhoso! Que momento!”. A mão volta ao barco, os olho observam meu redor e reparo outros sorrisos francos e mãos medrosas tocarem o rio. Nem preciso ler pensamentos.
Colunatas e pilares parece surgir do rio como miragem
Para mais, de nada eu preciso, nem mesmo desejar paz e sossego, pois ela já nos chega com a brisa confortável que sopra nossos rostos desde Assuã. Até a ilha de Agilika – pedaço de terra onde hoje mora o Templo de Ísis – são oito agradáveis quilômetros que vejo e sinto do mesmo jeito que disse Amelia Blandford Edwards[3], que em 1877 descreveu a abordagem pela água como a mais bonita. E vista assim, do nível de um pequeno barco – a ilha com palmeiras, colunatas e pilares parece surgir do rio como miragem. Falta pouco para encontrarmos a joia do Nilo, que já avisto aproximar-se.
Minha razãoainda não consegue aplacar a fantasia, então, mesmo com a aproximação encantadora – água, rio e impressões iguais às do relato de Amelia – faltam-me contudo as flores de lótus, os crocodilos, os papiros e nenúfares de flores roxas aglomerados num mesmo canto da margem. As imagens que eu trouxera na imaginação vinham agora, provando que um viajante deve cuidar para que o Egito antigo não se perca entre a luz da realidade e a escuridão de suas divagações. Volto aos trilhos e vejo que não há mesmo sombra de dúvida: a chegada honrando o valor do templo e as palavras da autora, convertendo-se num grande momento, a paisagem sendo tudo, maior que tudo, tão grande e bela que por pouco quase perco o interesse pela câmera. Registro rapidamente o momento para que não volte sem imagens fotográficas, mas não revelam o que descreveu a exploradora. Então, chego ao porto e o templo já não cabe mais no rio. Deixa de ser reflexo, de tremular na água para tomar sua forma concreta, protagonizar, me fazendo prever que apesar de encantadora a abordagem, haveria de ser visita ao templo outro espetáculo, ter peso igual em toda a diversão. O rio tornava-se agora coadjuvante e o templo tomava o papel principal.
A “avenida” dos vendedores do templo
Um plano ocre brilhando sob a luz mágica do entardecer que incidia diagonalmente sobre as paredes de pedras. Rochas empilhadas com maestria, talhadas com fineza e a delicadeza de divinos desenhos formando um cenário perfeito com o rio ao redor. Em terra, uma outra personalidade, a mesma intensa beleza, um templo entre os mais luminosos do Egito antigo, que em nada lembra a obscuridade dos muitos mausoléus que abrigam tumbas e sarcófagos faraônicos que visitaríamos nos dias seguintes.
Vejo aproximar-se o ancoradouro da ilha com outros barcos ancorados. Contemplo mais uma vez o reflexo do templo na água, despedindo-me dele, porque eu sabia que a chegada era para se aproveitar sem hesitações, que em breve a atracação mataria a perspectiva, acabaria com a atmosfera do encontro. Com um último suspiro saio do barco.
Um templo com luxuosas vistas para o rio
Uma pequena colina servida por uma escada de cimento leva-nos até o nível do chão, uma larga “avenida” com bom calçamento, que embora ladeada por um “corredor polonês” de vendedores, é caminho tranquilo às bilheterias e ao portão do complexo. Logo pegamos nossos ingressos, cruzamos o portão e, voilà!, um ângulo surpreendente e amplo se abre para um pátio delimitado por duas grandes fileiras de colunas.
O primeiro pilone
Trinta e uma delas dispostas ao longo de 100 metros margeiam o pátio diante do grande pórtico – ou pilone – obra em forma de pirâmide truncada com belíssimas e enormes representações de Ísis, Hórus e Ptolomeu III em baixo relevo, guardadas por dois leões de pedra ao nível do chão. O conjunto é tão belo que por si já teria valido a visita. Mas há um novo pátio fronteiro ao templo, cuja fachada tem representações da deusa e de seu esposo, Osíris, e assim que o cruzamos, uma aparição “surge”: a Sala Hipostila, uma coisa linda, adorável, com paredes, umbrais e colunas profusamente ornados.
O Templo de Ísis
Filas é nome da ilha que o templo deÍsis tomou para si. Era o antigo lugar onde fora construído há “apenas” 2.000 anos. Após 1902, com a construção da primeira represa de Assuã, permanecia inundado durante seis meses, quando então os viajantes remavam entre as colunas parcialmente submersas e espiavam tudo mais o que ficava à vista, rodeados por água e pedras do santuário dedicado à poderosa deusa. Ficou assim sob as águas do poderoso Nilo por 70 anos. Pobre Isis. Mais tarde, com a conclusão da Barragem Alta, o templo seria totalmente submerso, razão porque o deslocaram, graças a Isis, caso contrário o teríamos perdido. Remontado pedra por pedra na nova ilha, entre 1972 e 1980, mantiveram-se suas características originais, sua atmosfera incomparável, a aparência, o layout, paisagismo e até mesmo as marcas das inundações que ainda hoje podemos conferir.
Estilo e padrões faraônicos
Parece antigo – e para nós do novo mundo verdadeiramente é -, contudo, trata-se de um dos templos mais recentes, além do mais bem preservado. Considerados os padrões faraônicos, trata-se de um jovem dentro de uma história que remonta a 5000 anos[4]. A obra é “nova”, mas de uma época em que o resto do planeta vivia na obscuridade cultural e intelectual, que do primeiro ao último vislumbre, suas torres e paredes prendem olhares e faz soltarem-se suspiros.
Na ilha, outras edificações construídas pelos ptolomeus – Cleópatra a última – foram adicionadas a Philae nos últimos dois séculos a.C, assim como depois por imperadores romanos. Nas inscrições e desenhos contam-se histórias de deuses e da realeza, que embora comuns a todos os templos faraônicos, em Filas têm vista para o rio. Talvez eu devesse dizer algo mais, mencionar outros méritos do templo, discorrer sobre datas e deuses, não passageiras, mas deixarei de lado, pois não me qualifico e temo a simplicidade, abordagem superficial de um assunto cercado por obstáculos. Sinto-me, contudo, mais à vontade para apontar seus valores visuais, construtivos e arquitetônicos, as principais particularidades do templo, além de suas luxuosas vistas para o rio. E para o benefício de quem deseja informações técnicas precisas e afiadas, há um universo em egiptologia à disposição na Internet que eu teria prazer em recomendar.
Ísisera uma das principais divindades da mitologia egípcia e transcendia as fronteiras do Egito, chegando até o universo greco-romano e zelando por todos, de escravos e nobres a pecadores, santos, governantes e governados, dominando o cosmos com chifres, asas e um disco solar na cabeça.
Ao redor do Templo de Isis, pequenos outras obras com menor brilho, como os templos de Hathor e o de Trajano, o pavilhão de Nectanebo – rei da 30ª dinastia -, a Porta de Adriano, além de um nilômetro – cujos degraus de pedra mediam o nível do rio. O quiosque de Trajano, dedicado ao imperador romano, construído no início da era cristã, tem estrutura que pode sugerir ter sido adaptado e ornamentado mais tarde com elementos característicos do império. A edificação tem planta retangular e quatorze colunas com capitéis entalhados com motivos florais e paredes com imagens do imperador queimando incensos em honra de Isis e Osíris e ofertando vinho a Isis e Horus.
Dias mais tarde visitamos Luxor e Karnak, templos que poderiam tornar o de Ísis “pequeno”, contudo, sua beleza e delicadas proporções, a cuja “leveza grega aliada à forma egípcia” se referiu Amelia Edwards – trarei para sempre comigo no setor egípcio de meu cérebro viajante.
Aproveitamos cada minuto na ilha da deusa, e aproximando-se a hora de um dos mais belos poentes da viagem, fomos orientados a apreciá-lo de cima, antes da descida ao ancoradouro para retorno ao barco. Foi mesmo tão belo que parecia exclusivo, como se a deusa celebrasse nossa visita ao templo. Descemos para a felluca que nos levaria de volta. Entramos num barco qualquer, o primeiro da fila, com um núbio no comando.
Seria mesmo núbio o nosso capitão? O Egito teve a Núbia como país vizinho em sua divisa do sul, que agora fica a 250 quilômetros dali, com o Sudão. Embora com óculos de sol “rayban” e um casaco contemporâneo, a fisionomia não aparentava ser a de um egípcio, pois tinha traços incomuns aos que víramos desde o Cairo, dando razão à minha curiosidade. O fim da visita foi sob um pôr do sol incrivelmente bonito enquanto nos afastávamos da ilha, navegando de volta os oito quilômetros que nos separam de Assuã.
A silhueta negra do templo foi ficando para trás, enquanto à frente, casas núbias desfilavam à beira d’água. Pintadas em azul turquesa e iluminadas pela cor quente do poente, ornavam-se com pinturas em rosa, amarelo e verde.
O Obelisco Inacabado
Nas proximidades da cidade há pedreiras antigas, fontes do melhor granito do Egito Antigo, de onde saía matéria prima para grandes esculturas, monolitos e obeliscos. Numa delas talhava-se o que pretendiam ser o maior obelisco da antiguidade – o Obelisco Inacabado – cujos 42 metros de altura e 1168 toneladas seria também o mais pesado bloco de pedra já produzido por egípcios na antiguidade.
Abandonado devido a fendas e rachaduras surgidas na peça ainda deitada, permanece conectado à rocha, tornando-se uma das atrações mais conhecidas da cidade, ainda que quase nada mais se saiba sobre a obra ou para onde seria transportado.
Embora muitos outros sítios arqueológicos fascinantes haveríamos de visitar nos próximos dias, aquele primeiro dia de cruzeiro no Nilo terminou como o mais notável de nossa estada no Egito.
Próximo capítulo
Edfu e Kom Ombo – De Assuã a Tebas (Luxor)
[1]Felucca é um barco à vela tradicional de madeira, usado em águas resguardadas do mar Vermelho e do Mediterrâneo Oriental, como em Malta e, particularmente, no rio Nilo no Egito e no Sudão, e também no Iraque e na Sicília.
[2]Dahabya é uma barcaça de passageiros, de madeira e com duas ou mais velas, usada no rio Nilo, relevos gravados na pedra de templos e tumbas do Egito testemunham que essas embarcações já existiam há milhares de anos, embora originalmente fossem usadas para transportar a realeza.
[3] Amelia Blandford Edwards, escritora, contista, jornalista e egiptóloga britânica da Era vitoriana, produziu romances, diários de viagens, contos e ensaios sobre o Egito Antigo e co-fundadora da Egypt Exploration Society, em “A mil milhas acima do Nilo”, publicado em 1877 com o título A Thousand Miles Up the Nile(p. 207).
[4]O templo foi construído entre os anos 380 e 362 a.C., durante a última dinastia egípcia, dos Ptolomeus, que na verdade eram gregos e descendentes de um dos generais de Alexandre, pouco antes da invasão de Alexandre, o Grande, em 323 a.C.
“The Moon Is a Harsh Mistress” (Jimmy Webb) do disco Beyond TheMissouri Sky. Pat Metheny (violão eletro-acústico) e Charlie Haden (contra-baixo acústico)
O ano terminava e a manhã ia em meio quando o avião tocou o solo de Assuã. O terceiro dia de nossa jornada no Egito amanheceu adorável, luminoso e começou bem cedo, de madrugada na cidade do Cairo. Embora estivéssemos em terra, eu ainda voava em divagações por um cruzeiro imaginário no Rio Nilo, a viagem fluvial mais desejada do mundo a partir do século 19 e, para nós, a parte mais ansiada da peregrinação pelo Egito e Marrocos. Logo embarcaríamos em três dias de navegação, desceríamos o Nilo, parando às suas margens para visitas aos templos de Luxor e Karnak, às tumbas do Vale dos Reis e ao Templo da Rainha Hatshepsut, aos Colossos de Memnon, aos templos de Horus – em Edfu – e de Kom Ombo e, naquela tarde, à grande represa de Assuã, aos Templos de Philae e ao Obelisco Inacabado.
Sob o sol do meio dia chegamos ao centro da cidade, no local onde aportam as embarcações, próximo à ilha Elephantina, uma cidade-bairro com pouco mais de um quilômetro de comprimento que divide o Nilo em dois canais, ilha de rochas de granito e encostas escarpadas. No topo, casas pequenas, palmeiras agitadas, exemplos de arquitetura mourisca, ruínas monumentais e um minarete apontado para o céu que parece obra natural, nascida na terra.
Quatro mesesdepois daquela luminosa manhã, começo a escrever sobre este encantador momento de nossa viagem ao Egito. Isolado socialmente, exerço meu “fique em casa”, pratico um “sacrifício” necessário a contragosto, “preso” no meu cárcere privado e sentindo imensa falta dos toques, beijos e abraços cotidianos. Ao mesmo tempo assisto o mundo inteiro fechar-se, viver um estado de pré-apocalipse, absorver à força a sombria realidade das mortes crescentes se aproximando de todos, não importam a raça, o lugar, aqui ou em terra estrangeira, qualquer buraco na terra onde a gente possa se enfiar, que esta vida invisível – o vírus – continuará sua caça, a missão de infectar a humanidade, vidas anônimas ou não, às vezes famílias inteiras, e despedaçar boa parte delas. Enquanto recebo notícias, procuro em vão por prognósticos confiáveis e me pergunto: Quando tudo isso passará?
Meus cenários de “viagens” agora não são os daquela jornada ao teto da África, senão a portas fechadas, janelas abertas, estendendo-se ocasionalmente pouco além das fronteiras de onde moro. Com todo esse tempo sombrio que me sobra, boa parte dedico aos meus corriqueiros prazeres, entre eles escrever. E o faço agora com produtividade incomum, mesmo com sérias preocupações me ocupando a mente, cercando de incertezas meu futuro.
São tantas a lembranças que me ocorrem que dariam um livro, além daqueles que já escrevi e espero um dia publicar. Parece não haver limite para a mente trazer de volta sabores e prazeres vividos em muitas outras viagens, algumas das quais eu pensava já terem sido apagadas da memória. Mas algumas parecem se regenerar, me pregando peças. São, por vezes, recordações tão escondidas quanto incomuns e inusitadas, que surgindo do nada, até do simples olhar para um objeto.
Neste meu escritório doméstico, lugar onde escrevo, sou rodeado de lembranças físicas de minhas viagens. Boa parte encontra-se numa estante, junto a guias turísticos, souvenirs e livros de relatos, cuidadosamente arranjados como se fossem um cenário. Dois pequenos globos terrestres, fotografias, um mapa-múndi e objetos decorativos de lugares onde estive completam este ambiente inteiramente voltado ao tema. Até mesmo um vidro de álcool gel, que embora não sendo um artigo trazido de fora, tampouco necessariamente relacionado a viagens, acaba de me trazer da mente uma passagem de uma grande viagem à Índia, encerrada um ano antes desta que agora relato. Repousa o frasco ao lado de meu notebook, e evoca tal qual um fantasma a sua vida passada, o trecho que a seguir relatarei.
É claro que pode parecer estranho um pequeno frasco de álcool 70 fazer alguém recordar-se da Índia, mas não a mim, ainda que seja curiosa e divertida. Ora, direis, que bobagem! Mas ocorrências iguais costumam acometer outros escritores que revelam agirem da mesma maneira, alguns com a compreensão de seus leitores.
Corria uma jornada encantadora na mesma data desta que agora relato, doze meses antes. Estávamos na Índia, na minha adorável Índia, e vivíamos passando o mesmo álcool gel nas mãos, o que hoje compulsiva e compulsoriamente faço, embora por motivos diferentes. A finalidade era a prevenção, não de um vírus, senão de bactérias com grande poder de contaminação, causadoras de severas complicações gastrointestinais que nós mesmos não escapamos de ter.
EstávamosnaChandni Chowk, avenida principal de Old Delhi, diante de um curioso “Caixa Automático de Água Mineral” – uma carrocinha como as nossas de pipoca, com as mesmas três rodas e impulsionada por força humana. Estacionada numa calçada, servia o precioso líquido em copos que não cheguei a avistar. Bastava o consumidor inserir moedas no local apropriado para ter liberado o líquido. E não fornecia apenas água, também uma nebulosa mistura de sumos de laranja e limão, frutas que depois de espremidas – aparentemente na hora – eram adicionadas de gelo e servidas em garrafinhas reutilizadas de Crush guardadas em dois engradados sobre o chão sujo debaixo da carrocinha.
Na minha adorável Índia, contudo, um cartaz que anuncie “água mineral” não deve necessariamente ser levado a sério, pois informação e verdade não andam escrupulosamente juntas naquela parte do subcontinente. Nem mesmo num estabelecimento que ostente orgulhosamente a chancela da prefeitura: Aproved by North Delhi Municipal Corporation, “garantia” de segurança complementada pela sigla R.O. Mineral Water ATM, do inglês Automatic Teller Machine, e R.O. – literalmente “Osmose Reversa” -, sistema de ultrafiltração que nem mesmo um indiano acreditaria funcionar naquelas instalações.
A bebida aparentava ser refrescante, e de fato era possível imaginar vidas salvas durante o tórrido Verão indiano, contudo nada convidativa naquele frio Inverno em Delhi, nem mesmo com o preço extremamente atraente de 6 centavos per glass, segundo informava o cartaz. As garrafas, frutas, água e toda a carrocinha aparentavam padrões de higiene tão duvidosos quanto perigosos, até mesmo para indianos. E ainda que sejamos viajantes experientes tentados a provar comida de rua, também somos cuidadosos para evitarmos contratempos inexoráveis, a fim de não corrompermos nossa saúde em viagens. Já perdemos coisas incríveis por causa disso, mas em se tratando alimentos, na Índia usam-se as mãos para comer, e elas são o hall de entrada para nosso desengonçado e tortuoso intestino. Já havíamos antes provado deliciosos samosas na rua, ali mesmo em Sajahanabad, distrito de Old Delhi, servidos embrulhados em folhas rasgadas do Hindustan Times, razão porque não devíamos nos exceder.
Samosas deliciosas e perigosas em Chandni Chowk
Instintivamente levei as mãos a um novo coma alcoólico, sanitizando-as com álcool gel de bolso, mesmo sabendo que meu mundo intestinal é perfeito e resistente, o que me favorece em viagens, mas o respeito e não o testo além de seus limites, o que tem me protegido de consequências desagradáveis, muito embora de ter boas experiências.
Diante daquela carrocinha eu podia ver até mais do que o visível: bactérias “caminhando” livres, leves e soltas pelos domínios do carrinho, saindo de dentro das garrafas vazias, onde os micróbios se abrigavam à espera da entrada em ação, como bestas horríveis, embora minúsculas, à espreita de nossas barrigas.
Mas, voltemos ao Egito.
Assuã
Havia qualquer coisa de especial naquela manhã. E adianto que mesmo forte o que eu sentia, não seria fácil definir. Os pensamentos eram todos para o cruzeiro de 3 dias[1] e para o rio Nilo, de modo que nada mais me cabia na mente. Curioso, eu procurava seus sinais durante o percurso do aeroporto à embarcação, mas não havia resquício de água. O Saara dominava, já não estávamos mais às “portas do deserto” – como no Cairo – senão dentro dele, sem as pirâmides, o escarcéu da capital, o trânsito e barulho, todas aquelas deliciosas referências que deixamos para trás, enquanto agora contemplávamos a areia, a vastidão e a quietude do deserto, apagando de vez dos ouvidos o ritmo do Cairo. Assuã prometia uma experiência mais relaxada, mesmo que numa cidade turística, cuja marca cultural é a distintiva sociedade núbia.
[1] “Cruzeiro de três dias” é um pouco impróprio, porque na verdade são apenas dois dias de navegação com uma parada de uma noite em Edfu, sendo as outras duas a bordo, em Aswan e Luxor.
Nas ruas, se parece com qualquer outra cidade do Egito. E os turistas não escapam às regras: egípcios entrincheirados estão sempre preparados para o ataque. Às vezes pessoas legais, comerciantes simpáticos, bem-humorados, com abordagens divertidas. Nos bazares, lojas bacanas e outras tão corrompidas pelo turismo que só vendem badulaques produzidos na China. Boas são aquelas que sobreviveram ao turismo de massa e conservaram a originalidade, entre elas, as de artigos de fabricação ou tradição núbia, como a cestaria bonita que parece não ter mudado desde os dias de Ramsés, que não fosse o tamanho, teria gasto uns trocados com elas. Também há cafés, mesquitas, charretes e tuk-tuks, vida e barulho.
Quase tudo é coberto do chão às paredes pela fina camada de poeira egípcia, que às vezes também se aloja seca em nossas gargantas. Parte da gente tem fisionomia árabe, outra etíope, sudanesa e núbia. Também vimos cães vadios, animais que amamos, embora não aparentassem ser tão sofridos quanto os indianos, acampados junto aos vendedores ao lado de mercadorias e diante do local de ancoragem dos navios. Alguns tinham até os olhos brilhantes, expressivos, pelos lustrosos, traços robustos, mas corpo sujo de poeira.
Os barcos e os cruzeiros
Às centenas, embarcações de cruzeiro sobeme descem o Nilo – de Luxor a Assuã ou no sentido inverso – todas parecidas no estilo, embora não nos padrões de luxo. Algumas carregam-se de excessos, tentam sobressair à beleza natural, aos templos faraônicos, mas nenhuma me pareceu sequer evocando as imagens românticas dos dias idílicos que se passava à deriva no luxo e conforto, sob a atmosfera romântica e charmosa dos vapores do século 19, origem dos cruzeiros pelo Nilo, quando era a única maneira de conhecer os mais destacados templos antigos do Egito. Embora digam existir um ou dois destes barcos a vapor tradicionais, não avistei nenhum, senão navios padronizados, contemporâneos, além de dahabyas. E como nem sempre é possível conciliar tradição com praticidade, apesar da originalidade ter-se perdido com as mudanças do tempo, um cruzeiro pelo Nilo permanece agradável, confortável e uma prática maneiras de conhecer as principais atrações do Egito antigo.
Já a paisagem não. Ela é igual para todos, embarcados em navios comerciais, padronizados ou não, simples ou luxuosos, românticos ou indiferentes. Avista-se de qualquer barco a mesma faixa de “terra” verde entre a água e a areia, a linha de costa variada e cheia de vida, com cenas rurais e bucólicas, apesar de deserto: vacas ociosas, burros nem tanto, latidos de cachorros, crianças mergulhando ou correndo às margens de pequenas praias, praticando as mais variadas brincadeiras e algazarras infantis. Do navio, ouvem-se murmúrios, vozes, o vento, cantos de pássaros e latidos e avista-se uma robusta coleção de ruínas milenares. E entre a quietude da beleza natural, das colinas, vales e plantações, percebe-se o movimento de vilas e de grandes cidades, tudo sob o abrigo da vastidão do céu africano, cujo azul ali abraça a Terra, tem ar puro e dócil no frescor do Inverno. Durante a navegação, o agradável silêncio às vezes é quebrado por vozes dos condutores de feluccas e dahabiyas deslizando placidamente e desviando das marolas e rastros dos navios. Ao anoitecer, ouvem-se os chamados à oração. Chegam de minaretes nem sempre avistáveis, pela distância, ou pelas sombras na noite.
Próximo às cidades, barcos de madeira com dois homens encostam no casco dos navios e os amarram, para em inglês, espanhol e italiano, oferecerem mercadorias, tecidos estampados em diferentes cores e padronagens que depois de embrulhados são jogados para as mãos dos passageiros navio acima, implorando para embarcá-las definitivamente. Ao que parece, por suas certeiras tentativas, os egípcios devem praticar arremesso de mercadorias à distância desde os tempos de Tutankamon. Nada de escaravelhos, estatuetas, obeliscos, papiros, deuses de bronze ou relíquias de dinastias faraônicas passadas, pesados demais para o arremesso com segurança, correm o risco de quebrarem uma vidraça ou permanecerem num jazigo eterno no fundo do rio.
Ofrio do Inverno não animava à apreciação da paisagem, mesmo sendo tão aberta quanto a que se avista do deck superior do navio. Era o motivo por que se encontrava quase sempre vazio, ainda que devesse ser muito agradável alguns momentos passados ali sob temperaturas mais amenas. A maior parte dos passageiros dedicava-se a uma soneca após o almoço e antes da saída para a sessão vespertina de atrações faraônicas. Arrisquei-me três ou quatro vezes a explorá-lo, subindo o lance de escadas para o exterior, depois de enrolar um lenço palestino em volta do pescoço. Contudo, ao abrir a porta, a brisa congelante só me dava ímpetos de voltar pro meu aconchego.
Certa vez encontrei um passageiro encolhido numa espreguiçadeira. Imóvel, tinha a cabeça pendida para o lado e aparentava estar adormecido. Ou, Deus me livre, morto, tal qual um personagem de “Morte sobre o Nilo”. Quase me aproximei para lhe perguntar como suportava a sensação térmica, mas Rá – o deus egípcio do sol – que além de lhe destinar raios exclusivos, segurou-me. Encostei-me no guarda-corpo disfarçando a intenção de apreciar a vista e percebi seus olhos abertos, embora imóveis, congelados na paisagem. Poderia ser um daqueles falecimentos com olhos arregalados, e só pensaria assim quem já houvesse lido Agatha Christie, mas, felizmente, não, o sujeito estava vivo da silva e provou-o me acenando com a cabeça num cumprimento que compartilhei do mesmo modo. Em silêncio, seguimos navegando o Nilo, cada qual com suas contemplações, embora observando a mesma paisagem, mas cada qual vagando em pensamentos distintos. Não sei por onde iam os dele, mas eu fantasiava o tráfego fluvial da época faraônica, iates reais feitos de junco, com nobres da corte conduzidos por escravos remando, uns barcos de serviço e de pesca, outros a vela transportando gente, animais, gêneros ou materiais para algum templo. Meu bom senso recomendou não importunar o mágico momento de solidão do passageiro, mas por muito pouco não iniciei uma conversa. Resolvi em boa hora afastar-me e explorar o restante do deck.
Olugarera acolhedor, tinha uma bem ambientada piscina com espreguiçadeiras ao redor e a céu aberto, toalhas listradas enroladas caprichosamente aguardando eventuais passageiros banhistas, provavelmente cidadãos do Alasca, e também um conjunto de mesas e sofás formando um confortável lounge. Um lugar para ser lotado de gente nas noites mais quentes. Por fim, havia um bar com bancos simetricamente afastados ao redor do balcão quadrado e protegidos do sol pela cobertura de lona. Sobre o balcão, xícaras de porcelana branca emborcadas em pires esperavam por infusões de chá de hibisco. Imaginava o quanto seria apreciável o tea time por ali e, à noite, num dos sofás, apreciando uma taça de vinho e conversando com recém conhecidos sobre as descobertas do dia. Curiosidade havia no vinho produzido na terra de Tutankamon, e não havia outra opção além das que viessem de algum terroir local, já então apreciadas por Ramsés III e Cleópatra. Assim o fizemos todas as noites, mas à mesa do restaurante.
A navegação
Navegar é preciso, mas o que menos se faz. A maior parte do tempo fica-se atracado para a exploração – guiada ou não – do que há em terra. Quero dizer, areia. Nosso navio era um pequeno hotel flutuante, padrão 3 estrelas tentando alcançar a quarta, cujas 60 cabines tinham 22 metros quadrados cada, limpas e razoavelmente bem equipadas, com banheiros espaçosos e bons chuveiros, água fervente e bancada de pia bastante para suportar as coisas de um casal. O restaurante era amplo e servia refeições em estilo buffet, generosos, razoavelmente variados, com opções para satisfazer a maioria dos paladares e restrições. Havia saladas, legumes cozidos, pratos quentes e frios, vegetarianos e não, um destaque de carne em cada refeição, dos quais recordo-me de um tagine de carne e de um delicioso assado de pernil fatiado na hora. Para sobremesas, frutas e doces confeitados variados, cujas pretensões de sabor ficavam devendo às visuais. Nossa mesa foi a mesma durante toda a estada e compartilhada com um agradável casal de médicos de São Paulo, além de seus dois filhos adolescentes, também extremamente simpáticos, o que tornou nossos momentos de refeição ainda melhores, para além de divertidas companhias durante os passeios.
A represa de Assuã
Com eles compartilhamos algumas garrafas de vinho egípcio e ótimas conversas. Éramos os oito únicos brasileiros a bordo, e à mesa mais numerosa sentava-se uma família indiana, também a mais efusiva, em cuja noite que comemorei meu aniversário foram os mais calorosos. Tive direito a bolo, velas efervescentes, cantorias em árabe, danças e toda a equipe do restaurante fazendo seu melhor para que meu momento fosse inesquecível. E foi. Com alguma timidez, entrei na dança e posei para fotos e filmagens celulares.
Naquele primeiro dia de cruzeiro, após o almoço, com a energia restaurada, depois de apresentados ao guia que Allah e a operadora nos confiaram, chatíssimo por sinal, de modo algum lembrava seu colega do Cairo, o saudoso Mohamed. Foi difícil aturá-lo nos três dias, embora o conhecimento de um guia especializado seja sempre extremamente útil e revelador, mas com aquele, descobrimos logo na primeira atração de Assuã que faríamos tudo para termos meia hora felizes e silenciosas sem aquele guia tagarela e afetado nos impedindo de fazer o que quiséssemos, circulássemos e fotografássemos. Ele não se conformava com menos de 15 minutos de atenção, então discorria por toda a história antiga do Egito, da primeira à última dinastia faraônica, como se fosse o professor em sala de aula e nós seus alunos na véspera de exame final.
Colunas na Ilha Philae
Fomos àgrande barragem, um ícone no Egito, obra importantíssima que mudou a face do país, mas, para nós que temos Itaipú ou quem já esteve na Hoover Dam, não é coisa de surpreender, mesmo que interessante seja saber como mudou o país, a vida dos egípcios, aumentou a área de terras cultiváveis por meio de irrigação e controlou suas terríveis e históricas inundações.
Lago Nasser
Entramos depois numa pequena embarcação que nos levou ao belo e atmosférico Templo de Philae. Dedicado à deusa Ísis, fica numa ilha para onde foi movido depois de seu sítio original ter sido parcialmente inundado pelas águas da barragem. Ali assistimos ao sol se pôr, que antes de finalmente ir para o Japão tingiu a ilha de laranja. Aproveitamos a luz quente e bonita, saturada nas superfícies do templo, acentuando os dourados e contrastando com o céu de azul ainda intenso.
Templo de Ísis, na Ilha Philae
Visitamos também oObelisco inacabado – atração curiosa, ainda que a menos atraente de todo o roteiro – obra encomendada pela faraó Hatshepsut, que se concluída teria sido o maior obelisco do mundo antigo, com 42 metros de altura. Mas uma rachadura no meio encerrou o sonho, deixando-o deitado e inacabado, atrações que terão um merecido relato no próximo capítulo.
O Obelisco Inacabado
O navio zarparia à noite, então havia tempo para uma visita à tradicional (e turística) loja de perfumes e essências naturais aromáticas. A visita converteu-se numa agradável experiência sensorial, levada a cabo numa sala cercada de estantes com toda a sorte de óleos essenciais e comandada por um profissional, numa cerimônia de apresentação dos deliciosos aromas, entre eles os que afirmam terem propriedades medicinais e os que se usam no corpo e no ambiente. Voltamos a bordo já com o sol posto, cansados de um dia que começara de madrugada no Cairo, mas felizes com o primeiro intenso dia do tão esperado cruzeiro.
O rio Nilo
Muito mais que apreciar sua grandeza, me apetece falar dele. É tentação, não só porque escrevo relatos de viagens, mas por tratar-se do que dá vida ao deserto, cria oásis e incentiva o nascimento de aldeias, vilas e cidades, ter promovido o surgimento das civilizações faraônicas, que a despeito de dos 4000 anos que se passaram, permanecem “vivas” às suas margens. Um rio que torna o Egito atemporal e imutável.
Naquela nossa primeira noite no Nilo, observei pela ampla janela da cabine suas águas correndo, seus ruídos no casco do navio e o rio exibindo um brilho diferente, refletido das luzes de nossa embarcação. Logo adiante, a outra margem era escuridão, o Saara continuando a marcar sua presença implacável, mesmo no escuro, e evocando ora pensamentos românticos, ora históricos. Eu não me recordava de nenhum país que dependesse tão completamente de um rio, nem de outro lugar cujas águas trouxessem tantas consequências à existência humana.
Ocansaço me fez adormecer mais cedo do que o costume, embora o momento fosse mais propício a mentes porem-se em ação. Eu tentava mover-me pelas relembranças do que vimos no dia, mas o sono me venceu, deixando a cabeça repleta de temas para sonhos efusivos. Dormimos em lençóis confortáveis e limpos, imagino que de algodão egípcio, e com as cortinas propositalmente semicerradas, a fim de que acordássemos com o nascer do Sol. Pouco antes de fechar os olhos lembrei-me de Heródoto – o filósofo-viajante grego, que disse “Quem não viu o Egito não viu o mundo”. Sua máxima levou-me a pensar que quem não viu o Nilo, não viu o Egito.
Subimos âncora e partimos rio abaixo.
Nota do editor:
Não foi erro a mera menção, sem delongas, de Agatha Christie neste relato de cruzeiro pelo Nilo. Mas este é um fato tão corriqueiro, linearmente usado na blogosfera de viagem, que resolvi privar o leitor de mais um lugar-comum. Além do que a escritora não representa a totalidade de personalidades do universo literário inspiradas pelo Egito ou pelo Nilo. Quer na ficção, quer nos romances, outros escritores, igualmente proeminentes, produziram novelas, contos e artigos, entre os quais destaco o romancista francês Gustave Flaubert, a enfermeira inglesa e editora de jornais Florence Nightingale, Mark Twain, Pierre Loti, Rudyard Kipling, Arthur Conan Doyle – criador de Sherlock Holmes – e George Bernard Shaw.
A muralha daCidadela de Saladino
<p class="has-text-align-justify has-medium-font-size" value="<amp-fit-text layout="fixed-height" min-font-size="6" max-font-size="72" height="80"> <strong class="translator-checked translator-dont-translate">Chegamos cedo</strong>. <strong class="translator-checked translator-dont-translate">Tão</strong> antes do tempo que mesmo depois dos ingressos comprados tivemos que aguardar a abertura dos portões da <strong class="translator-checked translator-dont-translate">Cidadela de Saladino</strong>. Estávamos numa grande praça à entrada do complexo e diante de um improvisado café onde aqueciam-se com a bebida os motoristas das vans e ônibus turísticos. E embora houvesse sol, seus raios fossem para todos, os sentíamos nos olhos, mais do que na pele.Chegamos cedo. Tão antes do tempo que mesmo depois dos ingressos comprados tivemos que aguardar a abertura dos portões da Cidadela de Saladino. Estávamos numa grande praça à entrada do complexo e diante de um improvisado café onde aqueciam-se com a bebida os motoristas das vans e ônibus turísticos. E embora houvesse sol, seus raios fossem para todos, os sentíamos nos olhos, mais do que na pele.
Olhando para a muralha da cidadela, aquelas suas enormes torres de vigilância, os minaretes e o grande portão de acesso, o típico palácio árabe aparentava ser mais que obra concreta, senão uma ilustração do livro de histórias das “Mil e uma noites de Sherazade”[1].
O céu estava surpreendentemente claro e limpo, quase sem nuvens, azul e transparente, então um agradável convite às caminhadas ao ar livre, contudo sob a confortável temperatura do inverno. Nada mais atraente e apropriado para uma visita ao legado de Saladino: a Mesquita de Alabastro, os pequenos palácios convertidos em museus nada assombrosos (quase sempre fechados) e os terraços com vistas soberbas sobre o Cairo. De longe, aquele com a melhor vista aérea da cidade, seu um grandioso conjunto arquitetônico, para as tantas outras cidades que parecem haver dentro do Cairo.
O Mirante da Cidadela de Saladino
A paisagem permitia aos olhos enxergarem muito além do que vista alcança, e a mim, olhar como nunca houvera feito antes. Eu me concentrava nas minúcias, embora o monumental fosse o que dominasse o panorama. Surpreso, eu contemplava o Cairo Islâmico e seu mar de construções monocromáticas, o horizonte, as pirâmides e as areias infinitas do deserto. E já que a imaginação me permitia, embora não o céu leitoso, enxergava até mesmo a indecifrável esfinge. E não era mal com a segurança da distância, protegendo-me de seu jeito Monalisa, seu olhar perdido, mas traiçoeiro, fingidora ao desdenhar do observador, mas pronta a devorá-lo. E com o que a imaginação me concedia, avistava também o Alto e o Baixo Egito, todo o Magrebe, o Oriente sendo inteiro.
Embora tudo ao alcance da vista fosse apenas um vislumbre, a mera sombra da vastidão da cidade onde vivem 45 mil pessoas por quilômetro quadrado, sua grandeza era avassaladora, tão estimulante da curiosidade que, mesmo indescritível, não era imencionável. Ia, assim, muito além de sua concretude, estimulava-me, sem barreiras, as especulações.
Até onde o ar leitoso do Cairo permite a visão alcançar
Depois daquele fabuloso estímuloao olhar, o silêncio era o que mais eu sentia. Afinal, no Cairo, silêncio e solitude, caem tão bem quanto podem surpreender. Lá se iam 3 dias na capital, tempo bastante para percebermos o prazer da calmaria, pois de tão rara que, o visitante que não esteve no mirante de Saladino haverá de acreditar que a quietude no Cairo é como as bruxas: não se creem nelas, mas que existem, existem. E já que é tão rara, talvez só ali se perceba, estimula tanto os olhares curiosos, a fim de que devorem a grandeza das minúcias da insana cidade, sem contudo ouvirem-se seus ruídos, sob o reconfortante prazer da quietude.
Bom gosto do desenho islâmico,qualidade dos padrões geométricos ornamentais
Seria ridículo supor que éramos os únicos turistas por ali naquela fria manhã de dezembro, mas era surpreendente não estarmos no formigueiro humano, ao contrário, entre tão poucos visitantes numa das atrações mais fundamentais da cidade, exclusividade consagrava o momento num privilégio.
Dali o observador, enquanto avançava o olhar pela urbe, sente-se como um pássaro em voo livre, planando nas alturas, tocado pela brisa, escaneando a paisagem como um predador, com largos e atentos olhares, assistindo à sua balbúrdia quase incivilizada sem que precise mergulhar na “lama” de seu escarcéu.
No primeiro plano, encontram-se a cidade árabe e a turca otomana, mais distante a modernista de 1920 – com suas boas influências francesa e inglesa – e ao fundo, a contemporânea Cairo, cada qual com suas pequenas grandezas, desenhos complexos ora sofisticados, ora rústicos, arquitetura nas miudezas, pormenores, pequenos elementos de uma fachada, residência, um telhado, minaretes, uma pousada, das ruas estreitas que somem por trás de prédios e reaparecem adiante defronte de casas baixas, uma diversidade tão numerosa de pormenores quanto o número de peças do Museu Egípcio. Ao observar o panorama do mirante de Saladino, desvenda-se a História da cidade em todos os seus tempos.
Ah, que vista!
Daquela paisagem, mesmo depois de tudo o que for dito, alguma coisa ficará por dizer, como nesta música de Lyle Mays.
Segurei a câmera como se fosse de cristal, com tal cuidado, mas a firmeza que seu peso exige. Apontei a lente para o panorama que mal cabia na grande angular. Não me cabia um registro apressado ou descuidado, então, fiz meu melhor, sem, contudo, captar a mínima parte do que enxergara, do que me revelara.
O grandioso cenário, todavia, não impressionava apenas a todos, ao menos não àquelas duas jovens que lhe dispensaram uma olhadela, deram-lhe as costas e dedicaram-se às selfies de caras, bocas e gestos “instagramáveis”. Por fim, já com algumas dezenas de imagens guardadas no cérebro e na Nikon, seguimos para conhecer o restante do lugar, caminhando por um jardim em direção à mesquita, enquanto nosso guia nos conduzia também ao passado, a 1183, ano em que as obras da fortaleza concluíram-se, depois de imaginadas pelo líder muçulmano Saladino.
A Mesquita de Alabastro
No interior, uma calçada coberta por arcos belíssimos se estende pela maior fachada da mesquita. Era enorme, simétrica, com lindas colunas de pedra, abriga várias entradas falsas, embora apenas uma leve ao seu interior. Entramos num oásis de calma, respeitando o código de vestuário e etiqueta islâmicos: sem sapatos, em silêncio e com nossas esposas cobrindo os cabelos, embelezadas por pashminas compradas na noite anterior no mercado Khan el Khalili.
Enorme, aMesquita de Mohamed Ali, – ou Mesquita de Alabastro – é um soberbo templo. Revestido internamente da mesma pedra de quem toma o apelido, avista-se de muitos pontos da cidade. Pela porta chega-se aopátio de abluções, como é comum nos templos islâmicos, que antecede a entrada ao salão de orações.
O pátio e a fonte de abluções
Rodeado por colunas e arcos de alabastro, a fonte de abluções tem desenho e ornamentação otomanos admiráveis. Contudo, uma curiosidade destoa naquele lindo pátio: um relógio de bronze instalado no telhado e sobre uma torre com aparência arquitetônica medieval, presente do Rei Luis Felipe da França em retribuição ao obelisco do Templo de Luxor, doado pelo soberano Mohamed Ali, que se encontra hoje no centro da Place de La Concorde, em Paris.
O enorme candelabro pende da cúpula quase ao chão
O interior do templo faz juz em tamanho à sua grandiosidade exterior. Por dentro, o silêncio é ainda mais notável, solene, quase de um mundo paralelo. Um candelabro pende do domo central e chega a poucos metros do piso, inteiramente coberto por tapetes originais. E tudo conveniente e discretamente iluminado por luz natural vinda da porta e de algumas janelas primorosamente calculadas, a fim de que os raios solares não descoloram os intensos vermelhos do carpete oriental. O minbar e o túmulo de Mohamed Ali – em mármore branco esculpido e ornamentado com pedras preciosas – são dois dos mais preciosos tesouros da mesquita.
A Mesquita de Mohamed Ali, ou Mesquita de Alabastro
Absolutamente tudo revela o tradicional bom-gosto do desenho islâmico, sua qualidade nos padrões geométricos. O tapete é um convite a nos sentarmos para apreciarmos detidamente o conjunto da obra. Depois de satisfeitos, a caminharmos sobre ele, a fim de conferirmos o conforto e o prazer de passear sobre ele para conferirmos de perto os detalhes ornamentais do templo, dezenas deles, tantos que exigiriam toda uma manhã de observação e fotos. E já que eram permitidas, nos fartarmos delas.
Quem já esteve em Istambul e visitou a Mesquita Azul, sua memória não o poupará de lembrar-se da Mesquita de Alabtastro, não sem motivo: a do Cairo foi inspirada naquela.
Que manhã passamos na Cidadela de Saladino. Ah, que visita!
Veja em 360 graus o panorama do Mirante de Saladino:
Ouço seus ruídos e concluo que a cidade despertou antes de mim. Alguma luminosidade atravessa as cortinas, mas não o bastante para me tirar da cama. Alguma preguiça me resta, afinal, foram poucas horas de sono, embora uma bem dormida madrugada. Observo o quarto e detenho o olhar nos detalhes. Não são nada atraentes e evidenciam marcas do tempo, um hotel que já teve seus dias de glória, embora ainda seja um ícone do Cairo. É um dos mais altos edifícios da cidade, com mais de 30 pavimentos, o que me leva a imaginar a vista está além da janela. Estar às margens do Nilo parece hoje ser sua maior qualidade. Embora não se possa afirmar que estamos de ponto turístico, os dois quilômetros da praça Tahrir[1] e do Museu do Cairo nos deixa bem mais próximos de todas as demais atrações da cidade. Comparado a um hotel defronte as Pirâmides de Gizé, opção que a operadora nos ofereceu, escolhida por nove entre dez turistas, os mais de 20 km de distância nos sujeitaria ao tráfego e retenções naquele que considera-se entre os mais engarrafados do planeta.
Apanho os óculos, levanto-me e vou à janela. Pelo vidro da floor-to-ceiling window – como chamam o janelão do chão ao teto – a porção que avisto da cidade é quase toda do eterno Rio Nilo e em pequena parte de um medianamente largo horizonte, contudo comprometido pelo céu embaçado. Abro a janela e vou à varanda. Sim, os quartos têm uma varanda e eu preciso de óculos. Apesar de supor o frio, a vista é um convite, então saio como se testasse o quão glacial é o Inverno no teto da África. Qual nada. É Inverno, mas é África. Não demora muito e já sinto seus efeitos na pele.
A parte da urbe e do grande rio que avisto são, embora grandiosas, pequenas amostras de suas amplitudes. Neste Rio Nilo – o Nilo Azul, que começa no lago Tana, na Etiópia, que tive o privilégio de conhecer, e se junta ao Nilo Branco, ao sul do Egito, em Cartum, no Sudão, e juntos formam o rio mais longo do mundo – que em dois dias percorreremos em seu trecho mais turístico – entre Assuã a Luxor – e de volta ao Cairo, seguindo seu curso natural até o mar Mediterrâneo.
O guarda-corpo da varanda não é suficiente para que eu não sinta uma forte vertigem, mas também muito especial, com um panorama só visto pelos pássaros. Me ocorre uma ilusão na, um dejá vu que me leva a faz pensar já ter estado aqui, embora jamais, mesmo parecendo tão familiar. O efeito é breve como uma faísca, mas a sensação é de uma eternidade. Por certo um estado confusional da mente que mistura as centenas de imagens vistas antes e o leve torpor de um despertar recente.
O céu é embaçado, leitoso, mas diferente de atmosfera de Delhi, onde se constitui de duas partes de fumaça e uma de ar. Aqui não, ela é salpicada de minúsculos grãos de areia que chegam do deserto e, juntos à fumaça dos carros, dá ao céu do Cairo o personalíssimo “tom celeste egípcio”, um eufemismo carinhoso que tenta amenizar a expressão “poluição atmosférica”. Dizem que nesta cidade à beira do deserto, quando a brisa converte-se em ventania, acossa a cidade trazendo uma poeira que embaça a visibilidade em 70%. Depois, com a calmaria, a poeira deposita-se nas janelas, fachadas e letreiros, onde então passa a aparentar estar ali desde a eternidade ou, então, desde que Cleópatra era menina.
Observo a grande torre do Cairo, a ponte Qasr el-Nil, uma enorme bandeira do Egito e o absorvente rio Nilo dividido pela ilha Gezira e o bairro Zamalek. Embarcações pequenas e médias navegam por este trecho da cidade que chamam de Garden City, um pedacinho bonito e amplo da urbe, onde mora a parte privilegiada dos 20 milhões de habitantes cairotas, número que parece inverossímil, sobretudo quando nos damos conta de que toda a população de Damasco, de Beirute, Bagdá e Riad não dariam conta de completar a do Cairo.
Os prédios aqui parecem mais artísticos, têm desenhos mais bem cuidados, são mais atraentes do que as unidades de armazenamento do proletariado que vimos ontem de madrugada, quando pousamos. Dizem que os miseráveis no Cairo não moram nas ruas, que há décadas os sem-teto uniram-se aos sem-vida indo morar num gigantesco cemitério, transformando mausoléus em residências com direito a puxadinhos, posses de túmulos, locações, sublocações, comércio e parabólicas. O governo levou água e eletricidade, transformando a versão de moradia dos mortos em algo mais, digamos, vivo. Chamam-na “Cidade dos Mortos” e existe desde o século XIV. Dias depois perguntei ao nosso guia se era um lugar visitável. Ele respondeu que não, porque é perigoso. Uma pena.
Recupero da mente a programação do dia, cheio de tarefas turísticas, o que acentua meu desejo de largar a varanda e partir para a exploração. Custo a deixar a varanda e meu último olhar à paisagem foi como se estivesse agradecesse por um panorama que não cabia em si, embora sua parte mais desmedida ficasse para além do hotel. Me afasto sem dar as costas, sem desprezar o que agora invade o quarto depois de abertas as cortinas.
Retorno ao quarto e dedico-me a desfazer parte da mala e a explorar um pouco mais da acomodação, além de verificar as atividades do dia e separar o que usarei. Arrumo na mochila as câmeras, baterias e carregadores. Configuro a conexão do celular e do notebook com a Internet seguindo as instruções fornecidas durante o check-in. A namorada arruma-se no banheiro, seca os cabelos e fecha a porta para que o ruído não me incomode. O celular vibra e leio a mensagem de Mohamed Besheer, quem cuidou de tudo para nós em inúmeras mensagens por WhastsApp e e-mails: “Oi amigo, bom dia. Tudo certo? Quero confirmar se está tudo bem”. Respondo-lhe que sim, agradeço e lhe “digo” que estaremos na recepção do hotel à hora combinada para o encontro com o guia que nos levará à primeira incursão pela cidade: Mênfis – a primeira capital de Egito no reino antigo, antes da fundação do Cairo, onde fica a estátua de Ramsés II -, depois à Pirâmide de Djoser – a mais antiga e misteriosa de todas – um grande complexo funerário, usada para o sepultamento do Faraó Djoser, no século XXVII a.C.
Saqqara – A pirâmide de Djoser
Almoçaremos na rua, e a nosso pedido, num restaurante não-turístico que sirva koshary, o “arroz com feijão” egípcio, encontrado em qualquer pé-sujo de uma esquina cairota. Consiste em macarrão com lentilha preta, arroz, grão de bico, legumes, cebola frita e molho de tomate. Descrito assim parece um “mexidão” de sobras, mas não. Come-se num prato fundo e só de pensar nas fotos que vi, salivo. Percebo que estou com fome, mas também que para além do estômago “cantando”, ouço um coro de chamados para orações vindo dos minaretes da cidade.O café da manhã no hotel teria sido mais decepcionante, não fosse a fome unida à vontade de comer.
Mênfis – Aestátua de Ramsés II
A seguir: CAIRO – O primeiro dia do resto de uma viagem
[1]Praça Tahrir, local central das manifestações populares da Primavera Árabe, nome romântico para os levantes políticos que começaram na Tunísia em 2010 e espalharam-se pelo o Egito – com milhares de egípcios protestando contra a presidência de Hosni Mubarak -, Bahrein, Iêmen, Líbia, Omã, Jordânia e Síria. A versão egípcia durou mais, da queda do ditador Hosni Mubarak até a transição comandada por militares e, depois, até uma eleição civil e democrática que um novo golpe militar retomou o poder para evitar que o Estado deixasse de ser laico. A turbulência vem e vai, e embora não se dirija a estrangeiros turistas, são manifestações violentas que os assustam e afastam, sem falar dos últimos atentados terroristas.